Vieira

No entardecer do Reino, o desmaio do Mundo para António Vieira

Marcus Alexandre Motta
IFCS/UFRJ

Pretendemos. Há algo que de fato pretendemos. Não havendo objeção, continuamos. Aqui se encontra a máscara da ingenuidade. Como nada por direito pode ser tomado como ingênuo, apenas a ignorância, elevamos a máscara ao seu lugar de feitura. Mas o lugar é sombreado pela perspectiva de mudança. No extremo da definição filosófica denominamos esse lugar de travessia. Tal movimento desenrola-se na derrota potencial da ação, que força uma introspecção comunicativa, acanha o pensar e solapa a própria mente de sua aparente motivação.

Face à urgência e a um perigo que não mais se insinua, gostaríamos de expor três movimentos atonais para a noção comum de História, expressos no título do artigo, necessários a nossa compreensão para o Livro Anteprimeiro da História do Futuro[1]. O primeiro dos movimentos corresponde à idéia contida na imagem do “entardecer do Reino”, que nos permite pensar o Quinto Império, proposto por Vieira, através das faculdades de perdoar (a inércia de Portugal no Teatro do Mundo) e prometer. Como essas faculdades, porém, precisam de voz, surgem como expressão da fala da Colônia no rosto da Metrópole. Frente ao espelho côncavo barroco, na profundeza ilusória da superfície, é a Metrópole pronunciando a sua semelhante diferença.

O “desmaio do Mundo”, segundo movimento, corresponde à ironia sublimada do triste humor da morte. A idéia imagética que se desprende daquela configuração possibilita compreender a mortificação profética de um tipo de Mundo, proveniente do Acontecimento-Fantasma Descobrimentos. Nesse estado mundano, o não artístico na arte de Vieira é o drama do Mundo que visivelmente se arruína em política, religião e linguagem. Seu contraponto necessário é formulado pela Filosofia da Restauração. Ou seja: em função da história-natureza dos Descobrimentos, atos sem história, provém a sua natureza-histórica, o Quinto Império, morte natural de um processamento imanente da própria vida. O Quinto Império, nesse sentido, é o último e derradeiro ato.

O último movimento — “para Antônio Vieira” — pressupõe um diálogo, conduzindo a crítica à estranha imagem da ironia da observação. Esta possibilita perceber que a vida histórica é, no Mundo luso-brasileiro, um eterno redescobrir de atos sem história. Segundo tais abordagens dissonantes, nossa compreensão consiste numa espécie de equivalente técnico da doutrina do pecado original da própria compreensão, e, portanto, viés de interferência no Livro Anteprimeiro — prolegômeno a toda História do Futuro de Antônio Vieira.

É da propriedade do acontecer a natureza do entardecer. Aquilo que aconteceu jamais se faz sob sol alto, à exceção de alguns poucos acontecimentos extraordinários. Em sua maioria, quando insistem em retornar nos vários dizeres sobre eles, acontecem sob a luz fria do amanhã, para logo se colocarem em novo entardecer discursivo. Nesse momento, tudo o que aconteceu recebe a qualidade da luz do fim da tarde: doar a matérias do mundo a imprevisão e a desconfiança de sua constante materialidade.

Deseja Vieira o mundo de todos os mundos. O todo de tudo é o que sempre é. Tempo e Mundo não se distinguem; desmaiam discursivamente como expectativas. O entardecer é a maneira espacial da temporalidade lusa seiscentista, pela qual qualquer acontecimento é quase-causa de qualquer outro. Lugar privilegiado da saudade do ter sido recorrente. Ponto eterno da familiaridade do desleixo, que sempre redescobre a sensação de não valer a pena pensar em demasia. Onde o não se insinua para as experiências e um triste sim acomoda-se à expectativa de se manter na esperança.

Antônio Vieira reconhece geograficamente a posição imagética de Portugal na história: a terra mais ocidental da Europa, um rosto que se precipita olhando para a parte inferior e invisível. A Colônia, do outro lado do Atlântico, é a terra mais ocidental do Reino. Tudo acontece por “heliotropo”. Contudo, as palavras são como estrelas: ordenadas como tal, só aparecem no ocaso. O sol de Portugal desaparece na Colônia americana e reaparece nas colônias do Oriente.

As palavras do jesuíta vieram da Colônia e para lá voltaram. A Colônia torna-se um andamento discursivo metaléptico. Pelos seus antecedentes dá a conhecer as conseqüências e vice-versa. Pelo sinal dá a conhecer a coisa significada, representando o anterior e o tardio das relações Metrópole-Colônia. Neste andamento, a forma privilegiada no Livro Anteprimeiro da História do Futuro é uma ironia sublimada da observação, que se nutre de redescobrir o que antes era o lugar dos Descobrimentos. Grave humor da morte, a um só tempo antevisão, materialização e negação do futuro da Metrópole, pois o futuro é um outro Portugal, necessário e fatal, o Quinto Império. Enquanto “tropo-que-reverte-outro-tropo”[2], volta para o ponto de onde se partiu, entrega-se de novo ao possuidor primitivo, os Descobrimentos.

Em Camões, o Oriente é visto como o lugar de onde se levanta o sol de Portugal, numa angústia de ter sido. Em Vieira o olhar se põe no Ocidente, ocaso de Portugal, e avista a aurora. Na História do Futuro, o futuro é a natureza-histórica dos Descobrimentos. Estes não representam em Vieira uma ação ou uma paixão. Devem ser compreendidos como o resultado da ação e da paixão, um puro Acontecimento. E como tal, não pode ser completamente real, pois seria somente pretérito. Não pode apenas ser imaginário, pois seria mera lembrança. Como compreender o Acontecimento? É necessário tomá-lo entre o acontecido e o estado de coisas que o provocou e no qual ele se efetuou. Logo, precisa-se tê-lo na compreensão como efeito, que está ligado à causalidade fora de si. Nesta falta de eixos de circunscrição, redescobrem-se estados de espíritos efetivos, ações realmente empreendidas e contemplações com força de efetução.

Desta forma, o Acontecimento-Fantasma é uma representação do acontecimento Descobrimentos. Representação em desvio, pois se distingue dos estados do aconteceu e de suas qualidades pretéritas, dos vividos sentimentos da lembrança e dos conceitos logísticos de sua eterna presença. Ele é participante de uma superfície ideal, espelhos e livros, e, portanto, efeito de leitura que transcende o interior de sua época e o exterior de sua leitura posterior. Enquanto superfície tem uma propriedade topológica, em função de colocar frente a frente a profundidade espelhada de seu passado e o motivo de olhar o fundo de sua leitura.

O Acontecimento-Fantasma, como num espelho, onde não se sabe quem ou que se encontra fora ou dentro, submete-se à dupla causalidade fantasmática. De um lado reverte as causas aparentes de tempo e lugar, sua profundidade; de outro, opera na superfície autônoma, sua quase-causa, nos vários dizeres de apóstrofe “vede”. Através desta quase-causa comunica-se com tantos outros Acontecimentos-Fantasma — o Milagre de Ourique, por exemplo.

Assim sendo, dado estarmos sob o signo do erro, esse destino da compreensão, continuamos. Há, então, efeitos diferindo de sua natureza, aquilo que aconteceu. Um que é manifesto como posição depressiva, quando a causa pretérita se retira em altura, deixando um campo livre à superfície do há-de vir novamente. Outro, efetuado por edipianização, quando a intenção pretérita, enquanto repetição, deixa o campo livre para sonhar um desejo sonhado como real desempenho da quase-causa, os Descobrimentos, a histórica-natureza da História do Futuro.

Nem ativos, nem passivos, os Descobrimentos podem ser apreendidos por Antônio Vieira, enquanto fantasma do seu discurso. A revelação do Mundo ao Mundo se faz de impassibilidade e idealidade do que aconteceu. No primeiro fazer-se o Acontecimento-Fantasma inspira uma espera desesperada, tudo se acha em vias de resultar e nada resulta efetivo. Pois é ferimento primário, sentido desvelador de eternos encobertos e desejados. No segundo fazer-se o Acontecimento revela e estende a superfície do que aconteceu, prendendo-se à sua quase-causa enquanto gênese dinâmica da compulsão de repetir, o que aconteceu enquanto re-acontecerá. Um crime perfeito contra o tempo e a verdade eterna do que já passou. Nesta precária violação da seqüência natural da temporalidade, o esplendor real do Acontecimento. Quem poderia ser capaz de incriminar Antônio Vieira por sonhar um desejo sonhado num Mundo solapado pelas descobertas que desvelam realidades em mudança?

Ao fazer valer o eterno esplendor do Acontecimento-Fantasma, em excessos para com suas causas pretéritas, Vieira constrói o efeito do inacabado do Acontecimento. E pede a si mesmo as suas efetuações, como se sobrevoasse o próprio campo da história do que aconteceu, fazendo de todos os portugueses filhos da ventura e da ousadia. Se a efetuação não pode completamente se cumprir, nem mais causar sua produção, pois é e está no pretérito, é urgente contra-efetuá-lo para devolver a Portugal o seu único momento de sol alto. Dar a ele um termo, transmutá-lo, e com isso tornar os portugueses senhores das suas efetuações e das suas causas. Se os Descobrimentos podem ser chamados de futuro da História, como não aceitar o seu fim para um novo início, a História do Futuro, sua redescoberta?

Mas o Acontecimento-Fantasma exige de Vieira uma tomada de posição. Enquanto biografia desfocada e desolada, a vida do autor coagula os movimentos na sua forma originária. Nesse sentido, a individualidade de Vieira se confunde com o Acontecimento-Fantasma. Não com ele próprio, mas com seus rastros que formam a moldura dos livros e espelhos da relação Metrópole-Colônia, Pátria-Eu literário-Mundo. O Acontecimento torna-se uma apreensão de si enquanto um indivíduo, uma proposição de fatalidade. Margarida Vieira Mendes admite que o movimento de Vieira, deixar Portugal para ser português, remete-se à fundação permanente do verdadeiro complexo das elites portuguesas[3].

Este sentimento de desterro, diz Vieira Mendes, é de enorme força dramática em vários autores, como Camões, Garret, Jorge de Sena, ou ainda Sá de Miranda e Herculano. E mesmo em Fernando Pessoa, apartado de identidade nacional e individual. E assim a autora constata: “em todos estes autores, a vivência literária do individualismo caminha de mãos dadas com o nacionalismo, duas entidades que se fundem, dois sujeitos — eu e a pátria — em relação quer de conflito, quer de conjunção de destinos”[4].

Independente do juízo que se possa fazer dessa clara afinidade entre a Pátria e o Eu literário, podemos admitir a fatalidade da forma originária do Acontecimento-Fantasma. Ele, por sua vez, é mais vigoroso para pensar o eterno desterro da literatura. Falemos por imagem, sem contornos históricos.

Há apenas uma cidade, Lisboa, mais antiga que Roma no dizer de Vieira. É cercada por tudo que a ela não pertence e por isso é dela. Dentro, alguns homens valorosos, sem temporalidade. Homens que a mantêm aberta para o mar, contra todos que querem murá-la. Os defensores sabem que a cidade será tragada pelo ferro e pelo fogo das eras. Sua batalha literária é inútil. Seu maior agressor é a própria escrita, que, como Aquiles, sabe que seu destino é morrer antes da vitória. Os séculos de batalha deram a Lisboa os elementos da magia de ser do Mundo. E é essa magia que, como Helena, faz com que os exércitos da literatura morram. Ela é uma radiosa sombra, onde dentro do presente escrito tudo é apenas aparência.

Uma outra história se precipita sobre a anterior. Aquela que vem de fora, voltando para casa. O regresso de Ulisses. Erra pelos mares. Demora-se em ilhas. Encanta-se. Mas o trauma é tão grande que aloca o sonho do que foi visto num desejo nunca sonhado. Com isso perde o encanto das musas e torna a contar a empresa sem delírio, através do relato de experiências repousadas. Tudo provém desta “vasta empresa exorcista. Dos demônios e fantasmas que, através de milênios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem irá deixar, se tanto, alguma vaga ou fugaz lembrança, em que as invenções mais delirantes só aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom senso”[5].

Resta, então, assegurar-se do mundanismo de uma arte, a escrita. A atmosfera mágica da cidade de Lisboa e o retorno de qualquer Ulisses parecem rarefazer-se à medida que penetramos na terceira história, a da busca. No passado toda empresa desbravadora era venturosa. Agora, a busca está condenada ao fracasso, pois “o viver o cotidiano nem os deixa oprimidos, nem os desata dos cuidados terrenos, e o freio que parecer modelar sua fantasia é uma esperança contente e sossegada”[6]. A literatura rebaixa a crença no Céu, para circunscrever o inferno de ter sido. Seria um realismo comumente desencantado, voltado para o particular e o concreto, que vemos predominar entre nossos cronistas portugueses?

A resposta é um sim lateral e indireto. O Eu literário se obriga a romper com isso e conta apenas com uma cidade, Lisboa. Aí se desenrola a última história, o sacrifício da literatura à Pátria. Todos desterrados no mesmo e em si mesmo, pendendo para a eternidade de noites inteiras, erguidas por lanças de ponta do material da escrita. Há Cristo. Ele foi e é o crucificado por romanas intenções de crença no Império. Logo, quatro histórias que durante o tempo seguem recontando a situação dramática do trauma original do Acontecimento-Fantasma.

O acontecimento do desterro repete-se nas proposições literárias que exprimem este ir adiante no triste humor da morte sem Pátria e em todas as partes. Contudo, o desterro não existe sem o elemento particular e traumático da proposição, os Descobrimentos. E tal elemento é o verbo no infinitivo do discurso, na frente de espelhos e livros, numa sublimidade literária que é por condição e por fado, redescobrir.

Na inversão especular, o Acontecimento-Fantasma dá testemunho do acontecimento impuro da literatura. Este é o infinitivo neutro da superfície, um extra-proposicional, que não é determinado por vozes, modos, tempo e pessoas. Combinação variável de pontos singulares na análise de uma gênese estática, redescobir.

Antônio Vieira, porém, nos deixou um lugar fora do centro. Quer novamente descobrir. Eis, então, um possível lugar de onde se olha o centro das preocupações, a Colônia. Contudo, não queremos tê-la como algo acabado por um delírio do historicamente determinado. Devemos tomá-la como superfície vítrea, espaço de profundidade ilusória e abuso de comentário crítico. Dessa forma, podemos primeiramente dizer: a historiografia dedicada a este assunto se manteve quase sempre numa relação metafórica do conhecimento[7]. Bem, de fato não há como fazer história sem estas figuras do pensar.

Houve um momento historiográfico em que a Colônia era pensada como elo complementar de um sistema de acumulação primitiva de capital. Algo nisto nos lembra a metonímia. Havia, então, uma sensibilidade de plenitude e vazio ao mesmo tempo, maneira pela qual a idéia de causa se manifestou nas áreas da imprevisibilidade acanhada dos homens. A sensação recorrente da escrita era consubstanciada pela evidência de que tal momento histórico nos anulava um pouco, nos isolava a contento da explicação e nos doava uma regressão de sombra no ir adiante, o limitado “desenvolvimento”.

Em outro momento, a Colônia tornou-se uma dinâmica internamente condicionada que assumia a precária autonomia pelo ar que respirava do mercado externo, em seu acumular de capitais. Algo nisto nos lembra a figuração organicista da sinédoque. A parte de dentro pelo todo de fora, o todo de fora pela parte de dentro. A representação torna-se uma substituição ao qualitativo de princípio aceitável e inevitável, a escravidão como pomar da explicação. A defesa psíquica desta compreensão volta-se contra o próprio eu da leitura da história, revertendo-se num princípio que já não mais permite perplexidade e espanto, pois já foram há muito explicados os preconceitos, misérias e similares.

Nesses dois momentos ainda vigoravam heterodoxias, atos de reflexão sob o mito da autoconsciência histórica. Necessidade de teoria, força conceitual e medida para o esquecimento da própria vida. Ainda eram os homens marcados pela necessidade de crítica ao mundo que circundava a intelectualidade. De qualquer forma, transportavam o conhecimento no veículo mimético de espécie e gênero da crítica, sendo este algo dos seus sonhos e responsabilidades.

No momento recente mostram-se alguns estudos sobre a Colônia através do viés da condição da vida colonial, revelações da necessidade de transferências de compreensões de além-mar. Não há mais crítica, mas táticas. A crítica participa das franjas das aporias contextualistas, tendo como princípio aquilo que lhe é mais próximo e curioso. Por isso, preocupação auto-referendada neste sujeito empírico, cunhado em relativismo antropológico e presentismo de suas temáticas que faz da subjetividade objeto.

Algo de metáfora ingênua se insinua nessas formas da compreensão. Crença numa precária dicotomia entre interior e exterior. Interior que abriga o máximo possível de hábitos historiográficos. Atitude que impede o movimento do pensamento, pois qualquer pensar que vigore põe em risco a arrumação dos objetos, como se estivessem dispostos numa sala de estar exótica. Do exterior vem o perigo, que é amansado na medida de uma narrativa por demais próxima de uma via crucis da crítica. A sensibilidade dessa defesa psíquica é um padrão de sublimação decantada que lá, no além-mar, esteve.

Na língua portuguesa duas palavras são típicas, segundo Aubrey Bell, na citação incômoda de Sérgio Buarque de Holanda, a saudade e o desleixo. A última das palavras implica “menos falta de energia do que uma íntima convicção de que não vale a pena”. Em Sérgio Buarque ela se converte na sensibilidade que aceita a vida, em suma, como a vida é, “sem cerimônias, sem ilusões, sem impaciências, sem malícia e muitas vezes, sem alegria”[8].

Enquanto existência, o desleixo faz da vida uma presença e uma ausência. Alegria e tristeza pouco se separam, comédia e tragédia ocupam patamares diversos apenas do ponto de vista e da distância aceitável do espectador. Como conceito extremado da história, o desleixo é o “não vale a pena” do ato sem história, repleto da historicidade de um único verbo, redescobrir, reação formativa da idéia sem vida da própria vida.

Na administração colonial a Metrópole é presença-ausente e ausência-presente, forma de reação da própria idéia de passagem para um último e final retorno. Mortificação da eficiência, pois a Colônia é o lugar da negação das ordens régias, distorção da ótica moral. Aqui cristãos da mesma pátria perseguem a própria condição discursiva da essência de seu papel de homens de Cristo. Como Reino, o desleixo faz-se ausentando-se de sua presença histórica e, como presença, na eterna busca de redescobrir o ter sido, sua condição de reação é formada pela duração da esperança.

O sentimento que melhor expressa que nada vale a pena é a saudade. Forma de sentir que exaure a si própria. Quase-causa de si mesma, a saudade admite a coexistência num mesmo ponto da ausência e da presença, um limite ótimo do próprio sentimento. Se a imaginação é pôr presente o que está ausente e ausentar de si o que está na presença, maneira formadora da memória e do temor de futuro, enquanto saudade é coágulo imagético e futuro retroativo, reação formativa de uma auto-ironia. Daí podermos manter ainda a série histórica, pois a ironia é também poética da contradição entre ausência e presença, extensão da metonímia, vértice da sinédoque, abuso metafórico, hipérbole contida e metalepse urgente.

A ironia, enquanto técnica dialética, é equivalente ótimo do pecado original do historiador, que afirma ser verídica a sua narração sem ter prontamente a verdade, pois não há verdade e sim verdades, sendo, então, algo verdadeiro por não ser de fato. Dessa forma, obtendo o circunstancial da ironia da observação, elevamos a mesma à quantidade emocional que nos leitores e observadores de Vieira investimos na nossa condição de vítima de nós mesmos e tópica de nossa auto e precária história. “Dizer isso não significa abandonar os reinos da arte e da ironia e entrar nos da pura subjetividade e preferência individual; as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, liberdade e necessidade. Explorar estes ironicamente é adentrar uma área em que o leitor já está envolvido”[9].

Temos, então, saudade e desleixo e uma ironia sublimada do verbo redescobrir. Deixemos Vieira, ainda, sonhar um desejo sonhado, seu realismo do natural espelhamento das experiências em livros, sempre por demais lidos e nunca totalmente terminados. Mergulha Vieira no único espelho de Portugal, aquele que preparou os Descobrimentos. Navega sobre livros.

Os acontecimentos recorrentes avançam sobre o Mundo do Mundo, a Criação, e seus elementos da Gênese e da Vida de Cristo, para quem, em última instância, Antônio Vieira escreve. A incorporeidade do ato de criar e de destruir se mantém na superfície das coisas. Desde os Descobrimentos, há um outro espírito que paira sobre o mar sem a capacidade de mais descobrir. Mas é através desse eixo relacional poético, inspirado no todo empírico das leituras, necessitando ultrapassar as dimensões do visível, sem cair no laço de uma idéia, que pode Vieira falar de dentro do espelho e sob as linhas dos livros. E com ele vamos nesta frágil barquinha[10] do sonhar um desejo sonhado, no irá descobrindo[11] da história da Pátria — Eu literário — Mundo, na realidade quimérica da Metrópole-Colônia, onde se irão redescobrindo o desleixo e a saudade de uma ironia velada por uma morte antecipada, a profecia. Assim chegamos a Portugal, ficando à porta da entrada da Biblioteca dos sonhos reais de Antônio Vieira. Pálidos olhos abertos, sonho de um homem obrigatoriamente acordado, que clama imaginando o que se encontra do lado de fora.

No segurar-se instantâneo da escrita, dobra-se o mundo no canto do sujeito. Os dados das leituras de Vieira são elementos públicos. Passam rápidos, porém, no singular eu e saem como imediatos e novidade: nem espero o teu agradecimento, nem temo sua ingratidão[12]. A segura fala de Vieira provém do pré-existente, dado que todo o assegurar-se provém do estar seguro na Promessa: benignidade de Deus contigo, devera dizer[13]. Esse acontecimento sobre-histórico, que se refere a outros acontecimentos enquanto atos sem história, objetiva-se como âncora tanto pública como privada, potencializa e atua, entra no porvir de um outro acontecimento sem história, o Quinto Império.

Se todo amanhã contém os ontens e hojes, e se todo o eu, enquanto acontecimento, está repleto de vocês, há que admitir que não existe possibilidade de invejar o futuro, pois ele logo entardece e desmaia na esperança. Para invejar o futuro seria necessário que o devir viesse controlado pela promessa e pelo perdão de pecados domados.

A quem ou a que Vieira perdoa? Podemos admitir o perdoar com outras perguntas. Perdoa a si? A Portugal, por deixar de ser? Às ignorâncias? A todos em função de ser o engano patrimônio absoluto dos homens no Mundo? As perguntas seriam várias. Mas promete a quem? Promete porque há uma Promessa: quero fundar em ti e no teu sangue um império para mim, disse Cristo a D. Afonso Henriques.

O que seria de nós se não fôssemos capazes de perdoar? Ficaríamos sem a capacidade de agir. Limitaríamos a nossa vida a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos. Estaria Vieira próximo desta idéia? Admitamos que sim. Se assim é, ele perdoa a todos e a si? A resposta tarda e nunca chega de fato, pois o homem, forçado pelas circunstâncias a dizer o que há-de ser presente[14], está sendo inevitavelmente mal compreendido. O próprio evento do perdão inverte as Esperanças de Portugal, condicionando o medo à companhia da absurdidade entretecida pela vida — quando seres reais, Reis, Profetas, Historiadores, Teólogos e Filósofos tornam-se contradições animadas, absurdos narrativos postos em ação na escrita.

O mesmo acontece quando nos obrigamos a cumprir nossas promessas. Se Vieira fosse incapaz de conservar a Promessa não teria identidade religiosa e estaria condenado a errar no valor de sua Fé. Ficaria acorrentado ao desamparo. Desnorteado nas trevas do coração. Enredado em suas contradições e equívocos. Há, então, no poder de prometer, aquilo que advém da Promessa, a luz que dissipa as trevas do desamparo e do desnorteamento humano. Mas isto é feito sob uma luz derramada na esfera pública de Portugal, que exige a presença de outros, para onde a escrita de Vieira endereça suas preocupações. O que confirma a identidade entre o que se promete e o que se cumpre a partir da capacidade de perdoar. Pouca significância existe em delimitar o expresso por Vieira como sonho ou realidade da intervenção religiosa no Mundo. Se for realidade não há como perder a sua validade. Se for sonho não se perde a validade moral, tornada inatacável no sonho.

A exultante segurança de Vieira em prever breves futuros para Portugal independe da relação que estabelece com o seu público ou com aqueles que o presenciam perante a Inquisição. Vieira não dialoga com seus ouvintes. O seu detrator é o seu maior rival: a História, intrinsicamente articulada à sensação de decadência. Bem, se há queda no quase desastre da “nação” — já que Vieira não teria elementos para fugir da importância consagrada narrativamente a Portugal —, não estaria aí um fato de consumação desejável? Não tornaria possível a ascensão de um estado sucessor e esplêndido, que faria cessar a fragilidade de Portugal perante as exigências de Vieira?

Vieira promete esperanças para Portugal, mas só por serem breves. Um futuro que não é aquele que há-de vir e sim aquele que já vem, este que brevemente há-de ser presente, o neque instantia de São Paulo[15]. Existe, então, um código moral último nas promessas e nos perdões de Vieira. Elas se baseiam em experiências e são alimentadas pela antecâmera do Agora pauliniano. O Agora e as experiências não são momentos individuais. Baseiam-se inteiramente na presença dos outros, sem os quais não vivem. Bem, são estas as formas de autodomínio que justificam e determinam o domínio que Vieira deseja exercer sobre o sonhar um desejo sonhado, na realidade de um escape. O perdão e as promessas concedem a Vieira a condição de pluralidade exigida para fazer acontecer.

Vieira é vítima do arquétipo do Prometer e do Perdoar, foi pego em sua própria armadilha e submerso no tempo. Ele indica a improbabilidade do evento, construindo uma disparidade entre o que se pode esperar e aquilo que acontece. A sua situação de encoberto pela desonra da Inquisição é um fato, a falta de força política antes existente é admissível. Portugal pós-Restauração não retoma aquilo que diz ter sido. Mas demos a ele o que ele deseja, imaginar-se forte e capaz de reverter as coisas que acontecem a ele e a Portugal.

Imaginemos que Vieira assumisse a máxima de São Paulo, a partir da expressão fé, esperança e amor (Coríntios, 13, 13). Na realidade a esperança, colocada entre a fé e o amor, apresenta-se como passagem entre Céu e Terra. Diante do pecado, a essência humana, a fé absoluta cede lugar a seu correlato mundano: a esperança. Antídoto à vergonha que se sente após pecar, a esperança recoloca o homem em direção da fé, além de capacitá-lo à ação no mundo, o amor.

Vieira não assiste ao sentido passivamente. Amor, temor, glorificação, como atitudes da alma cristã, tradicionalmente aparecem relacionadas à escatologia. O século XVII não pode mais alimentar o gosto escatológico. Seu símbolo passeia como forma-limite do trágico. A questão da vida não se apóia mais no transitório contraposto ao eterno. A transitoriedade da vida é o assim-deve-ser barroco. Na potencialização figurativa da escatologia, resta ao homem a naturalidade histórica, tragédia que recita sua face oculta, a comédia. Nos instantes mais trágicos da vida é possível ter a apóstrofe de um sorriso mórbido, motivado pela certeza do riso final da morte. A alegoria barroca recebe da comédia sua cidadania, que pela mortificação aproxima a tragédia daquela, lágrimas e risos.

Vivei, vivei Portugueses, vós que merecestes viver neste venturoso século![16]. Esta frase ressoa amplificando uma afirmação de Ovídio: “há quem goste do passado, mas eu me sinto feliz por ter nascido agora; esta época convém à minha maneira de ser”[17]. Nada pode provar que a frase de Ovídio estivesse ou não presente na mente de Vieira. Contudo, este espelhamento convexo de aproximação permite-nos pensar na força da arte amorosa que exalta o ir adiante e teima em metamorfosear o que está em queda num novo esplendor imperial.

Perdoa-se, então, a decadência de Portugal? Força-se uma correspondência para impedir um tormento? Seja aquele dos Portugueses ou do próprio Vieira? Encontra-se na artisticidade da escrita de Vieira uma relação entre a imagem mnemônica do ato sem história e a imagem fantasmática de uma ação, em voz e dedo que aponta, empiricamente desejada como uma história sem atos. O Livro Anteprimeiro acontece como princípio dos vencidos perdoando a si mesmos. Um direito de comutar a pena de morte por algo que a tem como mortificação, a alegoria máxima da natureza dos Descobrimentos.

A consciência de Vieira leva-o a ver a si mesmo e aos Portugueses como vítimas. É ele que está amarrado e preso na armadilha proveniente de suas ações anteriores. E é nela que Vieira se sente livre. Sua atitude é a de um homem confiante na realidade e na significação de suas preocupações, ao mesmo tempo em que torna-se vítima do absurdo da situação. A situação admite, portanto, os contornos do arquétipo da vítima da ironia sendo observada. Vieira se encontra submerso no tempo e na matéria que proverá sua escrita. Aceita o antever, uma lógica que presentifica e ausenta a cegueira em suas linhas, pois o sentido corporal da visão é substituído pela capacidade da voz em fazer ver aquilo que não é visto.

A nossa insistência na faculdade de perdoar como correlato da situação vivida por Vieira e por Portugal corresponde às próprias condições morais da religião cristã. O dever moral é óbvia moral, pois eles não sabem o que fazem. Contudo, esta faculdade não se aplica a casos de crime e de mal intencional. “O pecado, ao contrário, é evento cotidiano, decorrência natural do fato de que a ação estabele constantemente novas relações, e precisa de perdão, da liberação daquilo que fizeram sem saber. Somente através dessa mútua e constante desobrigação do que fazem, os homens podem ser agentes livres: somente com a constante disposição de mudar de idéia e começar, pode-se-lhes confiar tão grande poder quanto o de consentir em algo novo”[18].

O pecado que Vieira pressente, entretanto, é a medida máxima do apetite de futuros, um hábito de instante presente que carrega sobre si todo e completo passado. Antônio Vieira perdoa a inércia de Portugal no Teatro do Mundo. Mas o faz na forma de um riso irônico, que se renova a partir do alto: Deus não quebra as suas Promessas, inevitavelmente corrigidas por exigências práticas da sobrevida dos portugueses, onde as novas idéias dos homens se submetem à sublimidade da Promessa. Sob este aspecto, o perdão é o exato oposto da vingança.

Embora o perdão seja uma reação, assim como a vingança, sua capacidade é de preservar algo do caráter original da ação. O ato de perdoar é a única ação que não apenas reage, mas age de novo e de maneira inesperada, sem poder ser condicionada pelo ato que a provocou e de cujas ilações liberta tanto o que perdoa quanto o que é perdoado.

A exaltação de Portugal no Livro Anteprimeiro é clara em demasia. Isto nos permite estabelecer a idéia de que o que está sendo representado como prestes a acontecer é um comportamento inconscientemente confiante do verdadeiro estado de coisas de Portugal e do próprio Vieira. Portadores da máscara dramática, os Portugueses ouvem a voz de Vieira entrando e saindo do palco. E este palco é formado por um único Acontecimento, que diferencia Portugal do Mundo. Logo, enquanto drama, sua construção é feita por duas perguntas: O que está para acontecer? e Quem está para acontecer? O quem e o que das perguntas assumem o mesmo perfil: personagem e peça da mesma máscara dramática do perdão e da promessa aos Portugueses.

Os elogios aos portugueses no Livro Anteprimeiro são de fato assombrosas manifestações do perdoar e prometer. Portugal foi declarado como um amanhã entardecido e um desmaio de Mundo. Sem perguntas ou dúvidas, o questionamento sobre o que há-de ser presente inexiste como sentido. Vieira faz o leitor, e mesmo ele, voltar o olhar para o passado do ato sem história, pois daí vem o futuro. Deve, portanto, fazer exceder toda a presença dos Descobrimentos. Possibilita a presença do Acontecimento-Fantasma como inadequação. Para tê-lo é necessário uma pergunta não expressa: Para onde irá Portugal amanhã sem os Descobrimentos?

Mesmo sendo do futuro sua procedência histórica, os Descobrimentos são o absoluto e irreversivelmente pretérito. Experiência irremediável do pretérito como do devir, ambos absolutos, o instante presente da escrita de Vieira precisa admitir um tipo de justiça para além da vida presente. O Livro Anteprimeiro é uma vida pessoal, a vida do amanhã, um Acontecimento de ontem para vós outros, Portugueses. Logo, um para além do presente vivo em geral, um processamento imanente e ininterrupto da própria vida cristã.

Vieira clama aos Portugueses: sejam justos com aquilo que aconteceu. Ser justo significa situar-se num momento espectral, momento que não pertence mais ao tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadeamento das modalidades do presente (presente passado, presente atual — agora, presente futuro). Contudo, o irrefutável em Vieira é a justiça que deseja para si e para os Portugueses. Este direito que conduz a vida para além da vida, um estar presente efetivo no Acontecimento. Afetividade empírica e ontológica ao mesmo tempo, na direção da mortificação da própria vida advinda daquele Acontecimento, para ter a sobrevida de Portugal e a sua própria. A escrita de Vieira é um traço entre a vida e a morte. Espírito com o qual o autor precisa contar.

Antônio Vieira perdoa e age sobre aquilo que não mais acontece, posto ter havido um dia o Acontecimento. Intimamente ligados discursivamente, quanto é possível a ligação entre destruir e fazer, o perdão dado a Portugal e os Descobrimentos revelam o mesmo caráter. A condição pessoal, que não deve se confundir com o individual e o privado, levanta o que foi feito da poeira da história e perdoa em consideração ao que deixou de ser.

Embora o amor “seja uma das raras ocorrências da vida humana, possui, de fato, o inigualável poder de auto-revelação e inigualável clareza de perceber o quem, precisamente por não cuidar — de maneira quase alheia a este mundo — de o que a pessoa amada é, com suas qualidades e imperfeições, suas realizações, defeitos e transgressões”[19], Vieira empenha o quem e o que ao Acontecimento-Fantasma. Não enaltece o amor a Portugal sem a tutela do familiar, os Portugueses. E faz isto para impedir a imperfeição no amor, que é uma forma de ódio. O amor imperfeito é semelhante ao ódio perfeito. Conquista-os aquele que objetiva a perfeição do estado de alma, desligar-se do mundo para nele residir.

Em função da paixão que reside desconfortavelmente no amor, há uma tendência ao rompimento da relação entre o eu e o mundo constituído por nós e os outros. Enquanto durou o fascínio de Vieira por Portugal pós-Restauração, a promessa de um Acontecimento, filho do único ato sem história, perdurou. Este filho, como mediação entre amantes, representa o mundo, significação que acrescenta um novo mundo ao mundo existente. Mas a mundanidade dada por este filho do Acontecimento-Fantasma, o Quinto Império, resultado de um caso de amor, é também o fim deste. A natureza do amor, assim como a do próprio ódio, é extramundana. Enquanto tal é antipolítica, talvez a mais poderosa das forças antipolíticas.

Daí advém a evidência de que o Quinto Império é ultra-ortodoxo, radical, inteligente e incompleto conjuntamente. Ele é político por absoluto excesso de política. Uma sublimidade em queda que, por ser histórica e profética, se alimenta da beleza do estado de espírito do amor extramundano. Por certo, uma maneira de odiar perfeitamente o estado do mundo. Portugal deixa de ser o que não é e aquilo que diz discursivamente ter sido para ser um há-de ser religioso de todos os portugueses.

Entre a aparência da religião e a realidade da política, o amor de Vieira pelos Portugueses, assim como o da Colônia pela Metrópole, converte-se no respeito aos sofrimentos dos negócios humanos. Podemos, então, considerar a idéia da pergunta — para onde irá Portugal amanhã sem o seu Acontecimento-Fantasma ? — como um radical desejo platônico pela philia politike aristotélica: o respeito como forma de amizade que impede a intimidade e a proximidade exigidas pelo amor. Contudo, o que e o quem que estão para acontecer no drama histórico de Portugal revelam o sujeito da ação discursiva, os Portugueses. Para eles Vieira promete.

Ao contrário do perdão, que sempre foi considerado irrealista e inadmissível na esfera pública, a força estabilizadora inerente à faculdade de prometer sempre foi conhecida em nossa tradição[20]. Está presente no sistema legal romano, bem como na Bíblia, na descoberta de Abraão em fazer pactos, a Aliança com Deus. Desde os tempos de Roma, que o poder de prometer ocupou, ao longo dos séculos, lugar central no pensamento político.

O medo da imprevisibilidade é arrebatado pelo ato de prometer. Vieira promete aos Portuguseses: Para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o prazer e para vós, então, a glória, e entretanto as Esperanças[21]. Ela é maior agora e menor antes. Roma e Abraão, Império e Religião são agora mais. O mundo transformou-se em Mundo do Mundo. E assim, impregna os homens da necessidade de se fazerem de estatura menor do que o próprio Mundo.

Se a função da faculdade de prometer é aclarar o duplo obscuro dos homens — o fato de não poder contar só consigo e a falta de fé absoluta em si próprio —, se o Mundo é maior do que se imagina como mundo, a promessa deve se ancorar na supremacia baseada no domínio de si como um religioso perfeito e o governo de todos deve manifestar-se como governo do mundo por uma força extramundana. Tal simultaneidade é uma obrigação decorrente da urgência de manter a inteireza do Mundo do Mundo.

A propriedade temporal é furtada ao presente. O devir, este há-de ser presente, não é capaz de suportar a distinção ou a separação do pretérito e do futuro. Aquele há-de ser presente é a essência que absorve ambos os lados. A promessa de Vieira relata a obrigação de todos que se dizem cristãos. Do dever da crença decorre a capacidade humana de dispor do futuro como se fosse presente, impedindo a mera curiosidade do que há-de vir.

A promessa de Vieira é do reino do milagre, cuja dimensão é o poder da Fé em ser eficaz no próprio mundo da política. Podemos admitir o fenômeno moral da promessa de Vieira enquanto memória da vontade dos Descobrimentos, o que poria de lado a condição miserável da vontade de memória que gera a inércia em Portugal. Assim, o eu discursivo de Vieira tem necessidade de Deus e do mundo em geral. Como antipolítica da própria moralidade da política, a moral do Quinto Império apóia-se na boa intenção de neutralizar os riscos das ações portuguesas que cada vez mais, ao longo do século, se seduzem pelo gosto da vontade de memória do ter sido.

Eis, então, o milagre que salva o Mundo de sua ruína normal e natural. Em última análise, o milagre só pode ser o nascimento de um novo mundo: o mundo descoberto ao próprio mundo. Nesse sentido, a capacidade de operar milagres não é apenas divina. A Fé que remove montanhas é a mesma que perdoa. É a Fé de Vieira e a sua esperança no Mundo do Mundo que questionam o desleixo e a saudade como substantivos da inércia de Portugal, primeiro e último personagem de sua peça. É nos portugueses que se encontra a marca do redescobrir o ato sem história, “que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento”[22]. E dar a boa nova é admitir que os atos dos portugueses permitiram o seu fim no início, sendo, então, urgente dizer que está para nascer um filho do tempo do Acontecimento, o último e novo Império num ato sem história redescoberto.

A universalidade do Mundo da Criação, o Mundo que Deus criou, o Mundo que não o conheceu, e o Mundo que o há-de conhecer, tem a força máxima na linguagem de Vieira. Algo é dito e, ao ser dito, ultrapassa o seu aqui-e-agora, sendo possível anunciar que nem mesmo os cristãos o conheceram de fato e de direito. Mas essa transcendência só é alcançada pela arte da escrita do jesuíta em virtude da particularização radical nos Portugueses, num processamento ininterrupto e imanente da própria vida.

Nesta tensão, a lógica de uma obsessão da inteligência e a vontade de tudo unir e fazer concordar revelam a impropriedade de conferir a todos acontecimentos uma margem de segurança. A evocação de uma lógica onírica no Quinto Império, aceita confortavelmente pela idéia de utopia como padrão de enquadramento retardado no século XVII, permite a Vieira contar com o sentimento de conseqüência constrangedora associado a um momento de contingência.

A relação que Vieira mantém entre o Quinto Império e a idéia de novidade é a fundamental melancolia nostálgica do novo. O que é experimentado como utopia pela historiografia revela o patrimônio condicional, que ajuda à não-percepção do negativo contra o qual existe o discurso do jesuíta. A utopia de Vieira, como um querer que se quer realizar, demonstra o fim temporal do qual ela extrai sua violência. O Novo Império defendido pelo autor, enquanto criptograma, é a imagem da decadência embrulhada como presente para o seu tempo. Negatividade absoluta que leva a escrita do jesuíta a exprimir o inexprimível, a utopia. Esta palavra, tão imprópria a Vieira, recondiciona a natureza de qualquer história encontrar o seu telos. O seu não legitima aquilo que ele chama de Quinto Império. Ou seja: o Mundo assintindo ao seu aparecimento enquanto fim da tarde.

 

Notas

  • 1 VIEIRA, Antônio. História do Futuro (introdução, atualização do texto e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda - Biblioteca de Autores Portugueses, s/d.
  • 2 BLOOM, Harold. “Poesia, Revisionismo e Repressão”. In: Poesia e Repressão, Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994, pp.22-32.
  • 3 MENDES, Margarida Vieira. A Oratória barroca de Vieira. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.290.
  • 4 Idem, op. cit., p.291.
  • 5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p.11.
  • 6 Idem., op. cit., p.4.
  • 7 Usaremos aqui a compreensão de Harold Bloom sobre a imagem poética da escrita, o tropo retórico assinalado e a correspondente defesa psíquica. Todas estas compreensões se encontram na obra já citada - nota 1. Advertimos que os desvios são consideráveis.
  • 8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.110.
  • 9 MUECKE, D.C. Ironia e o Irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.76.
  • 10 VIEIRA, Antônio. op. cit., p.47.
  • 11 Idem., op. cit., p.45.
    12 Idem., ibidem, p.50.
  • 13 Idem., Ibidem, p.50.
  • 14 Idem., p.52.
  • 15 Idem., p.52.
  • 16 Idem., p.53.
  • 17 Citado por MAZZARINO, Santo. O fim do Mundo Antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p.33.
  • 18 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1983, pp.248-255.
  • 19 ARENDT, Hannah. op. cit., p.254.
  • 20 Idem., op. cit., p.255.
  • 21 Idem., p.55.
  • 22 LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p.18.