As datas redondas, além de ajudar a marcar o tempo, têm inscrição certa em várias culturas, relacionando-se muitas vezes a determinados rituais. É ainda o tempo que sobredetermina os significados aí construídos. Esses marcos de um calendário quase sempre mexem com a imaginação e prestam-se para mobilizar as pessoas para comemorar tais datas, isto é, para trazer à memória algo ocorrido, num ritual que congrega, aproxima. Estão elas juntas, para confirmar e renovar valores que a comunidade considera como tal. Confirmam-se pactos, acordos, alianças, contratos, numa cerimônia pública, de certo modo, o Spetaculum , a festa pública.
O número 10, por exemplo, certamente circula pelo imaginário de muitas culturas. Dez são os mandamentos da Lei de Deus, na tradição judaico-cristã. Entre os pitagóricos, por exemplo, 10 é a soma dos quatro primeiros números e tem o sentido de totalidade, do acabamento, o número de retorno à unidade depois do desenvolvimento do ciclo dos nove primeiros números; é também uma imagem da totalidade em movimento. Observe-se que o 10 é a fórmula binária correspondente ao 2 nas calculadoras eletrônicas: o que confirma seu sentido, na origem do múltiplo e da manifestação, bem como seu papel totalizador.
Essas associações vêm à mente, no momento em que se comemoram os dez anos da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, nascida da assinatura do protocolo entre o Instituto Camões e a PUC-Rio. As intenções, os desejos e os objetivos, ainda um tanto abstratos naquele momento de origem, pareciam enfeixados naquela semente lançada sob a égide de seu patrono. E parece que caiu em terra fértil, como provam as realizações, frutos de um trabalho de uma equipe coesa de pesquisadores e alunos de pós-graduação, que, além de promoverem em fóruns brasileiros a literatura, as artes e a cultura portuguesas, efetivaram um permanente canal de diálogo entre elas e a cultura brasileira.
Entre os resultados dessa atuação, destacam-se os seminários internacionais realizados anualmente e a revista Semear , que publicava os textos aí apresentados. Esse periódico, de ampla circulação entre pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, chega agora ao seu número 10, comemorando os dez anos da cátedra. Ao reafirmar os objetivos e os valores que norteiam a ação da cátedra, congregamos todos, nesta festa pública, que fecha um ciclo e abre outro.
A revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses vem, por isso, vestida de novo, com novo design gráfico, trazendo dez ensaios que revisitam, de uma forma ou de outra, temas que marcaram, durante essa década, nossos seminários. Esses textos vêm assinados por pesquisadores da própria cátedra e por outros convidados, dentre os que, ao correr desse período, estiveram conosco, participando desses nossos fóruns de discussão.
Este volume comemorativo, ao convocar nossos parceiros acadêmicos, para, juntos, trazermos à memória (comemorar não é isto?) esses dez anos de atividades, compõe-se de ensaios inéditos, que se propuseram a revisitar, em perspectivas outras, assuntos que já fazem parte dos "arquivos" de Semear .
A organização deste número 10, assim, buscou estabelecer um diálogo com os outros nove números, dando-lhe um sentido de acabamento, de totalidade, de totalidade em movimento. Os ensaios trazem a essa "praça de convites" (para usar a expressão de Carlos Drummond de Andrade) a tradição dos estudos literários e culturais, ao lado de temas mais conectados à contemporaneidade, ambos, porém, procurando ângulos insuspeitados de abordagem. Os textos fazem, nessa perspectiva, circularem por suas páginas as figuras de Camões, de Vieira, de Camilo, de Pascoaes, de Cardoso Pires, de Pedro Nava, entre outros escritores de Portugal e do Brasil, ao lado de outros temas relacionados, de uma forma ou de outra, às linhas de pesquisa da cátedra, a exemplo das representações da cidade na literatura e em manifestações da cultura midiática, das novas propostas e novos formatos da narrativa deste início do século XXI, das relações entre a memória e a literatura, ou ainda da ressemantização de cenas produzidas pela modernidade e cenas da vida pós-moderna, de uma era pós-utópica, atrelada à globalização, que atinge a cultura, pondo em xeque as culturas nacionais. Esse conjunto é complementado com os ensaios que se propõem a refletir teoricamente sobre os estudos de literatura e de cultura.
A seção Varia segue a tradição de Semear , que sempre acolhe ensaios de doutorandos e mestrandos de estudos de literatura, textos que se derivam de suas respectivas pesquisas relacionadas às teses e às dissertações em fase de elaboração: são, portanto, parte de trabalhos em progresso, embora se possa observar a autonomia de cada um, quando ganham a forma de ensaio.
Em dez anos, vozes e palavras desembocaram na revista Semear , que no número 10 retorna à unidade, depois do ciclo dos nove primeiros números (para retomar a imagem dos pitagóricos), para se abrir para novos rumos, valendo-se de um lastro acumulado, que já é uma tradição, materializada em seus arquivos (os nove números anteriores). Este volume 10 representa, de certa forma, a totalidade em movimento, como a seta que, partindo de uma origem que a impulsiona, sempre caminha para frente, em direção ao seu alvo, que se é permanente, sempre se renova. "Até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto".