Cleonice Berardinelli
PUC-Rio/UFRJ
Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses
A Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses completa dez anos de criação neste ano de 2004. Determinamos celebrar a data com marcas que permaneçam na história, que esperamos longa, deste núcleo de lusófonos amantes da língua portuguesa e das literaturas nela expressas. Entre elas, a apresentação do número 10 da nossa revista Semear, modernizada no aspecto exterior - sem rejeição da cara inicial, em que Vieira punha a sua marca, mas no intuito de mantê-la contemporânea, em matéria e forma, como ainda convém dizer-se.
Depois da assinatura do convênio que a criava, assinado pelo presidente do Instituto Camões e o reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1994, a primeira sessão pública realizada pela cátedra foi um micro-seminário, de apenas uma tarde. Pequeno, mas motivado pela celebração de uma das mais importantes datas da literatura portuguesa: o quarto centenário da publicação póstuma das Rhythmas de Luís de Camões, em 1595. Sob a égide de Vieira - o patrono - e de Camões - o primeiro trazido à cena -, começou, sob os melhores auspícios, a caminhada de Semear. Dois professores da PUC receberam a incumbência de fazer as duas conferências que perfariam o encontro: o professor de história, dr. Francisco José Calazans Falcon, que falou sobre aspectos do Renascimento, o momento histórico onde surgira e se desenvolvera a obra de Camões, e eu mesma, sobre a importância da produção lírica do Poeta que ali celebrávamos.
Neste seu décimo número, sou chamada a trazê-lo de volta, num texto em que mais uma vez procure iluminar algum ponto ainda inexplorado ou quase, um ponto que nos tenha passado apenas percebido. Um poeta como Camões "tem tais profundezas"1, que nunca, passem os dias, passem os séculos, se chegará a esgotá-las.
Ao pensar no que abordaria aqui, lembrei-me de um fato significativo, ocorrido em março deste ano: o lançamento do livro A primeira História do Brasil, intitulada História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo2, numa edição de Jorge Zahar, preparada por Sheila Moura Hue e Ronaldo Menegaz, que modernizaram conscienciosamente o texto original, de 1576, no intuito louvável de torná-lo accessível a um público mais amplo, tal como desejaria o próprio autor do livro, sempre empenhado em atingir o vulgo curioso de novidade. As notas que lhe apuseram facilitaram esse contacto entre leitor e história lida, e contribuíram para que já fosse lançada uma segunda edição, dentro de um prazo extremamente curto, o que surpreende em se tratando de obras desta espécie.
Talvez alguém que me leia se pergunte: "Mas a que vem esta celebração da obra de Gândavo num conjunto de textos comemorativos do décimo aniversário da cátedra?", ao que responderei, convicta: "A edição desta preciosa primeira História do Brasil pode ser considerada como uma produção, se bem que indireta, da cátedra: Sheila Moura Hue doutorou-se há dois anos em literatura portuguesa pela PUC-Rio; Ronaldo Menegaz foi professor, ao longo de dez anos, da mesma matéria, na mesma universidade. Durante a permanência de ambos - ela, cursando o doutorado, ele, exercendo a docência -, estiveram sempre entrosados na cátedra. Ela, minha orientanda, produzindo excelente tese sobre a recepção da obra de Camões no século XVI, participando do meu trabalho; ele, membro da equipe de pesquisadores, apresentando conferências em seminários, publicando vários ensaios na nossa revista Semear."
Ambos meus amigos, ex-alunos e ex-orientandos, convidaram-me a prefaciar-lhes a edição. Estamos, pois, os três nesta empreitada - eles, como os seus verdadeiros autores; eu, como aquela que chega à última hora para apreciar e valorizar o feito. E alegrar-me com o seu sucesso.
Dizia eu há pouco que fora chamada para trazer o Poeta de volta e até agora só lhes falei de Gândavo. Se o trouxe aqui foi por ser o autor desta História recém-publicada, mas também porque, admirador confesso de Camões, possibilitou à posteridade a leitura de dois dos três únicos poemas líricos deste, publicados em sua vida. Reavivo-lhes a memória, à vista do poema:
Ao muito ilustre senhor dom Leonis Pereira sobre o livro que lhe oferece Pero de Magalhães
Tercetos de Luís de Camões
Depois que Magalhães teve tecida
A breve história sua que ilustrasse
A terra Santa Cruz pouco sabida,
Imaginando a quem a dedicasse
5 Ou com cujo favor defenderia
Seu livro, de algum Zoilo que
[ladrasse,
Tendo nisto ocupada a fantasia,
Lhe sobreveio um sono repousado.
Antes que o sol abrisse o claro dia,
10 Em sonhos lhe aparece todo armado
Marte, brandindo a lança furiosa,
Com que fez quem o viu todo
[enfiado,
Dizendo, em voz pesada e temerosa:
"Não é justo que a outrem se ofereça
15 Nenh\a obra que possa ser famosa,
Senão a quem por armas resplandeça,
No mundo todo, com tal nome e fama,
Que louvor imortal sempre mereça."
Isto assim dito, Apolo, que da flama
20 Celeste guia os carros, da outra parte
Se lhe apresenta, e por seu nome o
[chama,
Dizendo: "Magalhães, posto que
[Marte
Com seu terror te espante, todavia
Comigo deves só de aconselhar-te.
25 Um barão sapiente, em quem Talia
Põe seus tesouros, e eu minha ciência,
Defender tuas obras poderia.
É justo que a escritura na prudência
Ache sua defensão, porque a dureza
30 Das armas é contrária da eloqüência."
Assim disse, e tocando com destreza
A cítara dourada, começou
De mitigar de Marte a fortaleza;
Mas Mercúrio, que sempre costumou
35 A despartir porfias duvidosas, Co caduceu na mão, que sempre usou,
Determina compor as perigosas
Opiniões dos Deuses inimigos,
Com razões boas, justas e amorosas,
40 E disse: "Bem sabemos dos antigos
Heróis, e dos modernos, que provaram
De Belona os gravíssimos perigos,
Que também muitas vezes ajuntaram
Às armas eloqüência, porque as Musas
45 Mil capitães na guerra acompanharam;
Nunca Alexandre ou César nas confusas
Guerras deixaram o estudo um breve
[espaço,
Nem armas das ciências são escusas.
N\a mão livros, noutra ferro e aço,
50 A \a rege e ensina, a outra fere,
Mais co saber se vence que co braço.
Pois logo, barão grande, se requere
Que com teus dões Apolo ilustre seja,
E de ti Marte palma e glória espere.
55 Este vos darei eu, em que se veja
Saber e esforço no sereno peito,
Que é dom Leonis que faz ao mundo
[inveja.
Deste as Irmãs, em vendo o bom sujeito,
Todas nove nos braços o tomaram,
60 Criando-o com seu leite no seu leito.
As artes e ciência lhe ensinaram,
Inclinação divina lhe influíram,
As virtudes morais que o logo ornaram.
Daqui os exercícios o seguiram
65 Das armas no Oriente, onde primeiro
Um soldado gentil instituíram.
Ali tais provas fez de cavalheiro,
Que, de cristão magnânimo e seguro,
A si mesmo venceu por derradeiro.
70 Depois, já capitão forte e maduro,
Governando toda Áurea Quersoneso,
Lhe defendeu co braço o débil muro.
Porque, vindo a cercá-la todo o peso
Do poder dos Achéns, que se sustenta
75 Do sangue alheio, em fúria todo aceso,
Este só que a ti, Marte, representa
O castigou de sorte que o vencido
De ter quem fique vivo se contenta
Pois, tanto que o grão Reino defendido
80 Deixou segunda vez com maior glória,
Para o ir governar foi elegido
E, não perdendo ainda da memória
Os amigos, o seu governo brando,
Os imigos, o dano da vitória.
85 Uns com amor intrínseco esperando
Estão por ele, e os outros congelados
O vão com temor frio receando.
Pois vede se serão desbaratados
De todo por seu braço, se tornasse,
90 E dos mares da Índia degradados,
Porque é justo que nunca lhe negasse
O conselho do Olimpo alto e subido
Favor e ajuda com que pelejasse.
Pois aqui certo está bem dirigido
95 De Magalhães o livro, este só deve
De ser de vós, ó Deuses, escolhido."
Isto Mercúrio disse e logo em breve
Se conformaram nisto Apolo e Marte,
E voou juntamente o sono leve.
100 Acorda Magalhães, e já se parte
A vos oferecer, Senhor famoso,
Tudo o que nele pôs, ciência e arte.
Tem claro estilo, engenho curioso,
Para poder de vós ser recebido,
105 Com mão benigna de ânimo amoroso,
Porque, só de não ser favorecido,
Um claro esprito fica baixo e escuro,
E seja ele convosco defendido
Como o foi de Malaca o fraco muro.
No bastante extenso poema ouvem-se quatro vozes: a do Poeta a quem fora encomendado e que funciona como narrador, até quase ao fim, quando, no v. 101, se dirige a d. Leonis3, fazendo-o seu alocutário, e a de três personagens, todos deuses mitológicos: Marte, Apolo e Mercúrio.
Na pausa que se fez, tecida a sua história (v. 1-2) - note-se o verbo empregado por Camões com a consciência da tecedura do texto, do que nele há de artesanal -, Gândavo pensa em dedicá-la a alguém que a defenda contra a investida dos invejosos ("algum zoilo que ladrasse"). O escolhido é d. Leonis Pereira, herói de Malaca, a quem endereça uma breve Epístola, na qual afeta a modéstia usual nesses casos: "Neste pequeno serviço (grifo meu, aqui e adiante) que ofereço a Vossa Mercê das primícias de meu fraco entendimento" o fidalgo conhecerá "os desejos que tenho de pagar, dentro de minha possibilidade, alguma parte do muito que se deve à ínclita fama de vosso heróico nome".
Como sabe que o destinatário preza igualmente "o exercício das escrituras" e o "das armas", dedica-lhe sua "breve história", pedindo-lhe que a receba com benignidade, "por ser coisa nova" e ele "a escrever como testemunha de vista".
Voltemos aos versos e leiamos o que estes não dizem: que, nesse momento, também pensaria Magalhães que mais bela e honrosa seria a dedicatória, se a completasse e valorizasse aquele poeta que já antes reconhecera e celebrara, em suas Regras que ensinam a maneira de escrever, como "famoso poeta" "de cuja fama o tempo nunca triunfará". A Camões encomenda, pois, o poema laudatório que este escreverá em tercetos - 35, encerrados por um quarteto, à maneira dantiana -, como suas elegias. Bem diverso é, porém, destas, pelo seu tom, indiscutivelmente épico. Não será de estranhar, portanto, que alguns passos ou processos retóricos d'Os Lusíadas lhe acudam à memória.
Logo aos primeiros versos, Magalhães adormece e sonha, processo a que Camões, na linha dos antigos clássicos, já recorrera n'Os Lusíadas, onde o próprio Mercúrio, a mando de Júpiter, aparece a Vasco da Gama para preveni-lo do perigo que aguarda os navegantes, onde Baco incita os mouros contra os portugueses, e, sobretudo, no belo mas intrigante4 episódio do sonho de d. Manuel, provocado pela expectativa da grande viagem que este ia ordenar. O Gândavo, na pausa que se fez, fechada a última página da História, também terá um sonho, breve dramatização do choque de dois pleitos apresentados por deuses - Marte e Apolo -, cada qual trazendo suas razões para a escolha daquele a quem o livro deverá ser oferecido. Aparece-lhe primeiro, "todo armado / Marte, brandindo a lança furiosa". Para o deus da guerra, conciso e duro,
Não é justo que a outrem se ofereça
Nenha obra que possa ser famosa,
Senão a quem por armas resplandeça,
No mundo todo, com tal nome e fama,
Que louvor imortal sempre mereça. (v. 14-18)
O "brandi[r] da lança furiosa" trará inevitavelmente à memória do leitor camoniano uma outra atitude violenta de Mavorte que aqui terá, como teve atrás, a mesma conseqüência: fazer empalidecer de medo. No consílio dos deuses do Olimpo (Lus., I, 37), Marte batera "co conto do bastão no sólio puro" e o sol perdera o seu brilho: "O céu tremeu e Apolo, de torvado, / Um pouco a luz perdeu, como enfiado." Na ode a d. Leonis, ao gesto do deus "todo armado", ficou "quem o viu todo enfiado."5 e não se esqueça que, entre os presentes (na ficção camoniana do sonho), também "enfiado" está exatamente o mesmo deus das artes, condutor do carro do Sol, que, opondo-se ao outro, será um pouco mais extenso, a defender, em nove versos, a sua posição,
Dizendo: "Magalhães, posto que Marte
Com seu terror te espante, todavia
Comigo deves só de aconselhar-te.
Um barão sapiente, em quem Talia
Põe seus tesouros, e eu minha ciência,
Defender tuas obras poderia.
É justo que a escritura na prudência
Ache sua defensão, porque a dureza
Das armas é contrária da eloqüência." (v. 22-30)
Faz-se mister a intervenção do terceiro deus, Mercúrio, "que sempre costumou / A despartir porfias duvidosas" (v. 34-35)6; falando longamente (durante 57 versos, mais da metade da Ode), dirimirá a questão com sua intervenção competente e bem fundamentada.
Permitam-me voltar ao "Sonho de d. Manuel", para justificar o emprego de um adjetivo que talvez lhes tenha parecido inconveniente. Estamos, pois, novamente n'Os Lusíadas. Narra-se a história passada de Portugal. O narrador é Vasco da Gama. Chega-se ao reinado de d. João II; é pouco.
Parece que guardava o claro Céu
A Manuel e seus merecimentos
Esta empresa tão árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos.
Manuel, que a Joane sucedeu
No reino e nos altivos pensamentos,
Logo como tomou do Reino cargo,
Tomou mais a conquista do mar largo. (Lus., IV, 66)
Sempre preocupado com esta idéia, o rei deixa vencerem-se os olhos pelo sono, mas não o coração e, "tanto que lasso se adormece" (Lus., IV, 68-74), é visitado por Morfeu, deus dos sonhos, que o faz subir à "prima esfera", donde tem uma visão panorâmica do mundo, e, "despois que os olhos longos estendera, / Viu de antigos, longínquos e altos montes / Nacerem duas claras e altas fontes." São os rios Indo e Ganges, a identificarem a Índia. Descritos como dois homens muito velhos, "de aspeito, inda que agreste, venerando", "a fronte coroada" de ramos desconhecidos, proclamam, ainda de longe, e pela voz do segundo, a sua vetusta dignidade - "Nós outros, cuja fama tanto voa, / Cuja cerviz bem nunca foi domada" - para continuar, surpreendendo desagradavelmente o leitor atento, dotado de espírito crítico - "Te avisamos que é tempo que já mandes / A receber de nós tributos grandes." Estes velhos rios, metonímia de uma terra de cultura milenar, de fama notória, nunca dantes submetidos a jugo, autorizam, a priori, o dominador a cobrar-lhes tributos, mais ainda, induzem-no a isso. Acrescenta o Ganges que a conquista não será fácil, mas que, ao fim, o rei conseguirá o que quer, e di-lo com esta estarrecedora metáfora: "insistindo tu, por derradeiro, / Com não vistas vitórias, sem receio, / A quantas gentes vês, porás o freio." Esta metáfora final, originada na utilização da peça de metal que se põe na boca das cavalgaduras, tem emprego largo na língua, fazendo esquecer-lhe a proveniência, mas pouco antes o rio se referira a si e a seus patrícios como aqueles "cuja cerviz bem nunca foi domada", em uma imagem tirada da aposição do jugo aos animais para fazê-los obedecer, submetidos à vontade do senhor, que irá em busca de "tributos grandes". Não era isso que dizia o Poeta logo à entrada do seu poema, quando anunciava que iria cantar "as memórias gloriosas / Daqueles reis, que foram dilatando / A Fé, o Império" - a fé em primeiro lugar, os tributos se incluirão no domínio do império. É um dos momentos em que o Poeta se contradiz, invertendo a ordem dos propósitos das navegações, pondo em dúvida o nacionalismo laudatório da Proposição.
Não será, pelo menos, intrigante (como disse atrás)7 esta tentativa de justificar a dominação portuguesa como resposta a um apelo da terra buscada, feito por aquele que se identifica, e ao companheiro, como
[...] o ilustre Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Est'outro é o Indo, Rei, que nesta serra
Que vês, seu nacimento tem primeiro. (Lus.,IV, 74),
dando-lhe um aviso que faz pasmar o leitor, e talvez também o rei, cujo inconsciente estaria gerando a desculpa para algum escrúpulo de consciência que permanecesse sob a sede de glória e de poder? Ou seria o sonho do rei a ficção criada pela consciência sempre alerta do Poeta, que tece a magnífica tapeçaria dos descobrimentos pelo direito, mas deixando ver, aqui e ali, o seu avesso? Vale a pena ouvir a fala do velho rio:
Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes. (Lus., IV, 73)
Diz ao rei que a conquista não será fácil, mas que, ao fim, conseguirá o que quer:
Custar-t'-emos contudo dura guerra
Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio,
A quantas gentes vês, porás o freio. (Lus., IV, 74)
Assim lemos nós hoje, neste afã de uma leitura que completa a escrita do texto inicial. A quase subserviência de personagem revestido de tal dignidade, se, por um lado, pode ser o louvor máximo pelo reconhecimento do poderio incontestado e incontestável do conquistador, pode, por outro, significar a amarga ironia do conquistado que, sabendo-se superior, por uma tradição milenar de cultura e civilização, tem de dobrar a cerviz, receber o jugo e aceitar o freio imposto pela força.
No intuito de aproximar os sonhos, para mostrar-lhes as diferenças, a peculiaridade de cada um, deixamos em suspenso a fala de Mercúrio. Como vimos, Marte valoriza apenas aquele que "por armas resplandeça", sem mencionar outra possibilidade. Apolo estabelece rapidamente o paralelo desabonador das armas: "a dureza / Das armas é contrária da eloqüência." e tenta, por meio da música, "mitigar de Marte a fortaleza." É a hora de passar a palavra a Mercúrio, que não dará a um ou outro razão maior. Sua solução não subtrai, antes procura somar. E com palavras serenas e ponderadas, começará por apontar as virtudes de uns e outros - homens de armas e homens de artes e ciência -, buscando exemplos dos mais citados pelo próprio Poeta em sua epopéia, daqueles que devem ser os modelos a seguir: os heróis, antigos e modernos, que "ajuntaram / Às armas eloqüência" (v. 43-44), que sempre tiveram "na mão livros, noutra ferro e aço" (v. 49). Assim procederam os mais ilustres personagens da história, Alexandre e César, que nunca "nas confusas / Guerras deixaram o estudo um breve espaço" (v. 46-47).
Tais virtudes, o deus as encontra num "barão grande", "dom Leonis, que faz ao mundo inveja", pois que nele se concentram os dons de Apolo e Marte: criado pelas nove Musas que "Inclinação divina lhe influíram, / As virtudes morais que o logo ornaram." E continua o seu retrato: "soldado gentil", "cavalheiro cristão", "capitão forte e maduro", governador de "toda Áurea Quersoneso", tendo-a defendido "do poder dos Achéns", que castigou duramente, digno do "favor e ajuda" do "conselho do Olimpo alto e subido", a ele deve ser "bem dirigido / De Magalhães o livro, este só deve / De ser de vós, ó Deuses, escolhido." Esta, resumidamente, a fala de Mercúrio. O narrador retoma a palavra para fechar o poema, dizendo que Apolo e Marte aceitaram a decisão e acrescentando: "E voou juntamente o sono leve." Só então se lembra o leitor de que o autor da História estivera adormecido enquanto se decidia o destino do seu livro. Nos últimos versos, o narrador assume, pela primeira e última vez, a primeira pessoa do discurso, não explícito num eu, mas implícito no vós a que se dirige, nos últimos dez versos, dos quais os dois finais podem ser considerados como um fecho de ouro:
Acorda Magalhães, e já se parte
A vos oferecer, Senhor famoso,
Tudo o que nele pôs, ciência e arte.
Tem claro estilo, engenho curioso,
Para poder de vós ser recebido,
Com mão benigna de ânimo amoroso,
Porque, só de não ser favorecido,
Um claro esprito fica baixo e escuro,
E seja ele convosco defendido
Como o foi de Malaca o fraco muro. (v. 100-109)
A convicção que o Poeta-narrador põe na fala de Mercúrio, ele a transfere da sua própria voz. Para prová-lo, basta que releiamos as penúltimas estrofes do canto V d'Os Lusíadas. Vasco da Gama está falando ao rei de Melinde desde a segunda metade da terceira estrofe do canto III:
Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia:
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória. (Lus., III, 3, v. 5-8)
Este se inicia pela segunda invocação8 do Poeta, desta vez a Calíope, Musa da epopéia. O que se vai cantar é a história de Portugal, desde os primórdios. É necessário "canto imortal", em "voz divina" - pede, ou, melhor, exige o Poeta e cala-se, deixando ouvir o navegante-metonímico, Vasco da Gama, que é chamado, logo à entrada do canto III, "ilustre Gama" e, pouco adiante, "sublime", epíteto altamente valorizador, aplicado a deuses, reis, corações, bandeiras - pessoas e coisas postas em alto posto, material ou moralmente.
Esta sublimidade do Gama o poria a par de d. Leonis? Coexistiriam nele os dons de Apolo e Marte? Lamentavelmente, não. E o narrador (sem estabelecer paralelo entre ambos, pois o herói de Malaca está ausente da epopéia) o dirá sem disfarce, com o desgosto que lhe causa ter de reconhecê-lo. E onde o diz? Num momento climático, quando a narrativa do "Capitão sublime" chega ao fim, diante do povo melindano e do seu rei, maravilhados com o que acabaram de ouvir:
Da boca do facundo Capitão
Pendendo estavam todos embebidos,
Quando deu fim à longa narração
Dos altos feitos, grandes e subidos.
Louva o Rei o sublime coração
Dos Reis em tantas guerras conhecidos;
Da gente louva a antiga fortaleza,
A lealdade de ânimo e nobreza. (Lus., V, 90)
Dispersa-se a multidão, a repetir o que ouviu. Cai a noite. O Rei volta aos "nobres paços". O narrador cala-se. O Poeta deixa-se levar pela emoção de ter feito soar a justa glória dos feitos portugueses9; lembra, como ainda fará, ao fim do poema, a mágoa de Alexandre por não ter tido, como Aquiles, um Homero que lhe cantasse os feitos. E acrescenta que o Gama se esforça por mostrar ao mundo que as navegações anteriores, anteriormente cantadas, não atingem a altura da que vem realizando. A constatação de que na terra lusitana não há heróis dotados de sensibilidade para a arte o leva ao desabafo. Nela não há um César que, em meio às batalhas, tem "na mão sempre a pena e noutra a lança"; não há um Alexandre que tenha Homero à cabeceira; em síntese:
Enfim, não houve forte capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo; que a razão
De alguém não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe a arte, não na estima. (Lus., V, 97)
Se não houver quem os cante por não ver valorizado seu ofício, também não haverá feitos a serem cantados. Sem mecenas, não haverá poetas e, brevemente, não haverá heróis. O canto aproxima-se do fecho. A falha encontrada nos lusitanos em geral é agora diretamente apontada no navegador e em sua família, sem amaciantes, agravada pelo auto-louvor do Poeta, sob disfarce transparente:
Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus na lira nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas de ouro fino e que o cantassem. (Lus., V, 99)
É este um dos excursos10 mais desconcertantes do Poeta, daqueles que, em geral, encerram os cantos, nos quais se afasta dos pressupostos do gênero épico e, em vez de celebrar, critica, condena, exala amargas queixas. Embora a essa altura, decorrida mais de metade do poema, já o leitor esteja algo habituado a essas intromissões pessoais, bastante subjetivas, na diegese poemática, quase sempre de índole crítica, a desmitificação do herói central - porque lusíada, porque navegante, porque capitão da navegação maior - não deixa de chocar. Tirou-se o pedestal da estátua e esta aluiu. Mas o leitor continua e, vendo que as queixas mais duras e sofridas são devidas a decepções causadas pela pátria, que "está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De a austera, apagada e vil tristeza.", consegue recuperar, ao menos em parte, a admiração desse herói que, por vezes, se avizinha do grande herói navegante da épica clássica - Ulisses11.
O pedido ao Poeta, porém, não se restringiu à ode: estendeu-se a um soneto, também publicado, como aquela, na segunda edição das Rimas de 1598, onde é o último, nº. 105. Na edição da História, de 1576, vem encimado por uma rubrica esclarecedora: Soneto do mesmo autor ao senhor dom Leonis, acerca da vitória que houve contra o rei de Achém em Malaca. A ode se fechara, como vimos, com uma referência ao mesmo feito heróico, em símile expressivo, no qual se unem as duas faces do destinatário de ambos os poemas: a apolínea, de protetor das letras, e a marciana, de conquistador de Malaca. Como se o soneto fosse um poema épico, Camões começa por uma invocação; como n'Os Lusíadas, as Musas escolhidas são, também, ninfas - lá, do Tejo, aqui, das florestas do Ganges. Lá, pedira às Tágides que lhe dessem uma voz especialmente épica - "um som alto e sublimado, / Um estilo grandíloquo e corrente" -, pois vai cantar os "feitos da famosa / Gente vossa, que a Marte tanto ajuda"; aqui, pede às ninfas gangéticas que cantem, "suavemente em voz sonora / Um grande capitão, que a roxa Aurora / Dos filhos defendeu da noite escura."
O soneto, altamente laudatório, como convinha na circunstância, tem a meu ver um aspecto não inusual à época, e algumas vezes encontrado n'Os Lusíadas, que não me parece calhar com o caráter daquele que eu gostaria de chamar, como Faria e Sousa, "meu poeta". A primeira referência aos moradores da terra marca-os com a cor - "filhos [...] da noite escura" -; a segunda é mais agressiva, pela qualificação pejorativa dada no coletivo - "a caterva negra e dura" -; na terceira, além da desproporção numérica entre portugueses e achéns, estes constituem uma "multidão tão fera como néscia". Para António José Saraiva, grande estudioso da literatura portuguesa, sobretudo dos seus cinco primeiros séculos, o adjetivo néscio constituiria uma pesada ofensa à inteligência humana; em Camões, não me parece que o seja12. O povo néscio na fala do Velho do Restelo, é apenas ignorante, porque não o ensinaram, e, conseqüentemente, ingênuo. O Adamastor, narrando sua desdita amorosa, diz de si mesmo: "Já néscio, já da guerra desistindo", onde néscio significa ignorante de ter sido enganado por Tétis, numa accepção bem próxima. O que se pode julgar menos aceitável é dizer o Poeta que "a caterva negra e dura" ajuntou-se "Para lançar do caro ninho fora / Aqueles que mais podem que a Ventura", já que Malaca, a rigor, seria o ninho, não dos portugueses, que dela se apossaram em 1511, mas de uma população de malaios, chineses e bugis. A expressão ninho teria sido, dentro de uma visão menos imperialista, inadequada. Mas há que aceitar Camões como um poeta suscetível de contradições. Estas têm preocupado os seus estudiosos desde algum tempo. Tentei resolvê-las por ocasião da celebração do quarto centenário d'Os Lusíadas, em conferência publicada em 197313 . Transcrevo-lhe, com cortes, a parte final:
A liberdade de juízo que Camões patenteia na epopéia lhe vem, em parte, de sua qualidade de humanista, mas também, e sobretudo, da de homem inserido numa época de crise, capaz de avaliar a grandeza do esforço realizado, [...] mas capaz também de enxergar-lhe o outro lado, o que irrompe dos relatos da história trágico-marítima, capaz de sentir que o grande momento de Portugal já passou, mas existiu, em toda a plenitude da empresa que utilizou o homem integral - o da ciência, da técnica e da ação. Essa liberdade de juízo, porém, poderia não ter sido conservada pelo Poeta que criava uma epopéia - narrativa de feitos positivamente apresentados, sem questionamento, destinada à exaltação de um povo. E aqui está uma das razões da grandeza do poema que, à medida que se faz, questiona não somente o contexto que utiliza, mas o próprio enunciado que consagra este contexto. A matéria épica, apesar da visão crítica do Poeta, apesar das tremendas acusações do Velho do Restelo, permanece válida mas não indiscutida: há pelo menos duas verdades possíveis.
Se assim era no poema épico, como o não seria no soneto laudatório ao herói cuja marca mais dignificante, distintiva, teria sido a vitória sobre o povo vizinho, "a caterva negra e dura" que se lançara sobre a terra que o capitão certamente consideraria, em sua função, o seu ninho?
Notas de Rodapé
1 Cf. Gil Vicente, "Breve sumário da história de Deus". In: Obras completas de Gil Vicente, reimpressão fac-similada da edição de 1562, Lisboa, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1928, p. LXI.
2 A pronúncia deste nome próprio é contestável. Antenor Nascentes e Evanildo Bechara preferem Gandavo; cf. Sheila Moura Hue, Camões entre seus contemporâneos: sobre a recepção da obra camoniana no século XVI, tese para obtenção do título de Doutora em Literatura Portuguesa, Departamento de Letras da PUC-Rio, 2002, p. 84. Optei por Gândavo, como os responsáveis por essa edição da História.
3 Alguns editores da ode adotam a pronúncia grave Leônis, que não é arbitrária. Prefiro aqui, no entanto, o oxítono Leonis, que me parece o que convém ao ritmo do v. 57, bem como ao do v. 14 do soneto "Vós, ninfas da gangética espessura". Lá, no decassílabo sáfico "Que é dom Leonis que faz ao mundo inveja"; aqui, no decassílabo heróico "O nobre Leonis fez em Malaca".
4 Mais adiante explicarei o uso deste adjetivo.
5 Enfiado: pálido de medo, cf. Lus., I, 37 e II, 49. No primeiro exemplo, referido a Apolo; no segundo, ao mar Vermelho, que se tornara Amarelo. Ocorre-me lembrar que, na linguagem informal contemporânea do Brasil (não sei se de Portugal), amarelar tem o sentido de "desistir, por medo".
6 Da sagacidade de Mercúrio também nos dá Gil Vicente um precioso testemunho, quando o define como "senhor / De muitas sabedorias / E das moedas reitor, / E deus das mercadorias", aquele que "ministr[a as] pertenças" de "tratos e contratos, / Valias, preços, avencas." (op. cit., p. XXXI vº)
7 Cf. nota 4. Acredito ter aqui ficado claro o uso do adjetivo.
8 A primeira invocação fora feita às Tágides (I, 3-4).
9 "Quão doce é o louvor e a justa glória / Dos próprios feitos, quando são soados!"
10 Ver o ensaio "Os excursos do Poeta n'Os Lusíadas". In: Cleonice Berardinelli, Estudos camonianos, nova edição revista e ampliada, Rio de Janeiro, Nova Fronteira-Instituto Camões-Cátedra Padre António Vieira, 2000, p. 31-55.
11 Ver o ensaio "Por mares tantas vezes navegados". In: Cleonice Berardinelli, op. cit., p. 84-90.
12 Sobre o emprego deste adjetivo, ver Cleonice Berardinelli, op. cit., p. 52-4.
13 Cleonice Berardinelli, op. cit., p. 54-5.