Helena Carvalhão Buescu
Universidade de Lisboa
Visitando há tempos uma exposição sobre Vergílio Ferreira, na Biblioteca Nacional, pude verificar como algumas das descrições dos seus livros - e, em certos casos, algumas das suas cenas arquetípicas -tinham por ponto de partida fotografias. Não me espanta. Porque o problema das imagens foi sempre central em Vergílio Ferreira. A ponto que, em dada altura, me lembro que ele me disse: "Para mim a fotografia tem sido um problema. Mas parece-me que o resolvi." Frase que apenas podemos considerar à luz do modo como Vergílio Ferreira nos dizia que resolver um problema era para ele converter a resposta num novo enigma.
Creio que essa provisória "resolução" tem lugar nas páginas do livro Pensar , mais precisamente no fragmento 65, em que Vergílio Ferreira nos diz:
[...] a própria fotografia reconstrói o mundo à sua medida. Assim, logo no enquadramento, na limitação que impede a sua hemorragia para os objectos circundantes. Mas se se fotografar um objecto mesmo conhecido, que é que faz que olhemos o objecto e a foto e sintamos uma diferença? Que olhemos a foto com um especial interesse ou fascinação com que não olhamos o objecto? Que olhemos diferentemente um objecto e o seu simples reflexo num espelho? Halo de um inquietante mistério, ele insinua decerto uma transposição para o imaginário, ou seja, que toda a imagem de um objecto está sempre para lá. [...] O imediatismo do figurado entra no domínio do irreal dele, desde a palavra que o sinaliza, estabelece uma relação não com o que dele se conhece, mas com o seu incognoscível que é o do seu autor.
Donde, em cada imagem, em cada fotografia, em cada quadro, o real recua um pouco, e, nesse retraimento, inaugura um "para lá" que é da ordem da irrealidade. Só que esse "para lá" não é um lugar, não tem o estatuto de um bastidor, que se possa definir como território. Mais do que um lugar atribuível, é um movimento em direcção a um "sempre mais para lá". A imagem vive distanciando-se de si mesma, no tempo e no espaço: cria lonjura na proximidade, envelhece e amarelece nas nossas próprias mãos.
É por isso que o sujeito lança um fio de palavras para procurar conter esse movimento da imagem e evitar que ela desapareça no lago infinito do seu enigma azul. A palavra arrasta o real para a superfície, e disso se fazem textos, poemas, romances, ensaios, pensamentos. No fragmento 85 do mesmo livro, podemos ler:
A transcendência da realidade começa na fotografia e termina na palavra. Porque é que ao olhares um objecto conhecido e vês a sua fotografia, olhas esta com um sentir diferente? Porque é que
o real e a sua pressuposta imagem fotográfica têm de permeio algo de estranho ou surpreendente? Há já aí uma transposição para um outro domínio em que o imaginário obscuramente se nos abre, como creio já ter dito. Que todavia se leia o que o escritor viu nesse real e saberemos como a própria imagem se transfigurou. E é o que se inicia já na representação pictórica do mesmo "real", por mais "realista" que ela for. Mas a palavra transpõe-no para um máximo de irrealização, porque é necessário reconstruí-lo e fixá-lo no puro imaginar. Do real à palavra vai uma distância infinita.
Donde a irrealização primeira que a fotografia instaura constitui, no seu desvanecer-se em vazio, um apelo, e a esse apelo responde a escrita, o trabalho do escritor, que consiste precisamente em radicalizar a irrealização, levando-a ao seu máximo, de modo a produzir dois efeitos: por um lado, instituir uma distância infinita do real à palavra. Mas, em segundo lugar, dar consistência e coerência a essa irrealidade, evitando que ela se esfume, fixando-a e nomeando-a.
Poderíamos talvez mostrar como toda a obra de ficcionista de Vergílio Ferreira emerge de certas fotografias reais ou mentais. Mas julgo que a melhor demonstração disso foi feita no volume que Helder Godinho e Serafim Ferreira elaboraram para a Bertrand, em 1993, e a que deram o título de Vergílio Ferreira - fotobiografia . Estão lá todas as imagens de Vergílio - as imagens do seu nome próprio.
Vale a pena dizer neste momento que essas imagens funcionam como um apelo na medida em que nelas se inscreve esse tipo de vertigem a que Roland Barthes deu o nome de " punctum " - uma "ferida cega" para dizer como Lucrécio, que se precipita em direcção a nós, que nos atinge na nossa vulnerabilidade essencial. Na Contacorrente - 3 , Vergílio Ferreira diz, em dado passo, que trouxe de Melo um retrato da sua avó materna. E descreve-o assim:
O retrato da minha avó fui eu que lho tirei. Está sentada nos degraus da cozinha da casa a fazer renda. Os óculos na ponta do nariz, as saias até aos pés e um chinelo visível com a biqueira rota. Lembro-me de lhe tirar este retrato. Disse-lhe: "Faça de conta que está a fazer renda, mas não se mexa". Ficou bem na sua pose de lavrar.
Sublinhe-se: um chinelo visível com a biqueira rota. Há neste pormenor algo que nos afecta, na medida em que ele é eloquente, mas a sua fala é involuntária. A biqueira rota abre em nós um movimento de inclinação, empurra-nos para o arrebatamento da ternura: porque diz o tempo que rompe as biqueiras dos chinelos, porque exibe a fragilidade dos seres, as zonas puídas das imagens de autoridade, o involuntário da pose. A pose é um erguer da cabeça, um arquear do peito, uma tentativa de nos elevarmos ao ideal do que somos, e no entanto, num interstício da imagem, irrompe uma verdade incontível: a biqueira rota, a dureza da vida, o desamparo em que tu és.
Vergílio Ferreira continua:
tento-lhe ouvir ainda a voz, já é difícil - há quantos anos?
Cinquenta, talvez. Está ainda viva ali, mas já sem voz audível
na memória. Estava sol naquele dia de há cinquenta anos. As
escadas da cozinha ainda lá estão. Ela só lá está na memória que
é minha e no retrato que está ali na parede. Um dia estará só o
retrato. Um dia alguém perguntará de quem é este retrato. E um
dia não estará o retrato. Até que não se saberá que esteve.
Gostaria de sublinhar dois pontos que me interessam em particular. A noção de rede, tão celebrada hoje, tem em Vergílio Ferreira uma acepção específica. Porque viver é construir uma rede e vê-la desfazer-se aos poucos. Como explica no fragmento 13 do livro Escrever , recém-publicado através da paciente reconstituição de Helder Godinho:
Somos na nossa normalidade uma teia que nos liga aos outros e que a todos nos sustenta. Quanto génio se não terá criado na implícita necessidade da relação com esses outros. E a vida quotidiana, desde a porteira que nos diz bom-dia quando vamos buscar o jornal, aos inúmeros encontros e telefonemas que nos fazem existir. Mas na velhice a rede vai-se desintegrando. Cada homem realiza-se em função dos que lha estruturam. É a rede que estabelecemos na juventude e vem vindo connosco ao longo da vida. Com ela somos quem somos e a eternidade está connosco. Quando um jovem se integra nela, é uma festa. Porque vem de outra zona de existir e traz-nos a ilusão ou a esperança de que também nela existimos. E é uma festa porque nos faz renascer. Mas a verdade verdadeira está noutro lado, na teia em que somos aranha, no código em que a palavra se entende. Como falares ainda, se já não há quem te entenda? De vez em quando, um laço da rede desfaz-se, um amigo calou-se definitivamente.
A gaveta das fotografias, o álbum das fotografias, as fotobiografias, têm uma dupla função: permitem que a rede subsista nos fios de pura luz impalpável de que as imagens são feitas, e por isso nos prolongam na ilusão de que uma eternidade perdura; mas são, numa contabilidade impiedosa, como as velhas listas de telefones: suscitam o inventário dos que desaparecem e demarcam com rigor a exiguidade do território a que progressivamente nos confinamos. E, numa aceleração cósmica a que Vergílio Ferreira recorre com frequência, permitem pressentir o espaço de lugar nenhum e de esvaziamento absoluto em que se enuncia a pré-história sempre futura da nossa história.
Um outro ponto tem a ver com a questão da voz. O que se retrai nas fotografias, a zona de fronteira em que a irrealização se empolga tem a ver com o som, música ou voz, ruído ou cantilena, que de repente não estãojá lá. É aí que começa o para lá. É por essa ponta que a labareda se propaga. É nesse silêncio que o apelo da imagem nos grita. Como escreve Vergílio Ferreira em Alegria breve ,
Mortos que passastes - vejo-vos. Fito-vos o olhar que me fita, longo, piedoso, triste. Como numa galeria, de um a um. Nada dizeis. E de súbito uma música ignorada cresce-me de longe, como um aceno humilde, os meus olhos tremem. Suave e longínqua e tão ilícita. Sobe em mim. Aperta-me o pescoço como uma criança - a ternura é o mais difícil e enternecemonos tanto. Que é que comove? Como uma árvore, às vezes penso, o homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos.
Vemos assim que a transcendência irreal da imagem irrompe através da música que lá não ficou ou das vozes que nela se silenciaram. E que é nesse fio agudíssimo em que a imagem transborda em som para a linguagem que a literatura começa - escrever, pensar.
Mas há ainda um outro ponto que me apetecia pôr em relevo: é a questão da pose. Ao olhar para si mesmo numa fotografia antiga, Vergílio Ferreira esbarra com o que nela é pose, isto é, imposição de um sentido, tentativa de inscrição num código social, numa prateleira de produtos com etiqueta à vista. E escreve:
Sou eu outra vez, conheço-me, mas agora muito mais novo. A pele luzidia dejuventude. O cabelo luzidio de brilhantina. Gostei de me ver. Não muito. Aquele cabelo "à tango", empastado de pomada. E o nó da gravata muito largo, como almofada dos andoreiros, aquela em que pregam os alfinetes com que vão armando os andores.
Aqui a pose é uma cor demasiado berrante, que não suscita ternura, mas sobranceria e desprezo: é um fazer-se para a fotografia, atirar-se para a frente, um produzir-se como imagem. Neste caso, a pose é um uso do imperativo: vejam como eu sou.
Nada do que ocorria com a foto da avó materna. Aqui a pose é apenas um desbastar do supérfluo para que a imagem se inscreva legitimamente na grande ordem do mundo. Se "cada época gera um misterioso equilíbrio no modo de se ser", a pose é apenas um deixar ser para que esse equilíbrio se torne visível. Nesse caso, "a pose de lavrar" da avó materna tem a marca do infinito pessoal do universo.
Como se diz em Nítido nulo , "o passado tem uma beleza luminosa e fixa como um instantâneo fotográfico".
É o infinito pessoal da imagem que suporta o presente com que a ela nos dirigimos:
Agora estás sentada comigo no pátio da Universidade. É de
tarde, talvez, porque só uma tarde serena devia ser em Maio ou
Junho, o dia da tua festa de despedida, havia um espectáculo
à noite. Mas eu não podia assistir até ao fim e nunca mais te
falei. For ever.
Vimos já como a escrita se torna irreprimível no momento em que a irrealidade da imagem ameaça resvalar para o vazio sem redenção. É aí que a mão se estende e salva um rosto de se afogar na morte. Tu, Sandra, a irrealidade do amor. Como nesta passagem de Conta-corrente -3 :
Vou acender o fogão da sala. Tenho a lenha acumulada à minha frente. Tenho o passado acumulado no meu olvido. Vou acender o fogão, acender a evocação. O silêncio na casa. O silêncio lá fora. Imagens ternas do que passou. Minha comoção oblíqua. Reacender à vida o que morreu. Vou acender o fogão.
Nesse fogo que arde para se ver ainda o que nele se queima, estabelece-se o fio que conduz da ternura ao amor. Se as fotografias são para Vergílio Ferreira o lugar do amor, é porque a irrealização que nelas se acende se torna a irrealização que todo o amor é. Vergílio Ferreira escreve no fragmento 19 de Escrever : "Porque todo o amor é uma irrealização. Se se realiza, já não serve." Se nesse cruzamento de fios e tempos desencontrados que é cada frase de Vergílio Ferreira, sentimos, no limite alucinado de certas invocações, um tu que nos dá vontade de chorar, é porque, como diz o protagonista de Rápida, a sombra , "há o teu retrato ali, no meio das estantes. Fixo-o intensamente até ao choro". Fixo-o, repetiria eu, até a esse limiar convulsivo, em que ver uma fotografia nos confronta com a eterna música do irreversível.
As imagens de Vergílio Ferreira são também algumas das minhas imagens: ali está o meu pai na entrega do Prémio Camilo Castelo Branco, em 1960, e na dobra da fotografia ali estou eu, adolescente de dezasseis anos, a deixar-me iluminar a pique com as páginas daquele romance. Ali está a casa de Fontanelas, serena, ligeiramente difractada pelo espelho de uma moto em primeiro plano, mas foi naquela entrada coberta de sol que, durante uma tarde, o Lauro António, a Tereza Coelho e eu tentámos com êxito convencer Vergílio Ferreira a apoiar o general Eanes na sua candidatura às presidenciais. Ali está o cadeirão da casa de Lisboa, onde conversei com o Vergílio Ferreira e o Eduardo Lourenço na véspera das provas do meu doutoramento. Ali estamos nós em Bordéus, lá está de novo o Eduardo Lourenço, a falar para alunos de liceu, num convite de Sylviane Sambor. Mas a aflição é sempre a mesma, e foi Vergílio Ferreira quem melhor nos ensinou a senti-la:
A foto andou lá em casa, perdeu-se. Lembrei-me então de pedir ao Zé que achasse uma de algum peregrino de Melo e me ampliasse a efígie. E o que veio foi uma foto estranha. Lá estou
- como é que estou? Não me sinto ali - olho o miúdo com uma aflição indizível.
O que fica no exterior de todas as imagens é o tocar. Vivemos na convicção talvez equivocada de que tocar nos salvaria. Mas aquele que toca sabe que tocar é um ritmo, uma combinação entre o tocar e o não tocar, uma gestão do intervalo, uma presença e uma ausência. Toca-se mil vezes e apenas se toca a impossibilidade do tocar absoluto. A imagem é somente a face mais visível de uma intocabilidade generalizada. De um exílio. De um naufrágio. De uma despedida irreversível. E no entanto a súplica continua: "Entro na Pastelaria Central, se tu estivesses? Mesmo no fundo da tua irrealidade. Não te tocar, falar-te apenas, é pedir muito? Ver-te na névoa da minha invenção." (Até ao fim.)