Dez anos dez temas

A morte na Glória

Eneida Maria de Souza
UFMG/CNPq

No apartamento da Glória, junto aos objetos guardados como relíquia e os móveis antigos, Nava escreve suas Memórias, optando por uma vida de sacrifício, com encontros escassos com familiares e amigos, para se dedicar à redação de sua obra. Minas Gerais é a grande protagonista de suas histórias, não só pela presença da família como imagem formadora das Memórias, pela passagem por Juiz de Fora e Belo Horizonte, como pelo ciclo de amigos residentes no Rio de Janeiro, constituído de colegas de geração: Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos, Carlos Drummond de Andrade, Juscelino Kubitschek, Rodrigo Melo Franco, entre outros.

Em Galo-das-trevas, quinto volume da série, Nava se auto-retrata, iniciando o texto com a descrição do apartamento onde reside, em sua condição de velho narrador, de alguém que mantém um diálogo com os mortos como fonte de suas Memórias. O interior burguês se reveste de exemplares peças que revelam a "adesão dos mortos aos objetos", a lembrança dos amigos que se foram, personificada nos retratos, numa cadeira, num encosto de poltrona, numa carta. Resume a técnica memorialista do escritor, miniaturiza as Memórias, por apresentar fragmentos das histórias de família e dos colegas através de pequenos objetos. Como laboratório de escrita, a casa-museu de Nava não pertence à categoria dos museus fossilizados, por se revestir de um movimento em direção à sua revitalização.

É de Walter Benjamin a reflexão iluminadora sobre o empenho da burguesia em buscar, no espaço interior das casas, uma compensação pelo desaparecimento dos vestígios da vida privada na cidade grande. A marca identitária que começa a se perder com o advento da modernização urbana e a emergência da multidão nas ruas transforma o indivíduo em colecionador de objetos e de pequenas relíquias, com vistas a conservar um pouco da assinatura pessoal perdida. São capas e estojos para chinelos e relógios de bolso, para talheres e guarda-chuvas, dando preferência a coberturas de veludo e pelúcia, utilizados com o objetivo de guardar a impressão de todo contato, valorizando-se o desejo potencial de posse sobre esses objetos. Nas palavras de Benjamin, "para o estilo Makart do final do Segundo Império, a moradia se torna uma espécie de cápsula. Concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando, assim, os seus vestígios, como a natureza preserva no granito uma fauna extinta." [1]

No entender de Marília Rothier Cardoso, Nava se apresenta, tanto como o século, como um homem velho, distante dos sonhos da vanguarda e da revolução, ao transformar a perda das ilusões políticas e profissionais em gesto rememorador: "Ao retratar-se em sua atividade escritural, o memorialista identifica-se com o artífice insone, que ora observa, de sua janela na rua da Glória, o amanhecer na baía da Guanabara, ora passeia pela casa, considerando cada objeto (quadro, livro, utensílio, móvel) colecionado ao longo da vida e distribuído pelos diversos cômodos." [2] É nesse ritual cotidiano que o memorialista recompõe a vida passada a limpo, ao contemplar os objetos e retratos que remetem ao seu passado familiar e social. A insônia aguça a memória, aumenta o tempo de vida e motiva o diálogo com seus fantasmas. O afastamento gradativo do escritor das obrigações cotidianas, do ambiente tumultuado das ruas da cidade grande, o coloca em diálogo permanente com o universo doméstico, com o convívio dos objetos que poderiam lhe restituir os resquícios de identidade. Essa cápsula protetora envolve a personagem num tempo suspenso e intransitivo, o da memória, que não se sujeita à rotina de um tempo marcado pelo dia e pela noite. Eterno vigilante dessa escrita do passado que o engole no presente, Nava encarna a figura do insone e do guardião desse museu imaginário, que é assim como denomina a sua residência na Glória.

Esse museu imaginário contém, em miniatura, a lembrança dos parentes, pequenos objetos mágicos que se configuram, portanto, como ruínas do passado. Lá estão, no armário comprado num antiquário em Fontainebleau, a medida para pesar ouro em pó do velho Halfeld; as lentes da bisavó Mariana Carolina; o porta-moedas de prata do avô paterno Pedro da Silva Nava; as abatoaduras de caveirinhas de marfim do pai; as miniaturas de xicrinhas, pratinhos, sapatinhos presenteados pela mãe. O pince-nez, adquirido em Paris no Mercado das Pulgas, condensa a imagem da avó materna, Inhá Luiza e a do Conselheiro Rodrigues Alves. Como num gesto de magia e aparição fantasiosa, o pequeno objeto reintegra o narrador à casa da rua Direita em Juiz de Fora, num retorno à infância. Funciona como objeto-madeleine, ao estilo de Proust, com poderes imaginativos para revisitar o passado. O acontecimento, registrado em Paris, no referido Mercado, tem o mérito de aproximar o procedimento evocativo da memória em Nava com o de Proust, pela mediação do objeto que atua como um "gatilho associativo".

É interessante ressaltar que o memorialista não só recebe como herança os objetos da família, transformados em objetos biográficos, como também sai à sua procura, ora quando em viagem, ora solicitando informações aos parentes e amigos. Ao adquirir o pince-nez, cujo efeito permite transportar o narrador para um pedaço da sala de jantar da casa de Juiz de Fora, Nava reforça o poder exercido pelo fragmento, capaz de provocar múltiplos desdobramentos na reconstituição imaginária do passado:

 

Espantado olhei com força o passeio e vi entre pedras de dominó, dedais de osso, flores de chifre, talheres desemparelhados, molduras sem quadro, pipos de irrigador, bobeches de vidro e argolas de guardanapo o pince-nez que referi e que dava caráter às fisionomias de minha Mãe e daquele político brasileiro. Era ele, com suas lentes e suas molas que estava me restituindo impressões da infância. Comprei-o comprando com ele um pedaço de Juiz de Fora, nossa sala de jantar da Rua Direita, todos meus verdes anos, minha coleção de selos com as caras de Floriano, Prudente, Rodrigues Alves, Pena, Hermes e aquela transposição fisionômica que se me mostrou capaz de ser gatilho associativo como a madeleine proustiana. (GT, p. 37-38).

 

Voltar a Juiz de Fora é também relembrar a figura matriarcal da avó materna, casada com o alemão Henrique Halfeld, que, além de cientista, ex-militar e proprietário de terras, era engenheiro-chefe da Província de Minas, sendo seu nome ligado à fundação de Juiz de Fora. Com a morte do pai de Nava, a família se viu novamente sujeita à tutela da avó, que pertencia a uma tradição escravocrata e patriarcal. Esse lado mineiro da família, que contrastava com a vertente cearense do pai do escritor, José Pedro Nava, de tradição liberal e democrática, constituía o preferido pelo memorialista. A infância é permeada da imagem do sobrado da rua Direita, que tinha como protagonista a figura da avó, a qual, com seu gesto autoritário frente às criadas e empregadas, controlava tudo com mão de ferro: "Pois assim mesmo velha, feia, indiferente e distante a Inhá Luísa tinha uma autoridade imanente, uma imposição natural e uma majestade espontânea que me fascinavam". (BC, p. 20).

Da família paterna, Nava irá herdar o gosto pela atividade intelectual, graças à influência de tio Salles, escritor e jornalista, responsável pela formação do adolescente. O autor deve a ele o apreço pelas leituras, as visitas a livrarias, o conhecimento da vida literária do Rio, além do exemplo de um homem educado e fino, sensível e companheiro. Os cartões postais enviados aos tios, quando estes moravam no Rio e Nava em Belo Horizonte, comprovam o papel desempenhado por eles, como tutores não só da sua formação intelectual, mas também de seu sustento financeiro. O registro de leituras do menino-Nava são acompanhados de solicitações referentes ao envio de dinheiro. Em 1917, um trecho da carta: "Agora eu ando ocupadíssimo com a leitura do Rocambole por Ponson du Terrail e já me acho no 14o. volume. Nunca li livro igual" [3] .

É pelas mãos de tio Salles que o menino irá possuir o caderno de desenho que o acompanhará como uma relíquia da infância, apontando o observador e artista futuro. De capa alaranjada, de folhas pautadas, o caderno recebia, conforme o momento no qual era reencontrado no meio dos guardados, novos desenhos, que formavam camadas superpostas de registros de vários anos. Na sua função de objeto biográfico, o caderno atua perfeitamente como metáfora do grande livro de memórias de Nava, por evocar não só a trajetória do memorialista de 1910 a 1918, mas também de conter os procedimentos a serem utilizados na reconstituição plástica dos lugares e de suas personagens: caricaturas, paisagens do Rio, marinhas, esboços de estórias de quadrinhos, personagens do Tico-Tico, e assim por diante.

O objeto-fetiche guarda os resíduos dos lugares por onde passou, a memória das mãos que o tocaram, transformando-se em imagem encarnada dos antepassados, que, fragmentariamente, deixaram aí o seu traço. Constituído de pedaços de paisagens, de impressões diversas, de cores e odores petrificados, o caderno de desenho sintetiza uma época e se revitaliza como uma madeleine proustiana, ao ser capaz de recompor, imaginariamente, cenas perdidas da infância:

 

Esse caderno traz nas suas páginas o pó de uma longa seqüência de casas cujo ambiente tornou-se dele inseparável. Impregnou-se dos ares do Rio Comprido, do mofo de Juiz de Fora, da luminosidade de Belo Horizonte. Esteve na Floresta, em Timbiras, na Serra e Padre Rolim.... Tem poeira carioca e poeira de Minas. Foi folheado por dezenas de mãos agora mortas, cujo suor vivo e cujas impressões digitais deixaram nele - para sempre ! - seu traço".(BO, p. 353-354).

 

Nesse ambiente do apartamento da Glória permanecem os objetos herdados, presenteados e comprados pelo seu proprietário. Guardião da memória familiar, narrador da vida literária e dos acontecimentos políticos da Belo Horizonte dos anos de 1920 e intérprete da cartografia das ruas do Rio de Janeiro, Nava poderia se considerar, em 1984, um escritor realizado e reconhecido pela obra que o inscrevia como o grande memorialista brasileiro do século XX. Mas dentre os objetos pertencentes ao interior da casa, se escondia aquele que viria a ser o instrumento do suicídio do escritor, um revólver, que dispensou qualquer valor de culto, impondo-se como objeto de uso e não como objeto-fetiche. Simboliza, tragicamente, o tempo presente das Memórias, o acontecimento inesperado e fortuito que interrompeu, num átimo, um projeto, um futuro e o restante da história a ser escrita. Esse ato legitimou a troca entre a caneta, a máquina de escrever, utilizadas no exercício da ficção, e o revólver, usado como arma de morte.

A comparação com o destino letrado de J. L. Borges torna-se aqui pertinente, ao fazer-se referência à morte do avô do escritor argentino, causada pelo disparo de um rifle Remington, durante a realização de uma das guerras civis na Argentina. Ao contrário de Nava, que é morto pelo disparo de uma arma, Borges transfere, ironicamente, a marca do rifle que matou o avô pelo aparelho de barbear, da mesma marca Remington, que utiliza todas as manhãs: "Esta foi a primeira vez que os rifles Remington foram usados na Argentina, e agrada-me a fantasia pensar que a firma que me barbeia todas as manhãs traz o mesmo nome da que matou meu avô" [4] . Entre as armas e as letras, Borges escolhe o destino literário, em oposição à história familiar guerreira. Nava, usuário cotidiano da máquina de escrever Remington, decide trocá-la pela aventura da morte. Entregue às letras como força vital e como recomposição da memória familiar, pessoal e de sua geração, o escritor se deixa dominar pela ação destruidora da arma, que corta o fio da memória e da vida.

Dos objetos relacionados com a morte, ficou apenas como relíquia a redução do punhal em prata, "cabo cravejado de crisólitas fingindo brilhantinhos", insígnia maçônica usada pelo pai numa estola negra. Destituído de sentido guerreiro como tradição de família, o punhal se opõe ao revólver, por funcionar como adereço e simulacro da arma real, além de representar a filiação a uma instituição leiga. Médico como o filho, o dr. José Pedro Nava pertencia a uma família de literatos, de formação liberal, dedicou-se inteiramente à profissão e morreu prematuramente, aos 35 anos, de broncopneumonia infecciosa. A sua filiação à Maçonaria, condenada pela sogra Inhá Luiza, colocava o pai em permanente desafio frente aos católicos conservadores de Juiz de Fora, reiterando a sua ligação com o lado esquerdo e revolucionário da família e da cidade, a outra margem da rua Halfeld:

 

 [...] e animado por nosso primo Mário Alves da Cunha Horta, pedreiro livre emérito, meu Pai ousara tripingar-se! Primeiro, Cavaleiro da Rosa-Cruz. Depois da Águia Branca e Negra. E freqüentava noitantemente a casa maldita, sempre escura, de janelas e portas herméticas." (BO, p. 15-16).

 

Médico como o pai, Nava sempre se mostrou atraído pelo seu lado iconoclasta, pela opção de uma vida que contrariava os princípios conservadores da família, além de se sentir muito próximo da herança legada pela linhagem paterna. A relíquia deixada pelo pai como símbolo de rebeldia, talvez incentivasse o mesmo sentimento em Nava. Mas o instinto de auto-destruição sempre acompanhou o escritor durante a sua existência, tornando-o um estudioso do tema, pelo qual se apaixonou, a ponto de ver-se impedido de vencer a morte.

A 13 de maio de 1984, Pedro Nava busca a morte na Glória, dando um tiro na cabeça, próximo à rua onde morava. Tradicional reduto da boemia carioca, o bairro que abrigou o escritor por muitos anos torna-se palco de seu suicídio, gesto que sela o ponto final da arte e da vida. Morte literária, trágica, inexplicável e exposta como espetáculo em ambiente público, antes que o escritor terminasse Cera das almas, sétimo livro das Memórias. A expressão usada por Affonso Romano de Sant' Anna, "Um tiro na memória", em poema sobre a morte de Nava, interpreta o ato suicida como resultado da impossibilidade de manter a conjunção entre arte e vida, partindo-se para a morte e o esquecimento: "Um tiro na memória:/a mão que inscreveu outros/apagou a própria história" [5] .

Na sua trajetória pelas ruas da cidade, como as de Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, o antigo leitor e flâneur não mais se encontra em sintonia com os transeuntes do final do século XX. Prostitutas, travestis e desempregados substituem, no ambiente citadino, o habitante estável da cidade moderna, instaurando-se, nesse cenário, o nomadismo e o deslocamento. A periferia invade o centro e os sujeitos encontram-se desprovidos de identidades fixas, de referências que os integrem à paisagem urbana. A flutuação desse espaço permite a Nava passar de flâneur a voyeur, por não mais se colocar como o caminhante que descobre e inventa a topografia urbana, mas como quem se perde no espetáculo noturno e opaco da marginalidade.

Integra-se para sempre ao mundo da rua, desta vez como vítima da passagem de uma categoria a outra, de flâneur a voyeur, deslocado na superfície de uma cidade que não responde ao diálogo entre seus habitantes. O escritor se incorpora, pela morte, ao ambiente dominado pelos gauches da vida, inscrevendo-se como um de seus ícones. O suicídio permite interpretações as mais equivocadas, abrindo-se o espaço para o lado obscuro de um texto inacabado e misterioso.

Ao morrer, Nava ocupava o cargo de Presidente do Conselho de Proteção ao Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro. A memória pessoal do escritor gritou mais forte do que a memória coletiva da cidade, interrompendo-se o trabalho de preservação da história alheia. Ao decidir dar fim à vida, o escritor se integra ao patrimônio sob a forma de uma doação, ato público que, no auge da carreira como escritor o congrega ao bairro onde residia. Transforma-se em peça desse patrimônio, ao ser traído pelo exercício diário e vital de luta pela proteção e conservação dos bens culturais, relegados ao abandono e ao esquecimento. Inscreve-se no cenário da Glória com a marca do sangue, assinatura que passa do papel para a rua, num gesto de pertencimento à cidade que o acolheu durante mais de 50 anos. Sai da página do livro e penetra no espaço público como anônimo e gauche; salta da ficção para a morte, alcançando a consagração póstuma.

Os sinais desse destino já se faziam notar nas Memórias em cenas que remetem tanto ao desejo do autor de suicidar-se quanto ao suicídio de sua noiva Lorena. Ou ainda, na atitude precavida de Nava em escrever, em 1975, carta para seus amigos - como Afonso Arinos e Carlos Drummond de Andrade-, com recomendações sobre as providências a serem tomadas quando de sua morte: um enterro simples, sem flores, e o embalsamento do corpo.

"De um homem que não existe" é o título do conto de Nava publicado na revista Ilustração Brasileira, em 1923. O tema gira em torno de uma personagem entediada, pessimista e marcada pelo spleen do final de século. Com forte influência de Anatole France, o texto se reveste de um tom impressionista e decadente, o que culmina no suicídio da personagem. No entanto, até a morte é encarada na sua banalidade, por se apresentar, como a vida, desprovida de sentido. Atirar-se do 5º andar de um edifício significa, para o narrador, uma "falta de asseio e de elegância", em virtude do crânio fendido e esburacado se expor em cena pública. O corpo do morto é visto pela população como empecilho para se transitar no espaço "limpo" da cidade. Entre as poças de sangue que atrapalham o trânsito, o espetáculo da morte não causa nenhuma compaixão. Estaria aí uma das sementes da obra-vida suicida de Nava? Ou se trataria antes, da amarga lição de ser a morte trágica indiferente ao olhar alheio, e, portanto, inútil e sem sentido?

Esse conto, renegado por Nava pela sua má qualidade literária e fruto da experiência ainda precária de um iniciante, lhe é entregue por Drummond, num de seus encontros semanais no Rio. A data, 1975, coincide com aquela em que Nava escreve a carta-testamento e a envia a alguns amigos, entre eles, o poeta. Vencido o impulso de rasgar a publicação, o memorialista a mantém entre seus escritos, como prova de uma estética balbuciante e de um tempo precioso vivido aos 20 anos. No entanto, é possível reler esse gesto como a outra página da carta-testamento, desta vez como um documento que lhe é oferecido pelo amigo e que contém uma cena de suicídio. Entre rasgar o conto e guardá-lo como objeto de culto, prefere ficar com a segunda opção. A idéia de suicídio permanece guardada na gaveta, até finalmente ser materializada pelo autor do conto, ao se matar e se expor publicamente na rua onde morava. A carta-testamento, lacrada até a sua morte, atua igualmente como um objeto dotado de valor de troca e destinado a se manter em segredo até o momento de ser lida. Em Beira-mar, Nava narra o episódio, justificando as razões pelas quais decidiu guardar o conto:

 

Com o passar dos tempos comecei a ter horror desse cadáver no armário e julgava meu crime prescrito quando imaginem! Correndo 1975, em casa de Plínio Doyle, o Drummond, malicioso, me passa um envelope. Talvez você goste de possuir essa obrinha. Descerrei. Era o meu conto! Trouxe-o para casa com a intenção de matá-lo outra vez, desta feita, enterrá-lo. Antes resolvi reler. Perdi a coragem, não rasguei, guardei com amor porque aquela tolice tinha com ela uma ou outra coisa sofrida e preciosa: um ar de meus vinte anos e de sua estética balbuciante..." (BM, p. 87).

 

Nava interrompe o projeto da escrita memorialista quando está narrando os acontecimentos da década de 1940, após ter optado pela abertura de seu texto aos recursos de âmbito mais ficcional. Inventa nomes para as personagens, cria diálogos romanescos, além de reduplicar, através do alter-ego Egon, o sujeito-narrador, por sentir a precariedade e a complexidade do texto autobiográfico. Narrar e viver, narrar e resistir, narrar ou morrer. Como enfrentar o desafio de se exibir diante do outro? Os subterfúgios da escrita, a criação de duplos, a simulação pelas máscaras denotam, no nível autobiográfico, a força da ficção como afastamento do vivido e a opção pelo artifício como preservação da imagem do sujeito-narrador.

O Brasil, em pleno clima de abertura política, perde o seu memorialista mais efusivo, cujo projeto de recomposição da história de seu tempo se valera da convivência do autor com uma elite de intelectuais responsável pela formação cultural e política de um país moderno. O cenário pós-urbano do Rio de Janeiro perde um dos maiores defensores da revitalização da cidade, uma saída possível para se recompor os já então perdidos ideais de cidadania.

 

A assinatura na glória

 

A assinatura de Pedro Nava nos originais de O círio perfeito - quatro manchas vermelhas e as palavras escritas pelo autor, "meu sangue", anotadas a lápis [6] , comprova a estreita associação entre a escrita e a vida, a memória e o sujeito, a assinatura e o sangue. O desejo do memorialista de imprimir, no corpo do texto, a sua inscrição, atua como registro mais forte do que o do próprio nome. No rascunho do texto a ser publicado, é possível sujar o papel com o sangue, deixar implícita a concepção de escrita como sacrifício vital, escrita na qual se unem, pelo menos materialmente, o suporte do texto, o papel, com o sangue, substituto da tinta que marca a narrativa autobiográfica.

Se a literatura é considerada como "espelho de tinta", na feliz expressão de Michel Beaujour, principalmente aquela de natureza autobiográfica, aqui o sangue configura-se em metonímia da bio, da vida, capaz de dar vitalidade à grafia. O distanciamento autoral no gesto escritural assume outro sentido nessa cena, pois o que se busca é a proximidade, ainda que de forma virtual, com o texto. A marca de autenticidade da autoria, entendida como impressão do sangue sobre o papel, repete o ritual de consolidação da figura do escritor como suicida. A escrita mataria o sujeito, o autor ou vice-versa? Escrever as memórias, penetrar no mais recalcado momento de experiência pessoal corresponderiam ao gesto irremediável de começar a morrer? A leitura do texto memorialístico, sinalizada pelo sangue sobre o papel se oferece também como instante de comunhão com o autor e com a obra, os quais se apresentam sob a forma de um ritual de sacrifício. Nava constrói uma imagem de autor para si e para os outros, que pode ser múltipla e fugidia, embora esteja dramaticamente inscrita nos documentos e em seu arquivo privado.

Em obra dedicada ao assunto, Jacques Derrida [7] afirma não haver arquivo sem o espaço instituído de um lugar de impressão. Acrescenta ainda que esse discurso se instala na cena da escavação arqueológica, abordando, inicialmente, a "estocagem das "impressões" e a cifragem das inscrições, mas também a censura e o recalcamento, a repressão e a leitura dos registros." Esse lugar de impressão, entendido tanto no sentido literal quanto metafórico, remete não só ao registro do arquivo pela tipografia, da impressão através da tinta e do papel, como às marcas impressas sobre o corpo. Dentre as inúmeras formas dessa impressão, o filósofo cita a circuncisão judaica, lida na sua função de um documento de arquivo. Suplemento da castração, a circuncisão cumpre o papel de um arquivo singular do sujeito, arquivo de pele que funciona como a escrita judaica, camada sobre camada. Em ambos os casos, o arquivo se lê enquanto escrita, na qual se acham condensados os suportes relativos ao papel e ao corpo. O batismo, ritual de origem cristã, simboliza igualmente a idéia de arquivo, prescindindo de um documento que o comprove, pois a marca se deixa fixar pelo ato e não pela escrita.

A morte na Glória tem a força de reunir as duas imagens: a marca do sangue na página e a marca do sangue na rua. Se a assinatura do autor substitui a tinta pelo sangue, o relato autobiográfico culmina com o pacto de morte, ao repetir, com o suicídio, o registro literal do sangue no corpo do escritor. Em Nava, o sangue reforça a concepção de arquivo exterior, capaz de permanecer como sinal de autoria e de escrita do corpo, legitimada pelo seu teor fantasmático.

O espaço da marginalidade, o ponto nômade das prostitutas e travestis, na Glória, substitui o ponto de encontro do literário Bar do Ponto dos anos de 1920, em Belo Horizonte, local formador da elite intelectual mineira a que pertencia o memorialista. Da modernidade nascente na cidade letrada ficaram os resíduos, causados pelo declínio dos valores e pela emergência da barbárie atuantes na metrópole contemporânea. A perda gradativa do desenho urbano significa, para o cidadão, a diluição de parâmetros que pudessem garantir a sensação de pertencimento a um lugar e a um tempo definidos. Instaura-se, portanto, a nostalgia do traçado urbano original como forma de estabilidade subjetiva de seus habitantes. Mas, o ambiente moderno no qual o cidadão aos poucos se inscreve, lhe propicia, entre outras coisas, a experiência da solidão, do anonimato e da massificação. É alto o preço a ser pago, ao final do século XX, pelo convívio com a modernização urbana e social, considerando-se que, já em sua primeira década, Carlos Drummond de Andrade sentia-se perdido diante da geometria rígida das ruas de Belo Horizonte: "Por que ruas tão largas?/ Por que ruas tão retas?/Meu passo torto/Foi regulado pelos becos tortos/De onde venho." [8]

A morte de Nava, na década de 1980, coincide ainda com a ante-véspera do processo de globalização, em que toda a estrutura social passa a ser absorvida pela produção capitalista. Reconfigura-se o sistema fiduciário dos signos, onde tudo se converte em termos de valor de troca, no império da mercadoria. Por essa razão, as grandes corporações e as populações excluídas se encontram em conflito na paisagem urbana, o que provoca a urgência de se visualizar uma outra cartografia. Irredutível a um mapa urbano convencional, com seu traçado capaz de indicar a localização das edificações ou as diferentes formas de ocupação do espaço, a realidade pós-urbana carece de pontos fixos, pela impossíbilidade de traçar os limites desse mundo fluido:

 

a cidade é basicamente um espaço demarcado, compartimentalizado por uma grade das vias de transporte e das funções. Mas a metrópole engendra o seu oposto: terrenos baldios, desertos urbanos, ocupações temporárias, imensas favelas moventes, vias expressas sem parada, lugares abandonados. Territórios não mais circunscritos pela habitação, pelo trabalho ou pelo capital. [9]

 

O último telefonema recebido por Nava naquela noite de domingo, 13 de maio, foi o que o levou a cometer o suicídio, sendo ignorado o diálogo aí travado. Mas a ameaça de chantagem é o que prevalece, sugerindo a submissão do escritor a um sistema de trocas sociais, movidas pelo comércio de bens e de valores morais. No meio de personagens que fazem da rua o seu sustento e se utilizam do corpo como algo dotado de valor de troca, o memorialista encerra o pacto com a vida, trocando-a pela morte. O risco da escrita da memória se configura como a materialização de sua vertente trágica, na qual o criador é tragado pelas vicissitudes de um destino incontrolável. Torna-se desnecessário e inútil discutir sobre as causas do ato fatal, pois o que importa é a perda irreparável de um dos maiores memorialistas brasileiros.



[1] Walter Benjamin, Obras escolhidas III: Charles Baudelaire - um lírico no auge do capitalismo, São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 43.

[2] Marília Rothier Cardoso, "As cidades da memória: uma leitura benjaminiana de Nava", Semear, n. 3, Rio de Janeiro, Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, PUC-Rio, 1999, p. 168.

[3] Carta enviada por Pedro Nava à tia Alice Salles, Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, Acervo Pedro Nava.

[4] Jorge Luis Borges, Perfis, um ensaio biográfico, Porto Alegre, Globo, 1977. p. 67-68.

[5] Affonso Romano de Sant'anna, "Poesia e comunicação individual". In: TV ao vivo, São Paulo, Brasiliense, 1988. Apud Ana Cristina Chiara, Pedro Nava - um homem no limiar, Rio de Janeiro, Eduerj, 2001.

[6] Flora Süssekind, "A página do lado". In: Papéis colados, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1993, p.253-259; Antônio Sérgio Bueno, Vísceras da memória: uma leitura da obra de Pedro Nava, Belo Horixonte, Ed. UFMG, 1997.

[7] Jacques Derrida, Mal d'archive, Paris, Galilée, 1995.

[8] Carlos Drummond de Andrade, "Ruas". In: Esquecer para lembrar - Boitempo III, Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p. 90.

[9] Nelson Brissac, "Cidade desmedida", Brasmitte. Brás.São Paulo, maio de 1997, p. 40.