Stefania Chiarelli
PUC-Rio
A simplicidade franciscana da montagem causa impacto à primeira vista. Palco quase vazio, poucos objetos cênicos, dois personagens. E só. Assim é a montagem do texto Novas diretrizes em tempos de paz , de Bosco Brasil, espetáculo mais premiado de 2002, (tendo recebido três prêmios Shell e dois troféus APCA). A diretora Ariela Goldmann é a responsável pela encenação. Segundo o autor, a peça foi escrita em cinco dias, a partir de uma conversa de bar, em clima pós-11 de setembro, com o ator Dan Stulbach.
A história se passa em abril de 1945, final da Segunda Guerra Mundial, na Alfândega do Rio de Janeiro. Ali se confrontam o judeu-polonês Clausewitz (interpretado por Dan Stulbach) e o agente alfandegário Segismundo (Tony Ramos), incumbido da tarefa de entrevistar o imigrante no intuito de verificar se ele pode permanecer no país. Identificando-se inicialmente como agricultor, o imigrante acaba admitindo ser de fato um ator, profissão a qual se dedicara por muitos anos na Polônia, e por meio da qual aprendera o português com um professor de latim.
• A todo momento, o som da sirene do navio a vapor se faz ouvir, anunciando a partida iminente da embarcação. Essa ambientação em torno do cais revela dado preciso da realidade do imigrante: o mar, o porto, o navio, todos são elementos altamente significativos no imaginário daqueles que partiram sem saber quando e se retornariam. É freqüente a imagem do navio nas narrativas brasileiras que tematizam a imigração. Sobre o assunto, afirma Boris Fausto:
Na época das grandes migrações, a viagem transatlântica marítima constitui, como se sabe, o veículo por excelência dos deslocamentos; ela é para o imigrante um momento que marca sua vida. A partida assinala o encerramento de uma parte da existência ou quase sempre o abandono da pátria - a exceção maior sendo representada pelos judeus -, à qual muitas vezes se deseja retornar, sem que se tenha certeza da possibilidade do retorno. No outro pólo, a expectativa da chegada encerra esperanças, temores, incertezas 1 .
Nessa ambientação,já no escritório mal-iluminado da Alfândega, entediado com mais uma tarefa rotineira a desempenhar, o burocrata Segismundo decide desafiar Clausewitz e provoca: "Me conte suas histórias da guerra. Se eu não chorar nos próximos dez minutos por causa das suas lembranças, o senhor embarca no navio. Se eu chorar... Está vendo este salvo-conduto? É seu."
A partir daí é a impossibilidade de comunicar a dor da experiência-limite da guerra que passa a ocupar o centro da história. "O teatro não pode tocar o senhor. Estou de acordo. Não depois desta guerra. Mas as lembranças... Eu vivi estas lembranças. Foi... foi um tempo difícil", afirma Clausewitz. Contar o acontecido, relatar o trauma, parece equivaler para o imigrante a banalizar a lembrança, apressando seu desaparecimento. Entretanto, a decisão de silenciar sobre ele pode resultar na impossibilidade de iniciar nova vida, promessa contida no tão desejado salvo-conduto. De dentro desse conflito da insuficiência da palavra frente ao irrepresentável é que se constrói o drama de Clausewitz: "É o que eu estava dizendo. O mundo que eu vi... O teatro nunca vai falar do mundo que eu vi. O senhor não imagina o que é uma guerra dentro da sua própria casa." Na qualidade de testemunha, Clausewitz, assim como tantos outros indivíduos que viveram a guerra, depara-se com a falência face ao contar, sendo este sempre insuficiente frente ao horror dessa experiência. Por outro lado, a decisão de calar sobre isso omite e também tiraniza. Assim, "o testemunho se coloca desde o início sob o signo da sua simultânea necessidade e impossibilidade" 2 , segundo Márcio Seligmann-Silva.
É a partir de feridas, cicatrizes e ruínas que o sobrevivente tenta organizar o seu relato. "Relembrar nunca é um ato tranqüilo de introspecção ou retrospecção. É um doloroso re-lembrar, uma reagregação do passado desmembrado para compreender o trauma do presente", lembra Hommi Bhabha 3 .
A chamada literatura de testemunho , por meio de inúmeros estudos, tenta compreender como - e se seria possível - resgatar relatos a partir daqueles que viveram e foram vítimas das experiências da guerra. Sobre esse assunto, a famosa frase de Theodor Adorno de que escrever um poema após Auschwitz seria um ato bárbaro acabou sendo ponto de partida para inúmeras questões referentes à representação. Apesar de contundente, Jeanne Marie Gagnebin aponta que essa afirmação serve para alertar contra a transformação da lembrança em um produto cultural a ser consumido, apresentando a "tarefa paradoxal de transmissão e de reconhecimento da irrepresentabilidade daquilo que, justamente, há de ser transmitido para não ser esquecido" 4 .
Clausewitz, como veremos adiante, não será capaz de narrar em minúcias os horrores da guerra. Mas tampouco trata de anular ou apagar essa vivência. Na qualidade de ator/fingidor, fará uso de uma estratégia discursiva que lhe permite aludir à situação sem, entretanto, nomeá-la diretamente, já que, desde o início, essa nomeação coloca-se sob o signo da impossibilidade.
De acordo com Márcio Seligmann-Silva, a arte da memória, assim como a literatura de testemunha, é uma arte da leitura de cicatrizes 5 . Para que o imigrante Clausewitz possa ler suas cicatrizes - tentar dizer aquilo que por si só é indizível -, ele terá de acionar um repertório que lhe é familiar, no caso, um texto muito antigo em que justamente um dos temas fundamentais é a liberdade. Nesse momento, Clausewitz encena um ato de fala transgressor que lhe permite, ao mesmo tempo dizer/não dizendo. Segundo Shoshana Felman:
O testemunho é, em outras palavras, uma prática discursiva, em oposição à pura teoria. Testemunhar-prestarjuramento e contar, prometer e produzir seu próprio discurso como evidência material da verdade - é realizar um ato de fala , ao invés de simplesmente formular um enunciado. Como um ato de fala performático, o testemunho volta-se para aquilo que, na história, é ação que excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer, é impacto que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e delimitação constativa 6 .
Na literatura brasileira, o escritor Samuel Rawet (também judeu-polonês) não se furtou a mostrar essa faceta inusitada do drama do imigrante. Nascido na Polônia em 1929, Samuel Urys Rawet chega ao Rio de Janeiro em 1937 e, em 1957, a Brasília, onde permanecerá por quase trinta anos. Na cidade, trabalha como engenheiro da equipe de Oscar Niemeyer, Joaquim Cardoso e Lúcio Costa, fazendo cálculos para as construções da capital, entre elas o prédio do Congresso Nacional. Continua a produzir contos, novelas e ensaios, isolado e recluso em sua atividade intelectual. Rawet morre de aneurisma cerebral aos 55 anos, com indícios de problemas mentais na cidade de Sobradinho.
Em 1956, Rawet escreveu Contos do imigrante . Nos dez contos que compõem a obra, traz novidade, tanto no conteúdo quanto na forma dada à narrativa, uma vez que é pioneira a forma como expõe a conquista do espaço enunciativo a partir da ótica descentrada do imigrante. O caráter de ruptura e de isolamento da condição do imigrante adquire aqui máxima importância, aprofundando a temática antes referida nas obras de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Rawet, então com 27 anos, trata do tema do estrangeiro, da imigração e do caráter de estranhamento daí decorrente de forma inaugural nas letras brasileiras. A partir de Contos do imigrante , Jacó Guinsburg reconhece, em artigo de 1957, "o surgimento de jure da literatura de imigração em nossas letras" 7 . O autor estabelece, portanto, um espaço novo para que se instaure a reflexão sobre o tema. Mas não se trata somente desse lugar novo de onde fala, como também de uma linguagem nova que reivindica de forma contundente outra forma de olhar para essa experiência.
"Réquiem para um solitário " encena a situação de impasse irremediável em que se encontra aquele imigrante que venceu, que fez a América . A fartura na geladeira, a tranqüilidade das crianças dormindo no quarto e a presença da mulher companheira aparecem como indícios da estabilidade adquirida por anos de árduo sacrifício. Até o momento em que o personagem recebe uma carta que lhe traz a lembrança daqueles que ficaram para trás, provocando imediato mal-estar. Ele então se indaga: "Que dizer? Seria possível compor, pedaço a pedaço, os fluxos de idéias, desordenados, dar-lhes um fio, torná-los história que se conte em palavras? Depois, dizer o quê?" (p. 10). A impossibilidade de compartilhar experiências é também visceralmente exposta, aliada à insuficiência da palavra para nomear os horrores da guerra: "Os silêncios que se sucediam ao questionário sobre si mesmo, sobre o que de mais terrível experimentara. Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência do horror ante uma mesa bem-posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas?" (p. 11).
Em outro conto, intitulado "O profeta", acompanhamos a trajetória de um velho judeu que deixa a sua terra natal e chega ao Brasil, onde é recebido por familiares com quem tivera pouco contato. O isolamento a que se expõe termina por levá-lo a retornar a seu país, fechando um ciclo de dor e solidão. O conto se inicia e se encerra com sua partida, em um cais, quando decide retornar. A forma como é construído desvela do mesmo modo a problemática da incomunicabilidade, uma vez que, no princípio, o velho fechase no silêncio sobre sua trajetória como forma de evitar tornar-se um entretenimento qualquer. Depois, na tentativa de obter alguma atenção "principiou a narrar o que havia negado antes. Mas agora não parecia interessar-lhes" (p. 14). Por fim, volta a fechar-se em seu mutismo que leva à decisão final de abandonar tudo e embarcar no navio de volta à sua terra. Nos contos de Rawet, a resposta parece ser a de que não é possível compartilhar essa dolorosa experiência sem que ela tome a forma de mera curiosidade.
Sobre essa nulidade da palavra, notem-se as palavras de Julia Kristeva:
Não contar para os outros. Ninguém o escuta, a palavra jamais é sua, ou então, quando você tem a coragem de tomá-la, rapidamente ela é apagada frente aos propósitos da comunidade, quase sempre mais volúveis e cheios de desembaraço. A sua palavra não tem passado e não terá poder sobre o futuro do grupo. [...] Somente o escutarão distraidamente, como uma diversão, e o esquecerão rapidamente para poderem tratar de coisas mais sérias 8 .
É possível reconhecer nessas obras a predominância do tema da culpa por ter sobrevivido. "À vergonha que acomete o sobrevivente, por não ter morrido com seus companheiros, se acrescenta a vergonha de ter que falar, de só poder falar de maneira profunda-mente inconveniente", afirma Jeanne-Marie Gagnebin 9 . A autora chama a atenção para a especificidade do genocídiojudeu: a memória viva e paradigmática, ressaltando que a preservação sagrada talvez se deva a características histórico-culturais do judaísmo, tais como o apego à memória, à tradição, como transmissão, e à escrita.
"Eu acreditava que, tendo sobrevivido por acaso, era minha obrigação dar significado à minha sobrevivência, justificar cada momento de minha vida. Sabia que era preciso contar a história. Não transmitir uma experiência é traí-la; é isso que a tradiçãojudaica nos ensina." Palavras do judeu romeno Elie Wiesel, no artigo Por que eu escrevo? 10 , em que relata seu penoso esforço em relembrar, o qual associa a um dever. Primo Levi, autor judeu-italiano, nas obras É isto um homem ?, Os afogados e os sobreviventes e A trégua também expressa a culpa que sentem os sobreviventes: a de não ter resistido heroicamente, e ter-se deixado humilhar, ou de não ter feito o suficiente pelos outros, mais desfavorecidos. Ou de ter conseguido obter mais que os outros, enfim, o fato de saber que quem sobreviveu, o fez à custa da morte de muitos. Como muitos de sua condição, suicidou-se em 1989.
A estratégia discursiva a que nos referimos anteriormente refere-se à citação da peça à obra A vida é sonho , do dramaturgo Calderón de la Barca. Nesse clássico do barroco espanhol, de 1635, Segismundo não aparece como ex-torturador, mas como prisioneiro. Desde o dia que nasceu, encontra-se sob a guarda do velho carcereiro Clotaldo. Seu pai, o rei Basílio, acreditara num oráculo cuja previsão era a de que o filho seria um tirano cruel e traria desgraças ao reino. Mas resolve dar uma chance ao filho. O príncipe da Polônia será rei por um dia. Caso a profecia se cumpra, voltará para a torre. Segismundo é então dopado e acorda rei. Age violentamente, dando vazão à revolta acumulada em anos de encarceramento e, por isso, volta para a torre. Quando acorda, é convencido que tudo não passou de um sonho. Mas o povo já tomou conhecimento de um legítimo sucessor, e Segismundo voltará ao poder apoiado pelo povo. E, uma vez no poder, seguro de seus direitos, agirá de forma diferente. Tudo aquilo que acreditava ser real se dissolve, demonstrando que a vida é sombra, ilusão, ficção. É dessa peça o tocante monólogo de Segismundo sobre a liberdade, ironicamente deslocado para a boca de Clausewitz:
Apurar, ó céus, pretendo,/ já que me tratais assi,/que delito cometi/contra a vós outros, nascendo;/ que, se nasci,já entendo/ qual delito hei cometido:/ bastante causa há servido/ vossajustiça e rigor,/ pois que o delito maior/ do homem é ter nascido./ E só quisera saber,/ para apurar males meus/ (deixando de parte, ó céus,/ o delito de nascer),/ em que vos pude ofender/ por me castigardes mais?/ Não nasceram os demais?/ Pois se eles também nasceram,/ que privilégios tiveram/ como eu não gozei jamais?/ Nasce a ave, e com as graças/ que lhe dão beleza suma,/ apenas é flor de pluma,/ ou ramalhete com asas,/ quando as etéreas plagas/ corta com velocidade,/ negando-se à piedade/ do ninho que deixa em calma:/ só eu, que tenho mais alma,/ tenho menos liberdade? Nasce a fera/ e com a pel'/ que desenham manchas belas/ apenas é signo de estrelas/ (graças ao douto pincel),/ quando atrevida e cruel,/ a humana necessidade/ lhe ensina a ter crueldade,/ monstro de seu labirinto:/ só eu, com melhor instinto,/ tenho menos liberdade?/ Nasce o peixe, e não respira,/ aborto de ovas e lamas,/ e apenas baixel de escamas/ por sobre as ondas se mira,/ quando a toda a parte gira,/ num medir da imensidade/ co'a tanta capacidade/ que lhe dá o centro frio: / só eu, com mais alvedrio,/ tenho menos liberdade?/ Nasce o arroio, uma cobra/ que entre as flores se desata,/ a apenas, serpe de prata,/ por entre as flores se desdobra,/ já, cantor, celebra a obra/ da natura em piedade/ que lhe dá a majestade/ do campo aberto à descida:/ só eu que tenho menos vida,/ tenho menos liberdade?/ Em chegando a esta paixão/ um vulcão, um Etna feito,/ quisera arrancar do peito/ Pedaços do coração/ que lei, justiça, ou razão,/ nega aos homens- ó céu grave!- / privilégio tão suave,/ excepção tão principal,/ que Deus a deu a um cristal,/ ao peixe, à fera, e a uma ave? 11
Bosco Brasil retoma o monólogo desse texto consagrado da dramaturgia espanhola, mas o expediente vem acompanhado da de-vida inovação: o contexto brasileiro. Neste, Segismundo é ninguém menos que um torturador angustiado com a possibilidade de ser afastado da sociedade pelo novo momento político que se inicia.
Tendo-se dedicado por anos a fio ao papel de carrasco, está prestes a ser dispensado por aqueles a quem se dedicou servilmente. Um dos aspectos notáveis que se destaca dessa estratégia intertextual é o de uma retomada da visão do teatro como ilusão, jogo , idéia que se concretiza nas múltiplas possibilidades de diálogo entre obras e personagens distantes, mas que têm muito em comum.
• A idéia central de A vida é sonho gira em torno do fato do rei Basílio - apesar de cruel - dar nova chance ao filho, permitindo que este refaça sua trajetória. O tema da chance reaparece em Novas diretrizes , uma vez que é a partir desse desafio proposto pelo torturador que Clausewitz deve organizar suas memórias. As armas para a batalha, as palavras. Palavras suas, mas também palavras de Segismundo - o príncipe de A vida é sonho . Instaura-se, portanto, o jogo quiasmático entre as duplas de personagens Segismundo/prín-cipe e Clotaldo/carcereiro e o outro par, Segismundo/funcionário e Clausewitz/imigrante. Nesse grande teatro do mundo só é possível aludir à impossibilidade de recuperar a memória da dor recorrendo à fala do outro. Em outras palavras, Clausewitz só consegue emocionar Segismundo/funcionário - e assim obter o salvo-conduto - por meio de sua performance teatral cujas palavras são de Segismundo/ príncipe. Tudo devidamente embaralhado e recolocado em outros lugares, para aludir a situações semelhantes, que envolvem o poder transfigurador e libertador da palavra.
Contos do imigrante e Novas diretrizes em tempos de paz trazem à baila essa discussão sobre a árdua tarefa de ler cicatrizes: tratamse de obras que provocam na medida em que propõem inusitado ponto de vista sobre o tema da imigração, proporcionando também a rediscussão de mitos que fazem parte do imaginário brasileiro. A visão tradicional do país hospitaleiro, que recebe o imigrante de braços abertos, dando-lhe nova oportunidade, é desconstruída nesses textos. A imagem de paraíso racial, onde as três raças originais se congraçam em harmonia, constitui uma espécie de discurso de fundação do caráter nacional que vai sendo questionado nesses textos.
Mas enquanto Samuel Rawet presume a impossibilidade da compreensão do outro em sua irredutível diferença 12 , Bosco Brasil mantém uma visão otimista, diria-se até utópica desse encontro, entrevendo a possibilidade de que esses estranhos estrangeiros possam irmanar-se na dor. Talvez pela perspectiva de Bosco Brasil ser a do brasileiro, diferentemente do olhar estrangeiro de Rawet sobre o tema, prepondere na peça Novas diretrizes em tempos de paz certa perspectiva neo-humanista, que aposta em valores éticos para o tempo de agora. Rawet, espécie de pioneiro e talvez por ser o imigrante propriamente dito, parece lidar com a matéria quase como uma catarse, expondo de forma crua todos os seus conflitos, e exorcizando via escrita parte de seu drama, indissociável do fato de ter negado a tradição a que pertencia. Em seus últimos escritos, afirmava ser um "ex-judeu". Na amarga visão de Rawet, o confronto com a alteridade não dispõe de espaço para a conciliação, pois é visto como ameaça e agressão aos olhos da sociedade.
Na obra O homem desenraizado , o teórico e lingüista Tzvetan Todorov 13 afirma:
O homem desenraizado, arrancado de seu lugar, de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento. [...] Ele pode, entretanto, tirar proveito de sua experiência. [...] Talvez ele se feche em ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade de seus hospedeiros. Mas, se ele conseguir superá-los, descobre a curiosidade e aprende a tolerância 14 .
Partindo da conceituação de Todorov, é possível verificar aspectos referentes ao ressentimento e à tolerância nos personagens de Rawet e de Bosco Brasil, respectivamente. Quase meio século separa suas obras, que guardam diferenças concernentes à vivência dos autores e ao contexto em que foram produzidas. Nosso objetivo nesta reflexão, reunindo-as, foi o de promover um insuspeitado diálogo a partir das questões suscitadas por seus autores. Discutir aspectos referentes à representação do estrangeiro/imigrante judeu no Brasil certamente contribui, seja nos anos 1950 de Rawet ou na contemporaneidade de Bosco Brasil, para o questionamento sobre as formas com que são representados personagens fundamentais da história do país. Memórias do Brasil, facetas nem sempre desejáveis da trajetória de um país em que tantos imigrantes chegaram para fazer a América e não dispuseram de espaço ou condições para gerar sua própria versão dos fatos.
Referências bibliográficas
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. "A (im)possibilidade da poesia". CULT - Revista Brasileira de Literatura , nº 23, p. 48-51. _________. "Palavras para Hurbinek". In: Arthur Nestrovsky; Márcio Seligmann-Silva, (org.). Catástrofe e representação . São Paulo: Escuta, 2000. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos . Rio de Janeiro: Rocco, 1994. RAWET, Samuel. Contos do imigrante . Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. SELIGMANN-SILVA, Márcio. "A literatura do trauma". CULT - Revista Brasileira de Literatura , nº. 23, p. 40-7.
WALDMAN, Berta. Entre passos e rastros : presença judaica na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Perspectiva/FAPESP/Associação Universitária Judaica, 2003.
WIESEL, Elie. "Por que eu escrevo?". In Nélson Vieira (org.). Construindo a imagem do judeu . Rio de Janeiro: Imago, 1994. TODOROV, Tzvetan. L'homme depaysé . Paris: Seuil, 1996.
Notas de Rodapé
* Doutoranda em Estudos Literários na PUC-Rio.
1 Boris Fausto, "Imigração: cortes e continuidades", in: Lilian Moritz Schwarcz (org.), História da vida privada no Brasil , vol. 4, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 15.
2 Márcio Seligmann-Silva, "A literatura do trauma", CULT - Revista Brasileira de Literatura , nº 23, p. 20.
3 Homi Bhabha, O local da cultura , Belo Horizonte, UFMG, 1998, p. 101.
4 Jeanne-Marie Gagnebin, "A (im)possibilidade da poesia", CULT - Revista Brasileira de Literatura , nº 23, p. 51.
5 Seligmann-Silva, op. cit., p. 46.
6 Shoshana Felman, "Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar", in: Catástrofe e representação , Arthur Nestrovsky, Márcio Seligmann-Silva (org.), São Paulo, Escuta, 2000, p. 18.
7 Apud Berta Waldman, Entre passos e rastros : presença judaica na literatura brasileira contemporânea, São Paulo, Perspectiva/FAPESP/Associação Universitária Judaica, 2003.
8 Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos , Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 28.
9 Jeanne-Marie Gagnebin, "Palavras para Hurbinek", in: Arthur Nestrovski (org.), Catástrofe e representação , São Paulo, Escuta, 2000, p. 107.
10 Elie Wiesel, "Por que eu escrevo?", in: Nélson Vieira (org), Construindo a imagem do judeu , Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 23.
11 Tradução de Jorge de Sena, encontrada no site www.terravista.pt/
12 É necessário salientar que o caso da imigração judia encerra especificidades que encontram reflexo na forma como os judeus se representam e são representados, uma vez que se trata de um povo marcado pela diáspora e pela errância ao longo da história.
13 Búlgaro naturalizado francês, Todorov tem uma trajetória marcada pela reflexão sobre a questão do estrangeiro, que parte de sua experiência pessoal.
14 Tzvetan Todorov, L'homme depaysé , Paris, Seuil, 1996, p. 24.