Dez anos dez temas

A variável concordância do pronome lhe nas cartas de Vieira

Eneida Bomfim
PUC-Rio
Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses

1.     Considerações preliminares

É costume, nas gramáticas ou nos tratados do modelo tradicional, os fatos gramaticais virem ilustrados ou abonados com exemplos de escritores considerados autoridades no uso da língua. Antonio de Morais Silva, o grande dicionarista do século XVIII (a primeira edição do Dicionário é de 1789), ainda hoje fonte de consulta obrigatória com relação a textos anteriores à sua época, declara no Prólogo da 1a. impressão: "Os autores, com que autorizei os Artigos addidos, são Portuguezes castiços e de bom século pela mayor parte:". Moraes utiliza, com freqüência, abonações de Vieira que cita a partir dos Sermões, das Cartas e da História do futuro [1] . Como se vê, menos de um século depois de sua morte, Vieira já é um clássico. Desde então, não tem abandonado nossas gramáticas. Os dois grandes baluartes dos estudos tradicionais de sintaxe do português, Epiphanio Dias [2] , em Portugal e Said Ali [3] , no Brasil, povoam suas páginas com exemplos de Vieira. No século XX, ainda o citam, sobretudo no campo da sintaxe, Sousa da Silveira [4] , Antenor Nascentes [5] , Rocha Lima [6] , entre outros. Paul Teyssier [7] , com referência ao emprego da preposição a, introduzindo complemento direto personativo, faz alusão ao uso sistemático desta construção em Vieira e aponta os casos em que, na língua atual, o uso é obrigatório.

Uma língua não herda a sintaxe de outra que lhe deu origem. O português não tem, por exemplo, o duplo acusativo, mas possui estruturas sintáticas específicas, correspondentes àquela construção latina. Se os sons e as formas de uma língua não são estáticas, também não o são as estruturas sintáticas. No caso do português, das fases mais antigas aos nossos dias, há mudanças sintáticas significativas. No que toca à concordância e à regência, há alterações importantes que se efetivaram a partir do século XVII. Neste século e no anterior, alguns verbos possuíam dupla sintaxe, como, por exemplo, obedecer. Com relação a esses tópicos, os textos do padre António Vieira oferecem terreno propício à pesquisa, não só pela riqueza da expressão lingüística, mas pela autoridade incontestável do autor.

Em trabalhos anteriores, ocupei-me, parcialmente, de alguns tópicos característicos da linguagem de Vieira, tais como a expressão da concessividade, o emprego do gerúndio com fins retóricos, a oposição entre indicativo e subjuntivo em construções subordinadas, a concordância do particípio passado com o complemento direto do verbo, o emprego de por com valor final, sem alongar a lista. Muitos desses aspectos focalizados representam uma fase, quase sempre final, de um processo de mudança. Algumas vezes pode-se dizer que certos exemplos de Vieira são variantes estilísticas, porque a mudança já estava consolidada na época.

Um estudo das peculiaridades sintáticas do texto de Vieira é bastante promissor, mas não pretendo ocupar-me, agora, do tema em geral. Nestas considerações, a proposta é apresentar algumas notas relativas ao uso do pronome lhe, mais especificamente da situação da variável concordância (<concordância>) no emprego desse pronome, nas Cartas. Serviram de base para o corpus as cartas que J. Lúcio D'Azevedo reuniu com o subtítulo "Tempos de Missionário" (junho de 1651 a junho de 1661). [8] Foram levantadas todas as ocorrências do pronome e analisadas, com o intuito, num primeiro momento, de reconhecer sua função no texto. Posteriormente, a análise concentrou-se naqueles empregos em que, pela norma culta atual, o pronome deveria apresentar a forma de plural por efeito da concordância. A proposta é levantar hipóteses sobre as condições de ocorrência das variantes [+concordância] e [-concordância], doravante [+conc.] e [-conc.], no uso de lhe Antecipo que o texto de Vieira, no que concerne ao tópico pesquisado apresenta variação, com tendência significativa a favor da variante [+ conc.].

Para alcançar o objetivo pretendido, é necessário: 1.determinar, preliminarmente, as possibilidades de funcionamento do pronome lhe na língua portuguesa; 2. confrontar os resultados com as realizações no texto de Vieira e 3. verificar a coincidência entre as variantes pesquisadas e alguns tipos especiais de emprego.

De início farei uma rápida digressão sobre as funções exercidas pelo pronome lhe na etapa atual do português. Para tanto será necessário recorrer a alguns conceitos que estarão na base da análise a ser realizada.

2. Revendo e elegendo conceitos

As dimensões deste trabalho não permitem o aprofundamento que a matéria merece. Limito-me a apresentar um posicionamento teórico mínimo, necessário ao tratamento do assunto. Não me ocuparei diretamente dos conceitos de 'transitividade' e 'transitivo' [9] . Há muito o que ser revisto a esse respeito e apenas registro que os conceitos tradicionais de 'transitividade', 'complemento', 'objeto direto' e objeto 'indireto', entre outros, podem gerar equívocos e contradições. Com respeito a essa última categoria, as propostas são divergentes. A maioria dos compêndios considera objeto indireto o complemento preposicionado. Outros, entre os quais Rocha Lima [10] e Bechara [11] , restringem a denominação ao complemento introduzido por a, excepcionalmente para, que tem o papel de beneficiário ou o de destinatário do conglomerado verbo + objeto direto e pode ser comutado por lhe/lhes, quando se refere à terceira pessoa.. A denominação estende-se, também, ao complemento de um pequeno grupo de verbos que se usavam com dativo em latim e a outros que, embora não se construíssem com esse caso, representam especializações de sentido e se empregam com um termo regido da preposição a (querer, valer). Em comum tais complementos têm a possibilidade de substituição por lhe/lhes, como já referido anteriormente. Não é pacífica a classificação 'complemento' para todos esses elementos. Azeredo [12] opta por estender a denominação 'adjunto verbal' ao chamado 'objeto indireto' que segue o objeto direto. Apresenta como argumento o fato de o termo não ser selecionado pelo verbo, como o são os complementos relativos e de os pronomes átonos, a que se atribui a função de objeto indireto, além de se restringirem a representar elementos que têm o traço [+humano], doravante [+ hum.], poderem agregar-se a qualquer verbo, independentemente de sua predicação (O sucesso nos subiu à cabeça).. Essa questão merece aprofundamento que não cabe aqui.Será retomada por ocasião da análise dos dados. De fato, o vínculo do termo com o verbo é débil e às vezes questionável.

O rótulo 'objeto indireto' vem abrigando, tradicionalmente, realidades lingüísticas distintas, quer do ponto de vista semântico quer sintático. O padrão mais comum é aquele referido anteriormente que tem a chancela de Rocha Lima e Bechara.

Fogem a esse padrão frases como as que se seguem, cujo verbo prevê apenas um complemento regido de a, passível de substituição por lhe/lhes.

 

1. Os livros novos pertencem ao João.         
1'. Os livros novos pertencem-lhe.    
2. Este departamento pertence a outro setor. 
2' ?Este departamento pertence-lhe.  
3. Ela obedece à patroa, sem restrições.       
3'. Ela obedece-lhe sem restrições.    
4. Ela obedece aos caprichos da moda.        
4' ?Ela obedece-lhes.

 

Sobre os elementos em negrito pode-se dizer que atendem, em parte, às características apontadas pelos dois mestres citados. Nos exemplos 2' e 4 ', a seqüência destacada não apresenta o traço [+hum.], nem mesmo [+ animado], não podendo, em princípio, ser substituída por lhe. Entretanto a construção segue o esquema sintático dos verbos 'pertencer' e 'obedecer'.e nada impede que o termo, dentro dos critérios apontados, seja reconhecido como objeto indireto.

Obedecer' é um verbo que as gramáticas registram como de regência variável na história da língua. Rocha Lima [13] observa que essa dupla sintaxe ocorre na linguagem dos séculos XVI e XVII. Cunha & Cintra [14] registram a regência culta moderna como transitivo indireto, ressaltando, porém, a possibilidade de conversão para a voz passiva e o fato de poder ser documentado em textos do século XIX o uso com complemento direto. De qualquer forma o verbo não perde sua característica de transitividade. As discordâncias de enfoque entre os autores leva a posições diferentes. Por exemplo, o verbo 'assistir', indicando 'estar presente', é transitivo indireto para Cunha & Cintra, mas transitivo relativo para Rocha Lima. Neste emprego específico o complemento não pode comutar-se com lhe, por não possuir o traço [+ hum.]. Este mesmo verbo, na acepção de 'caber direito ou razão a alguém' pode ocorrer com aquela forma pronominal (assiste-lhe o direito). Rocha Lima exclui do grupo dos transitivos indiretos verbos que, em latim, estavam vinculados ao ablativo ou ao genitivo.Estão neste caso, além de 'assistir' (a uma festa), outros, como 'proceder' que se constroem com complemento relativo.

Há empregos em Vieira, em que o lhe tem, apenas, o traço [+animado] e até [-animado].

Numa longa carta de 1654, dirigida ao padre provincial Francisco Gonçalves, o missionário relata fatos ocorridos desde a sua chegada à capitania do Pará, em 5 de outubro de 1653. Relatando deslocamento pelo rio Tocantins, alude às praias de viração e explica o motivo da denominação. É que as tartarugas, nos meses de outubro e novembro, saem do mar e do rio e vêm enterrar seus ovos que deixam ao sol. Passado um mês, saem das covas as tartaruguinhas em direção ao mar, à noite, para evitarem as aves de rapina.Veja-se a transcrição a seguir:

 

5. Destas covas saem para as ondas do mar por instinto da mesma natureza, a qual também os ensina a sair de noite, e não de dia, pela guerra que lhe fazem as aves de rapina, porque toda a que antes de amanhecer não alcançou o rio a levarão nas unhas. Saem estas tartaruguinhas tamanhas como um caranguejo pequeno; mas nem esta inocência lhe perdoaram os nossos índios, comendo e fazendo matalotagem, porque são delícia e havia infinidade delas. (Op. cit. p.368).

 

As duas formas de lhe, por mim sublinhadas, referem-se a 'tartaruguinhas'.

Em outro passo o pronome-dativo refere-se a 'frechas', portanto, [-animado].

6. Não provaram neles os índios as frechas, porque já sabem que as conchas de que estão armados são impenetráveis a elas, sendo que as frechas de cana, a que chamam tacoaras, não há saia de malha tão forte, nem tão dobrada, que lhes resista [...]. (Op. cit. p. 372)

Note-se que, numa primeira vez, o dativo é expresso pela forma pronominal 'elas', regida da preposição a: "são impenetráveis a elas". A seguir tem-se "que lhes resista", isto é, resista às frechas,

Não interessam à presente análise os complementos obrigatoriamente preposicionados exigidos pelo verbo ("Gostar de teatro"), nem mesmo os regidos da preposição a, os quais não são destinatários nem beneficiários da ação verbal. Este estudo está centrado na forma de dativo do pronome pessoal, portanto, só tem interesse o termo que puder estar anaforicamente reduzido a lhe/lhes.

Ainda há impasses, nem todos removíveis. Que há de comum entre. 7 e 8, a seguir?

7.Concedi-lhe permissão para viajar e
8.A criança beijou-lhe as mãos.

 

Em 8, sem dúvida, lhe não é um complemento previsto pelo verbo.

É evidente para os usuários da língua que os empregos do dativo do pronome de terceira pessoa não são uniformes nem sintática nem semanticamente. Para dar curso à análise pretendida, considero necessário o estabelecimento de um esquema das possibilidades de realização do pronome pessoal com a função de dativo. A hipótese é que possa ter havido coincidência entre a pluralização do clítico e as características semânticas ou sintáticas da sua realização em etapas da língua em que se observa a variação de concordância, hoje ausente do português formal.

Para evitar o labirinto da nomenclatura vigente, agravado com as conceituações, quase sempre limitadoras, optei, como ponto de partida, pelo conceito de 'valência' do verbo, na ótica de uma 'gramática de dependências', mais especificamente da 'gramática de valências', a meu ver um auxiliar importante para a interpretação dos fatos em discussão.

Passo a um brevíssimo apanhado de conceitos que nortearão o ponto de vista adotado na análise. Para Mário Vilela, "A valência é [...] a propriedade de um elemento exigir, permitir, excluir complementos específicos." [15] . Para que um verbo se atualize, é necessário o preenchimento de um número definido de espaços ou lugares vazios, e os elementos que os preenchem são complementos proposicionais ou argumentos. São considerados 'actantes' e não têm o mesmo estatuto sintático que os 'circunstantes'que não pertencem à valência do verbo. As gramáticas do português brasileiro, de modelo tradicional, na sua quase totalidade não estabelecem esta distinção, classificando como 'adjuntos adverbiais' actantes previstos na estrutura relacional do verbo.

A título de exemplificação, veja-se a frase abaixo:

9.[Ela] mora [no Rio] [desde o ano passado]

A                        A                   C

Ela' e 'no Rio' são actantes, enquanto 'desde o ano passado' é circunstante.Os dois primeiros estão preenchendo lugares vazios previstos pela valência de morar e não podem ser suprimidos da frase. Nada mudaria se o actante 'no Rio' fosse substituído por 'lá', 'aqui'ou outro localizador. A possibilidade de comutação pode ter levado alguns estudiosos a optar pela classificação de um termo como 'no Rio'como adjunto, não levando em conta o fato de ser exigido pelo verbo.Cabe a advertência de que esse tipo de teste pode levar a muitos equívocos.

Retomando as frases 7 e 8, vê-se que, em 7, lhe é previsto pela valência do verbo, enquanto em 8, o verbo 'beijar' não prevê um espaço a ser preenchido por lhe.

Esta forma pronominal, intimamente ligada ao actante denominado 'objeto ou complemento indireto' na tradição gramatical, tem outros empregos que não correspondem a esta função. Passo a, resumidamente, fazer uma tentativa de sistematização dos usos da forma pronominal em estudo, na língua atual.

3. O pronome lhe na língua portuguesa

Na linguagem interpessoal e quando o sujeito da enunciação coincide com o sujeito gramatical, o clítico que assume a função de objeto indireto é o pronome reflexivo, com exceção da referência à pessoa de quem se fala. Com respeito às duas primeiras pessoas, as formas pronominais não indicam a oposição entre os dois tipos de complemento, já que o reflexivo tem primordialmente a função de objeto direto. No que diz respeito à terceira pessoa, a oposição se faz entre o(s), a(s), de um lado e lhe(s), de outro.

Em princípio, a função natural do lhe é a de objeto indireto A tradição gramatical liga essa categoria ao dativo, o que não facilita a solução dos problemas, em grande parte oriundos da complexidade gerada pela heterogeneidade de traços sêmicos do caso. Por outro lado, muitos empregos da forma de dativo do pronome de terceira pessoa fogem ao padrão sintático e semântico do objeto indireto, o que significa que nem sempre aquele pronome tem essa função na frase.

Para esta análise, proponho que seja levada em conta uma tipologia dos usos de lhe com base na valência do verbo, com a vantagem de fugir a uma nomenclatura nem sempre adequada aos fatos.Proponho dois grandes grupos.

I - No primeiro,bastante representativo, o pronome é um actante. A proposição realiza-se a partir de dois modelos: 1. S + V +OI (acudir, ceder, pertencer e outros) e 2 .S + V + OD + OI ( agradecer, emprestar, oferecer etc.), o mais comum. Estou assumindo a posição de que, neste último padrão, o chamado objeto indireto é um actante, mesmo reconhecendo seu relacionamento débil com o verbo.

II - Ficam englobados neste grupo o que se convencionou chamar 'dativo livre'. [16] Não são actantes mas podem assumir a forma nominal ou pronominal do objeto indireto. Correspondem ao dativo de posse, ao dativo de interesse e ao dativo ético.

Esses empregos não estão restritos ao português moderno. Sua vitalidade é incontestável em fases anteriores da língua.

Nem sempre, entretanto, na história do português, a forma lhes, plural, foi usada. Said Ali, na Gramática histórica, diz em nota de pé de página, quando trata das formas oblíquas dos pronomes pessoais: "A forma lhes, com s, é relativamente recente. N'Os Lusíadas e mesmo mais tarde, ainda encontramos lhe,quer para o singular, quer para o plural". [17]

Em pesquisa que venho desenvolvendo sobre esta questão, já em condições de ser encaminhada para publicação, acompanhando o emprego do dativo do pronome de terceira pessoa e de suas características desde as etapas mais antigas da língua até o século XVIII, alguns fatos me surpreenderam.

Volto à nota de Said Ali. É fato que não se encontra a forma lhes em Os Lusíadas, pelo menos nos quatro primeiros cantos que investiguei cuidadosamente. No texto integral do Livro IV da Década I da Ásia, de João de Barros, 97% das ocorrências não pluralizam o pronome em questão. Encontrei apenas um emprego de lhes que representa 3% dos empregos totais. Surpreendente é que em textos mais antigos como A demanda do Santo Graal e o Livro das Linhagens, a presença da forma de plural tende a 100%. Não se pode falar de variação. No século XV, na Arte da ensinança de bem cavalgar toda sela, de D. Duarte, há 45% de registros da forma de singular, sem concordância,, contra 55% da forma de plural.. Voltando ao século XVI, na Peregrinação,de Fernão Mendes Pinto (1514-1581), obra quinhentista, embora publicada em 1614, após a morte do autor, as variantes [-conc.] e [+conc] [18] estão em plena concorrência, com 44% de ocorrências para a primeira e 56% para a segunda. A variação na Peregrinação está próxima da que se observa no texto de D. Duarte, do século XV.

Comparando-se esses dados com os de Camões e João de Barros, há uma discrepância flagrante.A investigação desses fatos não é escopo deste trabalho cujo propósito é a variação entre [+conc] e [-conc] ou, em outras palavras, o estudo da variável <concordância> da forma pronominal lhe, em um grupo de cartas do padre António Vieira, ao todo quarenta e uma, correspondentes à sua permanência no Brasil como missionário.

4. A variante<concorddância> do pronome lhe em Vieira

A coleta de dados passou pelas seguintes etapas: 1. listagem de todas as ocorrências da forma em estudo; 2. seleção daquelas em que, de acordo com a norma atual, deveria ocorrer a concordância e 3. separação das realizações das variantes [+conc.] e [-conc.]. Foram desprezados os casos em que não seria prevista a concordância e aqueles em que a combinação de lhe com o(s), a(s) não permite a identificação do número.

Essas etapas esclareceram que, no corpus levantado, há uma maioria significativa de casos de [+ conc.], representando 69% do total geral de 182 ocorrências.

Para verificar a pertinência da hipótese de que a concordância estaria ligada a características semântico-sintáticas do elemento estudado, procedeu-se à análise das ocorrências, observando-se se o elemento é ou não um actante, isto é, se é previsto pelo verbo. Foram considerados actantes os chamados objetos indiretos de qualquer tipo.

Rocha Lima (1976, op. cit. p. 219-221) propõe seis tipos de objeto indireto que apresento a seguir. Exemplificarei com Vieira.

1.Segue o modelo verbo + objeto direto + objeto indireto (o elemento onde termina a ação). É o mais comum.

10. Desta maneira os fomentam com a vista, e lhes comunicam aquele calor vital com que os animam. (Op. cit., p. 372)

2. Verbo + objeto direto + possuidor de alguma coisa.       
Por não se tratar de actante, incluí construções deste tipo entre os chamados dativos livres.

11. [...] descarregam todos à porfia os paus de matar, e com eles lhes quebram as cabeças. (Op. cit., p. 394)

3. O conjunto verbo + substantivo é equivalente a um verbo ( ter medo = temer) e vem seguido de complemento preposicionado.

12. Passaram estes índios novos por uma capitania deste Estado, cujo Capitão-mor os acompanhou com uma carta, em que aconselhava ao Governador que aquelas quatro aldeias rebeldes se lhes fosse logo dar guerra, porque além do serviço que nisso se fazia a S. M., seria com grande utilidade do poivo, que por esta via teria escravos, com que se servir. (Op. cit., p. 356).

4. Fazer, deixar, mandar, ver + infinitivo + objeto indireto ou verbo de ligação + predicativo + objeto indireto.

 

13. Tudo o que V. M. tem ordenado na última lei e regimento está publicado aos índios, não só nestas terras e nas vizinhas, mas em outras mui apartadas e remotas, onde por recados e por escrito tem mandado o Governador e os padres a diferentes índios das mesmas nações, para que lhes refiram o novo trato que V. M. lhes manda fazer, e como todos os índios hão-de viver debaixo da proteção e doutrina dos padres da Companhia, que é o que eles desejam, pela grande fama que os ditos padres têm de serem os maiores amigos e defensores dos mesmos índios, e por isso são deles muito amados. (Op. cit., p. 456)

 

5 Verbo intransitivo unipessoal + objeto indireto.

 

14. Os do Conselho Ultramarino, e todos os mais ministros por cujas mãos passaram estes dois requerimentos, se edificaram muito deles, e esperamos que, constando-lhe como há-de constar, aos moradores do Maranhão e Pará, destas nossas resistências e réplicas, acabarão de entender a verdade do zelo que lá nos leva [...] (Op. cit., p. 286).

 

6. Complemento de verbos que se usavam com dativo em latim.

 

15.[...] e particularmente o procurador dos índios é homem que mais autoridade tem com eles. E mais conhecimento de todas as suas nações, e de todas as entradas que ao sertão se fizeram, por ser dos primeiros conquistadores deste Estado, e um dos mais práticos da língua dele, a quem os índios em todos os seus trabalhos e desgostos recorrem como pai, porque como tal lhes acode: [...]. (Op. cit., p.340).

 

O critério adotado para a classificação dos dados acolheu como actantes cinco dos tipos de objeto indireto apontados por Rocha Lima excluindo-se o tipo 2 que foi considerado dativo livre.

Acrescentei ao grupo dos actantes as realizações decorrentes de casos de regência, típicos de Vieira, como os que se seguem.

16. Como naquele navio vinham soldados, tiveram mais ocasiões de exercitar a caridade, principalmente com os doentes, sendo eles os que lhe faziam o comer no fogão, e com a mão lho davam; os que lhes assistiam nas sangrias e nos outros medicamentos [...] e outos actos semelhantes de muito fervorosa caridade, de que grandemente se edificaram todos. (Op.cit. p. 326)

Na acepção do texto o verbo assistir constrói-se com objeto direto.

 

17.O Padre Manuel de Sousa vai por superior, para deixar mais livre ao Padre Sotomaior nas cousas da conversão, e lhe suceder na lição de retórica [...]. (op. cit. p.335).

 

Suceder é transitivo direto. A mesma regência verifica-se em 10.

 

18. Se houvesse dois homens de consciência, e outros que lhes sucedessem, não haveria inconvenientes em estar o governo dividido. (Op. cit., p.419).

 

Inicialmente, optou-se por não estabelecer uma tipologia do objeto indireto nem na classificação dos dados levar em conta os subgrupos. Num segundo momento, mostrou-se relevante para o estudo, entre os não-actantes, o grupo representativo do dativo de interesse.O dativo ético, por estar afeto às duas primeiras pessoas do discurso, não se aplica à forma lhe. Entretanto, numa mesma página de uma longuíssima carta dirigida ao Provincial do Brasil, repetem-se três tipos de emprego que são fronteiriços do dativo ético pela empatia do sujeito da enunciação com referência ao destinatário do processo verbal. Transcrevo:

 

19. Lançadas as canoas à água, ao terceiro dia se lhes sumiu o rio entre os juncais; mandaram descobridores a busca-lo, e depois de três dias de jornada tornaram a dar com ele, mas distante do local em que se lhe tinha escondido. (Op. cit., p. 411.)

 

Segue-se o Quadro I, com a distribuição dos dados, de acordo com a classificação geral entre actantes e não actantes, levando-se em conta a variante <concordância>.

Quadro I

<concordância> nos empregos de lhe num corpus de Vieira

 

[+conc.]

[-conc.]

Totais gerais

Tipo

T

%

T

%

T

%

Actante

101

72%

39

28%

140

100%

 

81%

 

68%

 

77%

 

Não-actante

25

58%

18

42%

43

100%

 

19%

 

32%

 

23%

 

Totais

126

69%

57

31%

183

100%

%

100%

 

100%

 

100%

 

                        T - Total; % - Percentual

Cabem os seguintes comentários decorrentes das leituras horizontal e vertical do quadro.

            1.         Em termos gerais, no corpus, lhe é preferencialmente actante. São 81% da variante [+conc] e 68% da [-conc. ]. Visto por outro ângulo, do total de ocorrências de lhe, 72% são actantes e os restantes 28% são não-actantes.

            2.         No grupo dos actantes, as ocorrências de [+conc.] atingem 72% contra 28% de [ - conc. ]. No grupo dos não-actantes, a diferença é menor, embora muito significativa. São 58% para [+ conc. ] e 42% para [- conc.].

Nota-se que há uma acentuada tendência a se fazer a concordância quando lhe é actante. Pode-se dizer que este é um fator favorecedor da mudança. Por outro lado, aparece, também, um percentual significativo de ocorrências de [+ conc.] no grupo dos não- actantes ( 58% ).O reexame dos dados desse grupo mostra o destaque do dativo de interesse com 81% dos empregos totais, contra 19% de ocorrências de dativo possessivo, como mostra o Quadro II.

Quadro II

<concordância> dos não-actantes nas cartas de Vieira

 

[+conc.]

[-conc.]

Totais gerais

T

%

T

%

T

%

Dat. Int.

18

52%

17

48%

35

100%

 

72%

 

94%

 

81%

 

Dat. Poss.

7

88%

1

12%

8

100%

 

28%

 

6%

 

19%

 

Totais

25

58%

18

42%

43

100%

%

100%

 

100%

 

100%

 

                        Dat. Int. - Dativo de Interesse

                        Dat. Poss. - Dativo Possessivo

Há predominância no grupo dos actantes de elementos com função de objeto indireto do tipo 1, indicando o destinatário ou o beneficiário do processo verbal. No grupo há maioria bastante significativa de casos de [+conc.]. Entre os não-actantes há equilíbrio, com vantagem para [+conc.]. Esse equilíbrio tem como base as ocorrências do dativo de interesse: 52% de [+conc.] e 48% de [-conc.]. Já o dativo possessivo apresenta 88% de realizações de [+conc.].Olhando-se os dados de forma global, não é pertinente admitir que a idéia de posse ou pertença seja fator favorecedor da concordância. Semanticamente, o dativo de interesse está bem próximo dos diversos tipos de objeto indireto, mas este não é um fator preponderante nas ocorrências analisadas.A diferença essencial entre os dois grupos está na valência do verbo.

Retomo aqui o grupo de verbos que prevêem dois complementos à direita. São, na maioria, verbos dandi e dicendi, além de outros do tipo 'agradecer'. Fiz referência, anteriormente, ao fato de que, nesses casos, o vínculo com o verbo é débil. Observei, também, que esse termo, semanticamente, sobretudo no caso dos verbos dandi e dicendi têm afinidade com o dativo de interesse. No que toca à valência, a distância com relação ao verbo, do espaço a ser preenchido está diretamente ligada à não realização do termo, o que não implica que não esteja previsto. Estou querendo ressaltar que, embora no nível da realização lingüística haja aspectos semânticos e formais comuns ao objeto indireto do tipo 1 e ao dativo de interesse, do ponto de vista da valência há uma distinção importante. Por débil que seja o relacionamento com o verbo deste tipo de objeto indireto, este preenche um lugar vazio que é um argumento proposicional.

Os dados pesquisados revelam que, entre os actantes há tendência para a concordância enquanto no grupo dos não-actantes a situação é de equilíbrio.

Embora fora dos objetivos desta análise, posso adiantar que, num texto do século XVII, de um jesuíta contemporâneo de Vieira, [19] é privilegiada a variante [-conc.], com 77% de ocorrências.. No que concerne a [+conc.], 77% são actantes e 23%, não-actantes.. Entre os actantes, há 71% dados de [-conc e 29% de [+conc.]. Como se vê, estes dados não se conformam com os das Cartas de Vieira. Como mostra o Quadro I, os dados de Vieira revelam: 1. acentuada preferência por [+ conc] (69% das realizações) e 2. a predominância de [+conc] no grupo dos actantes ( 72% das realizações).

            Não creio ser temerário afirmar que, em Vieira, a valência do verbo é fator favorecedor da preferência pela variável [+conc.].



[1] A. Moraes, Dicionário da língua portuguesa, edição comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil, fac-simile da 2.ed. (1813), sob a direção de Laudelino Freire, Rio de Janeiro, Revista da Língua Portuguesa, 1922.

[2] A. E. da Silva Dias, Syntaxe histórica portuguesa, 3.ed., Lisboa, Livraria Clássica, [s.d.].

[3] M. Sai Ali, Gramática histórica da língua portuguesa, 5.ed., São Paulo, Melhoramentos, 1965.

[4] Sousa da Silveira, Lições de português, Coimbra/Rio de Janeiro, Atlântida/Livros de Portugal, 1952.

[5] Antenor Nascentes, O idioma nacional, 3.ed., São Paulo, Editora Nacional, 1957.

[6] C. H. Rocha Lima, Gramática normativa da língua portuguesa, 18.ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1976. A partir desta edição, o texto não foi alterado em vida do autor.

[7] Paul Teyssier, Manuel de langue portuguaise (Portugal-Brésil), Paris, Klincksieck, 1976.

[8] J. Lúcio Azevedo, Cartas do padre António Vieira, Tomo I. p. 269- 592.

[9] Sobre "transitividade", cf. M. A. K. Halliday, "Notes on Transitivity and Theme in English", Journal of Linguistics, vol. 3, 1967, Parte I, p. 37-81; 1968. Parte II, p. 199-244 e P. Hopper, & S. Thompson, "Transitivity in Grammar and Discourse", Language, v. 56, Baltimore, 1980, p. 251-99.

[10] C. H. Rocha Lima, Gramática normativa da língua portuguesa, op. cit.

[11] Evanildo Bechara, Moderna gramática portuguesa, 37.ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro, Lucerna, 2003.

[12] J. C. de Azeredo, Fundamentos de gramática do português, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.

[13] C. H. Rocha Lima, Gramática normativa da língua portuguesa, p. 221.

[14] Celso Cunha & Luís F. Lindley Cintra, Nova gramática do português contemporâneo, 6ª impressão, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.

[15] Mário Vilela, Gramática de valências: teoria e aplicação, Coimbra, Almedina,1992, p. 31.

[16] Cf. M. Bassols de Climent, Sintaxis Histórica de la Lengua Latina, Tomo I, Barcelona, Instituto Antonio de Nebrija, 1945. Evanildo Bechara, Moderna gramática portuguesa, 37. ed., Rio de Janeiro, Lucerna, 2003. Mário Vilela, Gramática de valèncias: teoria e aplicação, Coimbra, Almedina, 1992.

[17] Said Ali, Gramática histórica da língua portuguesa, op. cit., p. 94

[18] Doravante estas siglas passam a designar as variantes em que se dá ou não a concordância.

[19] Trata-se do padre Bartolomeu Guerreiro S. J. no relato Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, publicada em 1625. Foi consultada, na íntegra, a edição diplomática da Divisão de Publicações e Divulgação da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1966.