Dez anos dez temas

Estudos literários, estudos nacionais, estudos culturais: reflexões em diálogo

Beatriz Resende
UNIRIO/UFRJ
CNPq

Ao ter a alegria de ser convidada a escrever para o décimo número da Revista Semear, decidi rever os números anteriores, numa espécie de homenagem, possível graças ao primeiro e incomum mérito desta publicação: a continuidade. Voltei, assim, ao ano de 1997 para reencontrá-la ainda magrinha, como personagens de fotos antigas. Com o tempo, a revista, como nós, foi engordando (exceção feita à elegância imbatível da Titular da cátedra Padre Antônio Vieira). A Semear é, naquele momento, apresentada como forma de divulgação das pesquisas ligadas à Cátedra de Estudos Portugueses sediada na PUC-Rio. Nada mais normal, portanto, do que publicar estudos da área, divulgando a cultura e a literatura portuguesas. Mas já naquele primeiro número um ensaio abria o leque de interesses, através de estudos da cidade, com texto de Renato Cordeiro Gomes, investigando representações da cidade na literatura. No segundo número, o tema da cidade, em grande evidência sobretudo a partir dos anos 1990, aprofunda-se, desdobra-se em outras investigações da territorialidade e, o que aqui nos interessa especialmente, coloca Rio de Janeiro e Lisboa como cidades modernas em diálogo. A felicidade da proposta adianta o tema do seminário que vai fornecer material para o número 3, de 1999: "Cidades em diálogo". A partir desta edição, a revista configura-se, definitivamente, como espaço múltiplo de troca de saberes. Rompem-se os restritores limites disciplinares - bunker do conhecimento que insiste em sobreviver. A partir daí o espaço gráfico será freqüentado não apenas por disciplinas afins, como a história, mas irá se abrir também para o espaço de cruzamento de saberes, de troca de investigações culturais que são os Estudos culturais.

Em 2002, partindo de Eça de Queirós - "cenas da vida portuguesa" - a revista propõe a seus colaboradores e leitores o debate em torno da mundialização da cultura no momento em que questões da pós-modernidade são colocadas em xeque. É neste número que Eduardo Jardim coloca em confronto o tema da nacionalidade e o do universalismo no primeiro e segundo tempo modernistas, conferindo a tentativa daqueles intelectuais brasileiros entenderem "a fronteira como algo que não se restringe", para, em seguida, perguntar-se "Por qual motivo os critérios espaciais impõem-se usualmente com tanta força?" [1] . No número 7, ensaio de Eneida Leal Cunha sobre a literatura produzida pela parcela de excluídos da sociedade que são os presos, estende o limite, a fronteira a ser atravessada em outra direção, a do próprio conceito de literatura.

Durante todo este trajeto, os estudos mais específicos sobre literatura portuguesa não foram abandonados. Não se trata, absolutamente, de um desvio de rota em relação à intenção inicial da produção cultural gerada através do apoio da cátedra. Ao contrário. Neste convívio com o diverso, os estudos portugueses enriqueceram-se com o diálogo, e ultrapassaram, no mais das vezes, a condição de estudo nacional, rompendo com uma visão que facilmente se mostra eurocêntrica. No trânsito entre o local e o global, ganharam, por diversas vezes, a capacidade de sedução que tem um recital do conjunto Madredeus, com seu repertório elaborado a partir da relação de troca e múltiplas influências entre o nacional e o universal, o erudito e o popular.

Refletindo sobre o caminho escolhido pelos editores da revista, parece-me que estamos diante não apenas de uma postura academicamente democrática, aberta ao novo, mas frente a concepções epistemológicas definidas e, sobretudo, a uma concepção determinada do que deve ser o trabalho intelectual. Nesse sentido, compreendemos intelectual tal como definido por Jean-Paul Sartre - mesmo quando sabemos que o lugar por ele antes ocupado não foi preenchido, após sua morte, não por falta de candidatos, mas porque o próprio lugar se tornara inviável - quando o escritor rejeita o especialista do saber prático e prefere ver no intelectual aquele que "se mete no que não é de sua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas" [2] . De certa forma, esta definição se aplica também a todos se ocupam da política, em seu sentido maior, cabendo a ressalva de que, sobretudo depois da globalização da economia e da informação, depois do 11 de setembro, da retomada do papel do intelectual como voz pública, e das guerras que se seguiram, é bem difícil encontrar algo, na organização do mundo que possa não nos dizer respeito. Se nossos intelectuais dispõem-se ou não a se expor à dúvida, ao pensamento provisório, à possibilidade de equívoco quando deixam o espaço seguro de seu campo de investigação academicamente constituído, arriscando-se a opinar sobre o que ocorre para além de seus gabinetes de trabalho (entre nós freqüentemente chamados "baias") é outra coisa. Foi também Sartre quem disse que "nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si mesma, pois ela só tem os que faz" [3] .

É a partir desta bem sucedida perspectiva, adotada pela Semear e solidificada pela continuidade, que gostaria de repensar, brevemente, também o termo Estudos Brasileiros, posto em destaque recentemente por ocasião do VII Congresso Internacional da BRASA (Brazilian Studies Association ), realizado este ano na PUC-Rio.

A maneira que, neste momento me interessa olhar para os Estudos Brasileiros é pensá-los em diálogo com os Estudos Culturais, em posição de troca e não de combate.Interessam-me os Estudos Culturais desde que não se perca a dimensão do lugar específico de onde falamos. Os Estudos brasileiros, desvinculados das questões referentes à sociedade contemporânea, do tempo a partir do qual construímos nossos discursos podem se tornar inúteis, ilusórios ou, quem sabe, até perigosos, como qualquer outra reflexão separatista ou fundamentalista. Começo pelos chamados Estudos Brasileiros.

Preocupa-me sempre a designação restritiva, delimitadora de território, pela ameaça de conter uma afirmação de identidade que pode ser tanto mitificadora como excludente, sobretudo no que diz respeito, diretamente, aos estudos de cultura, mas não apenas neste campo.

Só me parece possível olhar o Brasil, olhando sua cultura com outras, analisando a diferentes manifestações da cultura contemporânea simultaneamente, num esforço de mundialização da perspectiva crítica. A meu ver, só é possível elaborar matrizes teóricas se as virmos em estado de diálogo, de forma a torná-las capaz de dar conta de um Brasil em toda a sua complexidade, em visão confluente, intercultural, diversificada, plural, que analise, deste modo, um Brasil nacionalmente cosmopolita, intelectualmente emancipado, determinante no estado do mundo, responsável, também, pela governabilidade do mundo em que vivemos.

Quando no exterior, de passagem ou lá sediados, encontramos um pólo dedicado a Estudos Brasileiros, sentimos de início, uma ponta de vaidade. Fomos, de algum modo, reconhecidos. Sentimos ainda certo alívio quando vemos nossa língua ou cultura estudados separadamente, distinguidos da paternidade portuguesa, em tardio brado anti-colonial. Em seguida, porém, percebemos que nossa localização fica mesmo na última porta de um corredor, tão mais longo quanto maior for a importância da Universidade, Biblioteca ou centro de estudos em questão. Mais isso não é o mais grave. Sério mesmo é quando nos conformamos com isso.

Nesse sentido, a inclusão de Estudos Brasileiros no conjunto dos novos estudos latino-americanos não deixa de significar uma ampliação do escopo de análise, alargando as relações interculturais, a compreensão de um novo estado do mundo e da situação da América Latina nesta configuração, ainda que isto não signifique mais que a partilha de uma situação absolutamente secundária no quadro da pós-globalização. Como é a situação política e econômica ocupada, hoje, pelo Mercosul.

Não posso deixar de citar a observação que faz Néstor Garcia Canclini no prólogo de seu Latinoamericanos buscando lugar en este siglo, a afirmação de que nos globalizamos como produtores culturais, mas também como migrantes e como devedores. Uma coisa porém é certa, a condição atual da América Latina desborda seu território.

Por isso mesmo, a significação do que é ser latino-americano e a compreensão da cultura latino-americana não serão percebidas observando-se unicamente o que ocorre dento do território delimitado como América Latina. Do mesmo modo, a compreensão das questões culturais e/ou política brasileiras não se dará unicamente no interior dos chamados Estudos Brasileiros. Pensar o latino-americanismo com a inclusão e o peso do Brasil é também reafirmar que estaremos falamos, como diz ainda Canclini, não de uma identidade comum, mas de um espaço cultural muito heterogêneo, já que a latinoamericanidade é, ela mesma, uma construção híbrida.

Neste esforço de inclusão e de trânsito, porém, não me parece que o completo desfazimento do conceito de nação interesse aos países que se incluem nesta complexa realidade a que chamamos América Latina. O que é bem diferente da necessidade de se repensar aquela nação que nos vem sendo por séculos narrada a partir da ordenação do mundo onde a economia se globaliza e a pobreza se localiza.

Ao buscar repensar, a partir de nosso campo especifico, o de intelectuais ligados ao mundo da cultura, questões que estariam reunidas em torno de (hipotéticos) Estudos Brasileiros, e na tentativa de fazê-lo com um olhar político, angustia-me a sensação de que somos tomados, inevitavelmente, por uma dominante esquizofrênica. Como intelectuais e professores cabe-nos usar nosso discurso de forma atuante primeiro na esfera acadêmica e, segundo, mas simultaneamente, na esfera pública, de formação de opinião. Ser, porém atuante, como intelectual, na esfera acadêmica, de circulação de um saber organizado, não é o mesmo que ser atuante na esfera pública. E é aí que aparece, muitas vezes, a esquizofrenia de nosso discurso. Em seus estudos sobre o papel do intelectual contemporâneo, Beatriz Sarlo afirma, sem medo de patrulhamentos, que sem a persistência típica do mundo acadêmico, o saber político corre risco de tornar-se banal, vazio. Eu diria ainda, oportunista. Mas a verdade é que o discurso que pretendemos dirigir à esfera pública de opinião, quando marcado pelo discurso acadêmico, tende a particularizar o saber, torna-se inútil, restringe seu campo de atuação e repercussão, perde efetividade. Por outro lado, o discurso que pode ser influente na esfera pública, quando dirigido ao mundo acadêmico, torna-se freqüentemente superficial, banal, generalizante. Talvez este seja o maior desafio que o intelectual vive hoje, neste momento em que parece especialmente desprovido de suas funções. Se a concepção global de intelectual de que falava Sartre está, hoje, em debate, se a ele não cabe mais a função anteriormente auto-atribuída de porta-voz dos que não tinham voz, já que estes vêm, cada vez com mais segurança, resgatando o direito e as condições de falar por si mesmos, criando discurso e manifestações culturais próprias, se tornou-se inútil e insincera aquela antiga tarefa de mediador entre oprimidos e poderosos como acontecia com o intelectual moderno, resta-lhe, ainda, sem dúvida, a função crítica que os distingue dos "especialistas".

Voltando à questão específica da cultura, cabe lembrar o entendimento de Edward Said que, distinguindo dois possíveis entendimentos da noção de cultura [4] , identifica uma primeira, que veria cultura como "aquelas práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação que teriam relativa autonomia em relação aos campos econômicos, sociais e políticos, sendo o prazer um de seus principais objetivos" e outra que, partindo de um conceito que incluiria "um elemento de elevação e refinamento, o reservatório do melhor de cada sociedade, no saber e no pensamento". Este conceito estaria associado ao de nação ou ao Estado, e serviria, antes de mais nada, à diferenciação -nós e eles - sempre com algum grau de xenofobia. A cultura, assim concebida, afirma Said, torna-se "uma espécie de grade de proteção" - eu falaria talvez, em arame farpado - com a significação seguinte: "deixe a política na porta antes de entrar". É a partir deste posicionamento que o ensaísta vai desfazer qualquer ilusão de que literatura e cultura sejam política ou historicamente inocentes, indicando que sociedade e cultura literária só podem ser entendidas e estudadas juntas.

Quando também Raymond Williams fala da dificuldade em se definir cultura [5] , mostra que isso se dá, sobretudo, porque cultura passou a ser usada como conceito importante em muitas diferentes disciplinas intelectuais e em diversos sistemas de pensamento, distintos e por vezes incompatíveis. É aí, me parece, que a ótica, ou espaço de confluência, dos Estudos Culturais pode nos ser de ajuda, inclusive na compreensão e análise de problemas brasileiros.

Reconhecermos nossa posição peculiar (o tempo e espaço de que falamos) na era das mudanças globais, situada daquele lado do mundo onde estão, fundamentalmente, os que pagam os custos, se nos impele a mantermos nossa capacidade crítica, nem por isso resolve, por si só, nossa disponibilidade ou não diante de novas epistemologias.

A tarefa seguinte é nos dispormos a enfrentar o debate inevitável dentro da chamada academia, nos espaços consagrados de produção do saber, de elaboração dos cânones e definição de disciplinas. Seria este mais um esforço de superar a esquizofrenia de que já falei ao buscarmos estender nosso raio de ação para além da esfera acadêmica até a esfera pública.

Costumo dizer que a primeira coisa que me agrada nos Estudos Culturais é apresentarem-se como estudos. Instala-se, imediatamente, uma provisoriedade, uma abertura, que me parece indispensável em um momento de questionamentos, de necessariamente assumirmos as dúvidas que vivemos diante deste já tão conturbado século XXI. que se inicia. Em seguida, interessa-me a problematização e a politização do termo cultura, quando trazida para o espaço universitário sem ter forçosamente um qualificativo ao lado, como é o habitual, seja pela nacionalidade atribuída, seja pela condição de produção e/ou recepção. A suspensão da referência à territorialidade excludente faz-se, o mais das vezes, proveitosa. Imediatamente seremos levado ao debate mais complexo sobre o tema das identidades, discussão que só irá se apurar e tornar-se mais profícua se nos dispusermos a colocar o conceito em pauta desvinculado também das referências primeiras, as nacionais e as naturais.

Em minha vivência acadêmica tenho observado que é, provavelmente, nas áreas de Letras, nos estudos das literaturas nacionais e, por vezes, no âmbito da Teoria Literária, que o debate se torna mais ferrenho e mais provocativo. A Teoria Literária é, entre nós, disciplina fortemente organizada no espaço acadêmico e altamente produtiva que buscou freqüentemente, sobretudo no momento de implantação em nossas universidade, os anos 1960, de grande prestígio das ciências, um estatuto científico. Mas é preciso lembrar que o respaldo científico significa utilização do critério de verdade, ambição de neutralidade e legitimação dos discursos emitidos, como nos apontou, abundantemente, Foucault. O que o filósofo lembra é que o simples pertencimento a um conjunto sistemático reconhecido como discurso científico garante confiabilidade quanto a técnicas e objetos de experimentação, independentemente da autoria declarada [6] . Não espanta, pois, que o desejo de realizar-se como ciência venha tantas vezes junto a uma defesa da especificidade disciplinar. Cabe observar que a Literatura Comparada não rompe, forçosamente, com os limites nacionais como referência fundamental. O comparatismo, por si só, não é, em absoluto, garantia de ruptura com as identificações segmentadas por língua, país ou cultura nacional.

O que falta, porém, aos estudos literários, da legitimidade atribuída à ciência, - a área de conhecimentos "duros" - é amplamente compensado por uma espécie de nobreza. Trata-se de um status atribuído, especialmente entre povos de passado escravista, ao diletantismo. Literatura, assim, seria coisa de diletante, os beletristas e, se diletante, nobre. Porém, se nobre, em geral, conservador. A força da defesa do cânone viria facilmente desta área, celebrada pelo crítico Harold Bloom. Tenho me perguntado como se mexem, hoje, tais nobres diante da produção contemporânea de arte e literatura não mais apenas pelo "ressentidos", mas por representantes vindos diretamente das camadas subalternas, de excluídos sob diversas formas, dos presidiários aos favelados. E mais, como reagem diante da recepção que vêm recebendo tais criações e, ainda, da influência que vêm exercendo sobre o conjunto da produção literária, cinematográfica, musical. Por quanto tempo poderão negar a existência desses novos fenômenos, de que forma ainda conseguirão esconder o fato de que os que não tinham voz, cada vez mais não só não precisam, mas rejeitam fortemente nossas vozes privilegiadas para falar e se fazerem ouvir? Que lugar ocupar quando o de juízes já nos foi, há muito, retirado pela mídia, pelo consumo, pelo gosto popular, pela recusa de mediadores?

É curioso observar, também, que o critério da "permanência" - a boa literatura é a que fica, aquela que transcende os apelos de mercado, de seu tempo - continua sendo afirmado num momento em que as Artes Plásticas, com o questionamento do suporte, já praticam as instalações, como manifestação artística que tem por base sua própria efemeridade, há tempos. Como também acontece com as Artes Cênicas. Este, aliás, é um campo extremamente interessante de análise. Pela ligação imediata com o público, tal como se configurou na modernidade, sua própria realização - a representação - aproxima-se intimamente da constituição da esfera pública. Pelo imediatismo de sua recepção, pela partilha de espaço e tempo entre criadores e fruidores, o teatro, desde sempre, se fez muito próximo à sociedade, dela dependendo ao mesmo tempo que em seu comportamento influía. Com os esforço pelo fim da posição hierárquica do palco em relação à platéia, tal proximidade ainda se estreitou mais. Por outro lado, a realização e a sobrevivência de um espetáculo teatral dependem fortemente da esfera pública de opinião, especialmente a opinião expressa em jornais por críticos especializados. O que observamos, então, é uma profunda dificuldade dos teóricos conviverem com as possibilidades críticas oferecidas pelo território de análise pouco demarcado dos Estudos Culturais. Não que não existam teóricos que se utilizem sobretudo do repertório conceitual dos Estudos culturais. O importante Patrice Pavis, por exemplo, mexe-se tão bem neste campo, analisando o cruzamento de culturas na cena teatral como na realização de seu importante dicionário. Mas o corpo tradicional de críticos teatrais, talvez por ver no mundo contemporâneo, de organização midiática, o teatro como uma espécie ameaçada, fecha-se na constituição de uma espécie de bunker inacessível aos comuns mortais, pensadores e jornalistas não especializados, como sendo as únicas instâncias legitimadoras - ou renegadoras - dos espetáculos teatrais, atrelando o mais das vezes sua aprovação à obediência aos cânones, diga-se de passagem, por eles mesmos estabelecidos. Ungidos pela revelação de um saber acumulado em anos de reserva de mercado, os críticos teatrais, entre nós, com as raras exceções de praxe, fazem de sua faculdade de julgar recurso único e exclusivo de aprovação ou condenação. Neste cenário de crítica especialmente conservadora (especialmente por limitar-se, no Brasil, a uns poucos jornais e revistas) vem crescendo a importância de uma forma de arte cênica que se encontra com outras no questionamento dos suportes e na afirmação de uma arte fundada em manifestações não mediatizadas das subjetividades, as performances teatrais. Como uma voz dissonante, lastimavelmente calada pelos limites da vida, o teórico Renato Cohen definiu a performance de uma forma que evidencia a dificuldade de ser tal experiência analisada pela ótica míope dos estudos e críticas disciplinares. Afirma Cohen que "A performance instala-se como arte híbrida, ambígua, oscilando entre a plena materialidade dos corpos e a fugacidade dos conceitos" [7] . Esta nova prática artística, precisa, então, fundar um novo discurso e buscar espaço acadêmico fora dos departamentos de Letras ou Teatro: os Estudos da Performance, desenvolvidos, em geral, em centros que se dedicam aos Estudos Culturais.

Falar em Estudos Culturais é, inevitavelmente, propor também um debate que passe por temas contemporâneos como o feminismo, especialmente em seu início, nos anos 70-80, o pós-modernismo, pós-colonialismo e o latino-americanismo. É lidar com a realidade, com a empiria, o que tradicionalmente provoca verdadeiro horror aos acadêmicos da chamada área "humana". Fazer com que os estudos literários passassem pelas questões de classe, entre nós da América Latina, já foi até perigoso, mas não foi impossível. Chegou a ser uma perspectiva legitimadora, identificada com potencialidades combatentes e inovadoras. No entanto, cruzar os estudos literários com questões de gênero e de etnias, reconhecer o rompimento das fronteiras entre alta cultura e cultura de massa, encontrou oposição bem mais forte. A apregoada necessidade de pluralismo, de abertura democrática, parece logo cair imediatamente por terra. O cânone é invocado, o critério de valor é ressuscitado. A multiplicidade passa a ser vista como dissolução de critérios, a pluralidade transforma-se em ausência de bases teóricas, a democracia em submissão ou cooptação, a defesa da troca em fascínio pela globalização, a politização em populismo.

Vale, então, destacar a importância que vem manifestando neste campo o pensamento original de Stuart Hall, crítico de cultura jamaicano radicado na Inglaterra, e a contribuição que traz hoje para qualquer reflexão contemporânea sobre cultura e identidade, assim como sua relevância para estudos desenvolvidos no Brasil sobre nossas próprias questões. Constatando que as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades, híbridas, estão em seu lugar, Hall afirma que "as culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade, distintivamente novos, produzidos na era da Modernidade tardia".

Identifico-me, fortemente, com o relato de Hall sobre suas experiências críticas quando fala da dificuldade que experimenta ao lidar com o realmente contemporâneo, considerado "hot to handle". No que diz respeito à literatura, hoje, falando do Brasil, vemos o quanto essa dificuldade se comprova quando os críticos literários preferem, quase sempre, deixar a crítica do que lhes é absolutamente contemporâneo a cargo de jornalistas, aqueles mesmos que, sem maiores dificuldades, são queimados por estes mesmos scholars nas fogueiras das vaidades.

Gostaria, assim, de reiterar que o que me interessa, sobretudo, nos Estudos Culturais como interlocução sugerida aos estudos de área, é a possibilidade de politização - no sentido grandioso que a palavra deve ter - da investigação intelectual proposta. É na pluralidade cultural, no reconhecimento das diversas subjetividades, nas múltiplas identidades e na certeza de que, por exemplo, existem na literatura brasileira, muitas literaturas brasileiras, no Brasil, muitos Brasis, que está a possibilidade de se reconhecer o complexo, o diferente, o outro. Talvez por esta direção, ou outra similar, possamos superar a esquizofrenia diária vividas por nós intelectuais latino-americanos e de outras periferias.É neste sentido que os estudos culturais podem iluminar os Estudos Brasileiros contribuindo para enriquecer o sentido político que o debate deve ter, ampliando os espaços de diálogo e inserindo a reflexão sobre Brasil numa reflexão sobre o estado do mundo.

Gostaria de concluir esta breve reflexão sobre as vantagens acadêmicas e políticas da ampliação das fronteiras de interesses no estudo da literatura e nos estudos nacionais citando um importante intelectual que perdemos recentemente, o geógrafo e professor Milton Santos, em sua argumentação sobre o papel do intelectual contemporâneo e as funções da universidade contidas em discurso proferido ao receber o título de Professor Emérito da USP:

São hoje possíveis outras visões do mundo, a partir de qualquer lugar, e creio que é essa a grande lição da era da globalização, em que não apenas uma cultura é capaz de ensinar, todas são igualmente capazes desse magistério. O equívoco da minha geração foi acreditar exageradamente nas virtudes do saber de um continente, agora de dois. Sem buscar uma interpretação do mundo a partir do nosso lugar, que modificaria, também, a interpretação do nosso lugar, não contribuiremos validamente ao conhecimento do mundo. [8]



[1] Eduardo Jardim de Moraes, "O que significa ir além das fronteiras?", Semear, n. 6, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2002, p.107-117.

[2] Jean-Paul Sartre, Em defesa dos intelectuais, São Paulo, Ática, 1994, p. 14.

[3] Id., ibid., p. 31.

[4] Cf. Edward W. Said, Cultura e imperialismo,  São Paulo, Companhia da Letras, 1995, p. 12-14.

[5] Raymond Williams, Keywords, New York,Oxford University Press, 1983, p. 87-93.

[6] Michel Foucault, "What is an author?". In: Paul Rabinow (ed.). The Foucault reader, New York, Pantheon Books, 1984.

[7] Renato Cohen, "Performance e Tecnologia: o espaço das tecnoculturas". Disponível em http://hemi.nyu.edu/foruns/os/messages/63.shtml

[8] Milton Santos, "O intelectual, a universidade es