Edson Rosa da Silva
UFRJ / CNPq
O cenário da crítica literária com que nos deparamos hoje consagrou nomes que, ao longo do século XX, pressentiram as tendências da estética e da literatura, seguiram e analisaram de perto os diversos movimentos sociais que abalaram a configuração do mundo positivista, e capitalizaram ganhos de origens distintas que continuam a render frutos sempre novos para os estudos atuais no campo da literatura e das artes.
Um dos críticos que mais abriram perspectivas inovadoras de análise para os nossos tempos, apesar de uma obra prematuramente interrompida, foi o "filósofo" Walter Benjamin. Embora não apresentada como um sistema organizado sob forma de categorias e conceitos, sua reflexão sobre a literatura e as manifestações culturais na era da tecnologia sempre visou atingir o objeto mais amplo de uma inquirição filosófica que buscasse, não o conhecimento da Verdade, mas a apreensão, de forma fragmentária, dos mais variados momentos da experiência humana. "Num contexto em que a filosofia institucionalizada deixara de reivindicar a totalidade de sua tradição, Benjamin permaneceu fiel a essa tradição ao rejeitar sua forma institucional e ao filosofar 'diretamente' a partir dos objetos da experiência cultural.", é o que afirmam Andrew Benjamin e Peter Osborne na introdução à Filosofia de Walter Benjamin [1] . Assim, trabalhou o pensador alemão com conceitos que se revelaram fundamentais para a compreensão de seu pensamento crítico, como, por exemplo, o conceito de Erfahrung e o de Erlebnis. O primeiro estaria mais próximo da experiência plena, só possível no mundo da tradição, onde se vivia o tempo da totalidade; o outro traria em seu bojo a verdade de uma experiência de caráter pessoal. Erfahrung estaria, dessa forma, vinculada à idéia de uma experiência contínua que se insere numa história coletiva, e que se transforma por força dos modos de produção da vida moderna, dando origem, por isso mesmo, à vivência individual e incompleta. A tradição, em sua forma de legado coletivo, como experiência da plenitude, cede o lugar à sensação, que se vive de forma única e solitária. A esta remeteria o segundo conceito, já que a experiência plena não seria mais compatível com a experiência do choque no mundo moderno.
Eis por que se tornou impossível "contar". O artigo intitulado "Der Erzähler" (1936), traduzido pelo próprio Benjamin em francês por "Le Narrateur" [2] , que veio novamente a público, há pouco, na edição em três tomos das Oeuvres, na coleção Folio / essais (2000), com o título de "Le conteur", atribui à perda da faculdade de transmitir experiências o declínio da arte de "contar". Essa mudança de título na tradução francesa não é sem importância, pois leva-nos a refletir sobre a diferença entre "contador" de histórias, cujo conhecimento e experiência o habilitam como voz e lhe dão crédito, e "narrador", personagem de papel, porta-voz do relato romanesco. Aliás, o artigo "Experiência e pobreza" ("Erfahrung und Armut") [3] , datado de 1933, publicado pela primeira vez na revista Die Welt im Wort (n° 10, ano 1) valoriza a figura do velho homem experiente que legava ensinamentos aos mais jovens, o que as línguas muitas vezes conservaram sob a forma de provérbios, e acentua a idéia da perda dessa sabedoria em virtude do desenvolvimento das novas técnicas do então mundo moderno. "Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie", diz o texto de Benjamin [4] .
Com efeito, a idéia de uma "nova barbárie" toma corpo na obra de Walter Benjamin a partir do texto "Experiência e pobreza", quando parece esclarecer-lhe o sentido:
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.. [5]
Não se pode com certeza esquecer que o contexto histórico em que esse artigo foi escrito, e as convicções ideológicas do autor, colocavam sempre Walter Benjamin em alerta contra uma possível ameaça de um mundo novo que daí pudesse surgir. Donde o caráter político que esse texto, e, por conseguinte, o texto sobre o contador, escrito três anos mais tarde, adquirem. Conquanto essa "nova barbárie" possua um sentido positivo, explícito no texto, o que se podia temer é que o novo fosse cooptado pelas forças ideológicas dominantes e usado a favor do nazismo. Daí, o duplo sentido da "perda da aura", que, ao mesmo tempo, liberta a arte de uma imobilidade sagrada, mas pode torná-la vulnerável à manipulação das grandes potências comerciais, dos mitos políticos, o que Benjamin chama de "estetização da política", no texto sobre "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" do mesmo período: "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte." [6]
A consciência dessa pobreza, quer pelo enfraquecimento da experiência do sagrado, quer pela ausência da experiência plena no mundo moderno, leva o artista, do qual Baudelaire é um dos exemplos privilegiados por Benjamin, a explorar a vida diária, o perfil dos habitantes da cidade industrial e as novas formas de manifestação da angústia humana que as transformações do século XIX acabam por provocar. Configura-se, assim, face à impossível plenitude do sagrado, a vivência de um universo novo onde tudo está por redescobrir, onde a tentativa individual substitui, precariamente, talvez, uma ordem geral e a certeza de um cosmos de parâmetros definidos, cujo aparente equilíbrio as ideologias vigentes sempre buscaram preservar.
A Revolução Francesa jogou por terra certezas e privilégios. A liberdade e a igualdade tentaram trilhar seus próprios caminhos. Mas a República só se consolidaria em 1871. O início do século XIX é marcado por inúmeras agitações políticas e mudanças de regime. Logo os partidários do mito napoleônico se sentem órfãos e as perspectivas que se abriam para os "enfants du siècle" eram as mais desanimadoras, como lemos nas Confissões de um filho do século de Musset:
Três elementos dividiam a vida que se oferecia aos jovens de então: atrás deles um passado destruído para sempre, com todos os fósseis de séculos de absolutismo; diante deles, a aurora de um imenso horizonte, os primeiros clarões do futuro. Entre esses dois mundos, um mar agitado e cheio de naufrágios, atravessado, vez por outra, por alguma embarcação à vela distante ou por algum navio a vapor; eis o século presente, em uma palavra, que separa o passado do futuro, que não é nem um nem outro e que se parece com os dois ao mesmo tempo, e no qual não se sabe, a cada passo, se caminhamos sobre sementes ou sobre destroços.
Com efeito, as conseqüências da Revolução Francesa, dos atropelos da política da primeira metade do século e do progresso advindo da Revolução Industrial foram causa de uma crise de valores políticos e morais e aceleraram a reestruturação de uma sociedade ainda insatisfeita com seu presente e incerta com relação a seu futuro. Esse clima foi propício à evolução do pensamento socialista que se desenvolveu com o movimento operário e foi responsável por movimentos sangrentos como a Revolução de 1848. A questão social tornava-se assim uma das grandes discussões do século.
A arte e a literatura, por sua vez, tinham que mudar. Voltando à questão da impossibilidade de contar, pergunto-me se o mesmo impasse não se daria também com a poesia lírica. Num mundo então em vias de transformações radicais - do modelo econômico que abandonava definitivamente o artesão para incentivar a produção industrial; da cidade cujo traçado medieval cedia o lugar ao planejamento urbano dos grandes eixos viários; da arquitetura que descobria novos materiais, como o ferro que iria mudar as feições das construções civis; do pequeno comerciante, sufocado pela potência econômica dos grands magasins; do sistema financeiro que aderia sem volta ao sistema bancário; enfim, da agilidade dos transportes, da invenção do trem a vapor que devia facilitar as migrações e as trocas, tornando o centro urbano um lugar menos estável e mais provisório, onde o operário não mais encontraria o seu domicílio, porém o seu local de trabalho na fábrica - nesse mundo, portanto, a poesia também havia de transformar-se. Como cantar os sentimentos do homem diante da natureza livre agora controlada pelo progresso da civilização? Como cantá-la, se os cisnes não mais nadam em rios, mas na poeira dos jardins urbanizados [7] ? Se a fumaça e as chaminés impedem a contemplação prazerosa da lua e do firmamento [8] ? Se o amor se torna impossível e fugidio [9] ? Se a realidade do spleen luta contra o ideal que o homem ansiava por atingir [10] ? Se a nova estrutura econômica influiu até no surgimento de outros personagens, como "os catadores de trapos [que] apareceram em maior número nas cidades depois que, através de novos processos industriais, passou-se a dar um certo valor ao lixo" [11] ?
Declínio da lírica? Novos contextos e novos temas? A ruptura estava nitidamente marcada. Referindo-se à amizade de Baudelaire por Pierre Dupont, poeta bastante popular por sua poesia política de inspiração republicana, Walter Benjamin comenta que aquilo que aproximava os dois escritores era o fato de Pierre Dupont ter-se tornado um poeta social, "que foi para as cidades e se afastou do idílico: "A canção idílica, tal como foi entendida por nossos pais [...] até mesmo a simples romança, está completamente afastada dele", observa Benjamin em sua Paris do Segundo Império, anteriormente citada [12] .
Naquele mundo que então se abria, na aspereza da cidade, que revelava uma nova pobreza e um outro cenário, não havia, portanto, mais lugar para símbolos absolutos - beleza, amor, felicidade, grandeza humana - nem para o mito ("O mito era o cômodo caminho que Baudelaire proibiu a si mesmo" [13] ), soluções fáceis para as nossas contradições, sublimação dos conflitos do homem, dividido entre a vida e a morte. Baudelaire sabia disso ("Paris change! mais rien dans ma mélancolie / N'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, / Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie / Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs." [14] ), e Benjamin logo o compreendeu: "o engenho de Baudelaire, nutrindo-se da melancolia, é alegórico. Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica." [15] O que interessa ao crítico alemão é o olhar de estranhamento do flâneur, "cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade grande" [16] .
O que se torna, assim, tema da poesia lírica é a "desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade grande". Aí se encontra o desconcerto dessa poesia: sempre em busca de algo vindouro. O novo não é tão-somente a novidade que reabastece a vida, fazendo-a caminhar em direção a um objetivo, ainda que incerto ("au fond de l'inconnu" [17] ), sempre almejado. O novo é aquilo que logo fica velho e mantém a incerteza do futuro sempre mais presente e ameaçadora. Aí está talvez o que me parece ser a base da estética de Baudelaire: a tensão entre o que é e o que virá a ser, entre o que se vê e o que se poderá ver, entre o que congrega e o que desagrega, entre o que se sabe e o que não se pode saber, entre o mundo e sua ruína. É desse interstício que brota a poesia: indefinidamente, sem possibilidade de se fixar com os significados simbólicos que se dão às coisas. Não há relações miméticas: há relações sinestésicas. Tudo se corresponde, mesmo quando aparentemente as coisas não se associam: "les parfums, les couleurs et les sons se répondent" [18] . As correspondências não criam uma uniformidade de sensações. Pelo contrário, apesar de co-responderem umas às outras, guardam em seus fragmentos distintos sua independência e, por conseguinte, sua multiplicidade. Longe da sublimação do ideal, o spleen impede a cada instante a resolução das diferenças: "O spleen é a sensação que corresponde à catástrofe permanente", afirma Walter Benjamin em Parque Central [19] . Em constante processo de ruína, ele impede que a beleza se perenize, que o amor se realize no idílio perfeito ou que a poesia encontre seu porto seguro.
É desse conflito que se nutre a alegoria baudelairiana. Ela nasce, pois, da necessidade de se olhar o mundo industrializado de uma forma compatível com o seu choque. Ao invés de tentar mostrar a coerência e a harmonia da vida moderna marcada pelo modo capitalista de produção, Baudelaire destaca o caráter de dissolução inerente àquele processo, tornando a fragmentação ou a destruição palpáveis aos olhos de seu leitor.
Na realidade, o que há em Baudelaire é uma prática alegórica: como realçar nos objetos mercantilizados aqueles elementos que apontam para o seu valor perecível em oposição a uma aura antes redentora? Contrariamente à idéia de totalidade, o pensamento benjaminiano opta pelo objeto fragmentário, cuja transitoriedade e, portanto, cujo caráter perecível afastam-no de forma definitiva de uma representação simbólica de fácil apreensão. O que faz Benjamin, e o que faz igualmente Baudelaire, é tornar o objeto dialético, pleno de sentidos e de contrastes, atribuindo-lhe sempre uma significação múltipla e provisória.
Ao perder sua aura sagrada, a arte recupera seu poder de fascinação através do valor de mercado que a obra adquire no século XIX. Mas esse poder é absolutamente diverso do primeiro. Não se trata mais de uma fascinação decorrente do valor único e sagrado do objeto de arte. Pelo contrário, trata-se de uma fascinação que nasce de seu valor múltiplo e profano, de seu valor de mercado. A ausência da aura sagrada permite que se deixe de lado a aparência das coisas em proveito de seu interior, que se deixe de reverenciar o brilho distante que emana do objeto sagrado para abordá-lo de perto, perscrutando-lhe o lado de dentro. Isso significa que se pode chegar até a caveira das coisas, desvelando, assim, sua ruína. A consciência dessa ruína só se tornou possível pelo trabalho alegórico.
O que parece dominar o pensamento de Baudelaire é que a aura sagrada que embeleza a vida em suas variadas manifestações impede-nos de ver o lado material e mortal do mundo. Eis porque, despojando-se dessa roupagem, tudo se pode transformar em objeto do dia-a-dia, em objeto de troca, marcado não mais por um valor transcendente, pela busca de um além impossível, porém por um valor mercantil, em busca de um progresso sempre possível. Eis porque a cidade se organiza em torno de um eixo viário necessário à circulação das mercadorias, eis porque a arte deve ser avaliada em função de seu valor comercial, eis porque o homem é monopolizado pela máquina, eis porque sua cabeça se pauta então por uma ideologia baseada na mais-valia.
Caberia lembrar aqui o poema de Baudelaire, intitulado "Perte d'auréole", publicado pela primeira vez em 1869 em Le Spleen de Paris, onde o poeta, em resposta a alguém que se surpreende por encontrá-lo em um lugar pouco apropriado aos poetas, conta que perdeu a sua auréola:
Mon cher, vous connaissez ma terreur des chevaux et des voitures. Tout à l'heure, comme je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque, a glissé de ma tête dans la fange du macadam. Je n'ai pas eu le courage de la ramasser. J'ai jugé moins désagréable de perdre mes insignes que de me faire rompre les os. Et puis, me suis-je dit, à quelque chose malheur est bon. Je puis maintenant me promener incognito, faire des actions basses, et me livrer à la crapule, comme les simples mortels. Et me voici, tout semblable à vous, comme vous voyez! [20]
Duas coisas ficam claras no discurso do poeta: a primeira é que sua preservação física é mais importante do que suas insígnias de poeta; a segunda é que sem elas ele recupera a sua liberdade de ir e vir e de fazer tudo o que quiser. Ou seja: o poeta torna-se um homem comum, e o que fazia dele um ser especial era simplesmente a aparência que lhe dava a coroa. No mundo moderno dos bulevares, em que os negócios exigem pressa e agilidade, a aura acaba por ser inútil e incômoda. O poeta a abandona e goza de sua liberdade. Tal qual a arte ao perder a aura, ele descobre um outro mundo. E essa perda concreta do objeto-símbolo do poder artístico constitui-se numa perfeita alegoria da transformação dos tempos. Diametralmente oposta à perenidade e à transcendência da arte, a alegoria da perda remete à alegoria da morte.
É interessante observar que o frontispício [21] da segunda edição de Les Fleurs du mal, aprovado por Baudelaire, privilegia a imagem da morte. O mito da árvore do paraíso, como origem do bem e do mal, é aí representado pela imagem de uma árvore-esqueleto. Isto significa que tudo o que o homem vier a comer o conduzirá à morte, pois desta árvore não há outro fruto possível.
Tudo está aí representado: a criação do homem e sua relação com a morte desde o mito da origem, numa espécie de prefiguração do destino da carne, cuja realidade se confirma nas duas imagens horizontais logo abaixo: a morte da mulher e a morte do homem. Por outro lado, o sentido da alegoria não se restringe ao mito do paraíso e à prefiguração da morte. Abrange igualmente a vida política e religiosa. Na primeira imagem da lateral esquerda, vemos a morte que guia o papa, bem como o faz também, nas imagens seguintes, com o imperador e com o cardeal, emblemas de um mundo decaído, "risible Humanité" [22] . Ao lado deles, a morte funciona como um reflexo espelhado do futuro, quando as vestimentas e apetrechos simbólicos da nobreza e do poder se reduzirão à mesma imagem grotesca da morte, ao corpo descarnado que povoa os poemas de Baudelaire.
O paraíso, lugar da origem, é, pois, ao mesmo tempo, o lugar da morte. Les Fleurs du mal não parecem contar, tal qual o drama barroco alemão, como mostra Walter Benjamin, a história do sofrimento humano? A Paris de Baudelaire é povoada de ruínas: mendigos ("Blanche fille aux cheveux roux, / dont la robe par ses trous / Laisse voir la pauvreté / Et la beauté." [23] ), cegos ("Contemple-les, mon âme, ils sont vraiment affreux!" [24] ), velhos ("un vieillard dont les guenilles jaunes / Imitaient la couleur de ce ciel pluvieux" [25] ) e velhas ("ces monstres disloqués furent jadis des femmes" [26] )- avatares dos esqueletos lavradores e da morte que não cessa de rondar.
É possível comparar o mundo barroco cristão do século XVII - a que se refere o drama barroco alemão - e a Paris do século XIX de Baudelaire? Com efeito, o cristão vê no mundo a imagem da ruína que condena o lado material do homem, assim como Baudelaire põe em oposição o spleen e o ideal. A grande diferença é que, para o cristão, mostrar a realidade da morte e do sofrimento significa precaver o homem contra o pecado, na esperança da salvação. Para Baudelaire, no entanto, não há salvação possível. Se os emblemas do pensamento religioso querem mostrar ao homem sua miséria para prepará-lo para o paraíso, a miséria dos personagens baudelairianos apenas sublinha a ruína que fatalmente acompanha o homem moderno em todos os níveis de sua vida privada e social - em sua decadência física e moral - sem a possibilidade de resgate. Em Baudelaire, o homem não transcende a sua miséria, ao contrário, mergulha cada vez mais no fundo do abismo em busca do novo - que se pode tornar, mais uma vez, fascinante e fatal. E assim o ciclo recomeça. O que é curioso em Baudelaire é que seus poemas estão impregnados de símbolos tradicionais da doutrina cristã que ele, então, alegoricamente destrói. Ou seja: desconstrói a aparência simbólica e revela o outro lado das coisas.
Se a mortificação da carne era a divisa cristã em busca da reconciliação do homem com Deus, se o sofrimento era a única forma de se purificar neste "vale de lágrimas" para conquistar o paraíso, Baudelaire mostra um mundo em processo de mortificação que, no entanto, é só escombros. O que era um mito redentor se torna a alegoria da morte - apenas. Não há inferno: há um mundo em ruínas.
Uma bela alegoria do mundo em processo de decomposição é o poema "Une charogne" [27] . Diante da carcaça de um animal em avançado estágio de putrefação, o poeta consegue resgatar a lembrança da vida que ali ainda vive: primeiramente, pela comparação com a posição da mulher em pleno ato sexual ("comme une femme lubrique"), logo na segunda estrofe, e, na quarta, através da comparação da carcaça com uma flor ("Et le ciel regardait la carcasse superbe / Comme une fleur s'épanouir"). O poema constrói-se, assim, sobre dois eixos bem definidos: o da morte e o da vida, representada pelo campo semântico da mulher amada e pela possível recuperação de sua beleza pela arte. Todo o lado negativo da morte e da corrupção da carne, marca inexorável do spleen, desmancha-se como um sonho e fixa-se como vida no esboço que dele faz o artista em sua tela:
Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.
A tela, em forma de poema, resgata, assim, aquilo que a condição miserável do homem não consegue recuperar, mas que a voz do poeta perpetua como verdade possível:
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés!
A idéia da recuperação da essência divina parece-me querer restabelecer o halo sagrado do amor e da beleza. Há, aqui, o resquício de uma saudade original que poderia fazer pensar numa aura ainda presente e possível, ainda que rejeitada pelo mundo moderno e incompatível com a concepção alegórica da realidade. A poesia lírica da modernidade joga por terra a aparência da beleza, põe às claras sua carcaça e sua decomposição. Busca, no entanto, um meio de reencontrar seu brilho, sua forma e sua essência divina, através de uma aura insubmissa que, apesar de tudo, da técnica, da ideologia burguesa e do valor de mercado, ainda pode garantir a magia do poeta. Como neste poema de Charles Baudelaire, Walter Benjamin parte da ruína para sonhar a inteireza primitiva, a possibilidade de um reencontro primevo. Senão possível, ao menos sublimado pela arte, pela força criadora do verbum ou da poiésis.
A consciência do processo da modernidade vai fazer-nos, pois, ver que a catástrofe pode até ser necessária. Mas em que medida? Essa é a questão ambígua que a obra de Walter Benjamin suscita. Fica claro, parece-me, que a idéia da catástrofe remete para a tese IX "Sobre o conceito da história" [28] , a catástrofe do Progresso, que o Angelus Novus de Paul Klee consegue sintetizar na interpretação de Walter Benjamin. Aliás, Michael Löwy vê profundas relações entre a obra de Baudelaire e a nona tese de Walter Benjamin [29] . Mas a grande contradição que gostaria de salientar é a de uma herança cultural que se pode erigir a partir da catástrofe e da ruína do passado. "A elite dominante se apropria - pela conquista, ou por outros meios bárbaros - da cultura precedente e a integra ao seu sistema de dominação social e ideológica", comenta Michael Löwy, no livro acima citado [30] . Dessa forma, as transformações que deram origem à Paris do século XIX se assentaram sobre as ruínas de um passado medieval e sobre o desaparecimento de tradições de uma vida social e comunitária que o progresso não mais podia admitir. Por isso, o conceito benjaminiano de "barbárie positiva" bem como a idéia da perda da aura como fonte de renovação não deixam de provocar reações distintas entre os estudiosos de Benjamin.
De forma sucinta, poderia mencionar duas questões que mereceriam uma discussão mais aprofundada em outro momento: a primeira refere-se à ambigüidade do conceito de aura no âmbito geral da obra; a segunda às conseqüências de seu declínio e ao seu possível retorno. Quanto à primeira, remeto o leitor ao texto de Marc Jiménez, intitulado "Le retour de l'aura" [31] . Quanto à segunda, permanece a pergunta sobre a eficácia do desaparecimento da aura ou sobre suas formas de manifestação num mundo em que o sagrado não tem mais o lugar de destaque que ocupava nas comunidades primitivas.
Seria, portanto, a função da arte e da poesia fazer o elo entre o mundo material e sua "essência divina"? Que novas formas, novos gêneros, nos podem ainda permitir contar e cantar?
[1] Andrew Benjamin & Peter Osborne, A filosofia de Walter Benjamin, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 12.
[2] Cf. Mercure de France, julho de 1952, tradução retomada na edição dos Écrits français (Paris, Gallimard, 1991).
[3] Cf. o tomo I das Obras escolhidas da Editora Brasiliense, 4. ed., p. 114-9; ou, em francês, no segundo tomo das Oeuvres (op. cit.), "Expérience et pauvreté", p. 364-72.
[4] Cf. tradução da Brasiliense, p. 115.
[5] Id., ibid.
[6] Cf. o tomo I da edição da Brasiliense, op. cit., p. 196.
[7] "Un cygne qui s'était évadé de sa cage, / Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec, / Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage. / Près d'un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec, /Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre". (Charles Baudelaire, "Le Cygne", Oeuvres complètes, T. I, Paris, Gallimard, 1975, p. 85. Todas as citações desse autor se referem a essa mesma edição)
[8] "Il est doux, à travers les brumes, de voir naître/ L'etoile dans l'azur, la lampe à la fenêtre, / Les fleuves de charbon monter au firmament / Et la lune verser son pâle enchantement." (Charles Baudelaire, "Paysage", p. 82.)
[9] "Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté / Dont le regard m'a fait soudainement renaître, / Ne te verrai-je plus que dans l'éternité? // Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être! / Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, / O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! " (Charles Baudelaire, "A une passante", p. 92)
[10] "- Et de longs corbillards, sans tambours ni musique, / Défilent lentement dans mon âme; l'Espoir, / Vaincu, pleure, et l'Angoisse atroce, despotique, / Sur mon crâne incliné plante son drapeau noir." (Charles Baudelaire, "Spleen", p. 74)
[11] Walter Benjamin, "A Paris do Segundo Império em Baudelaire", in: Flávio R. Kothe (org.), Walter Benjamin, São Paulo, Ática, 1991, p. 51.
[12] Id., ibid., p. 56.
[13] Walter Benjamin, "Parque Central", in: Flávio R. Kothe (org.), Walter Benjamin, op. cit., p. 140.
[14] Charles Baudelaire, "Le Cygne", p. 85.
[15] "Paris, capital do século XIX", in: Flávio R. Kothe (org), Walter Benjamin, op. cit. , p. 38-9.
[16] Id., ibid.
[17] Charles Baudelaire, "Le Voyage", p. 134.
[18] Charles Baudelaire, "Correspondances", p. 11.
[19] Walter Benjamin, "Parque Central", in: Flávio R. Kothe (org.), Walter Benjamin, op. cit., p. 126.
[20] Charles Baudelaire, "Perte d'auréole", p. 312.
[21] Cf. Susan Buck-Morss, Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens, Belo Horizonte/Capecó, Editora UFMH/Editora Universitária Argos, 2002, p. 242.
[22] Charles Baudelaire,"Danse Macabre", p. 96.
[23] Charles Baudelaire, "A une mendiante rousse", p. 83.
[24] Charles Baudelaire, "Les aveugles", p. 92.
[25] Charles Baudelaire, "Les sept vieillards", p. 87.
[26] Charles Baudelaire, "Les petites vieilles", p. 89.
[27] Charles Baudelaire, "Une charogne", p. 31.
[28] Walter Benjamin, Obras escolhidas III, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 226.
[29] Cf. Michael Löwy, Walter Benjamin: avertissement d'incendie, Paris, PUF, 2001, p. 73 e s.
[30] Id., ibid., p. 64.
[31] Cf. Revue d'esthétique, hors série [Walter Benjamin], Paris, Jean-Michel Place, [1990], p. UR181-186.