Sumário

A multiplicidade de Fernando Pessoa e a encenação da vida moderna

Izabel Margato
PUC-Rio / CNPq
Cátedra Padre António Vieira

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Fernando Pessoa 1

Os versos de Álvaro de Campos que escolhemos como epígrafe apresentam, de forma condensada, uma celebração à modernidade. No entanto, se retomarmos o poema, percebemos a ambigüidade dessa celebração. Trata-se de uma celebração contida, onde a rasura, muitas vezes, tem o predomínio significante. Mas esse "canto de louvor" poderia ser completamente afirmativo? Esta questão é um dos eixos significativos que orientam a composição deste texto. Pas­semos, então, ao seu desenvolvimento.

O movimento de Orpheu inaugura o modernismo, em 1915, nas ruas lisboetas com muitos gritos, grandes arruaças e com os no­vos artistas vestidos de Arlequim. Entre os grandes do movimento que então se inicia está Fernando Pessoa, o poeta mais importante do modernismo português.

A rotulação modernista , prática e rotineira, com que se classi­ficam poetas e artistas do início do século XX também pode ser aqui usada, o que sem dúvida, apenas exercerá a função de eco do já dito e muitas vezes repetido sobre o principal poeta de Orpheu . É bem verdade que os nomes de Sá-Carneiro e Almada Negreiros também se inscrevem nesse universo de aventura renovadora com que Orpheu assombrou a comunidade portuguesa do início do século, ao assu­mir o papel de "insuflar uma vida, um oxigênio novos" 2 numa socie­dade que não acertava o passo no movimento de crescente mudança, de modernidade, já há muito instalado nas grandes metrópoles da época.

A disseminação dessa "vida " e "oxigênio novos" na poesia por­tuguesa coube, por sorte ou azar, ao carro-chefe do grupo: Fernando Pessoa. Além disso, e também por isso, Fernando Pessoa não pode­ria escapar ao adjetivo modernista pela própria criação do poeta Álvaro de Campos. Criação esta que, como a dos outros heterônimos, traz na base a dispersão do eu nos outros seres que são afinal ele mes­mo . E isso, afinal, é mais moderno que o próprio canto às máquinas, à velocidade, ao novo. É mais moderno, ainda, que o próprio Álva­ro de Campos, espécie torcida, ou mesmo invertida de poeta mo­derno 3 .

Mas o que é ser moderno, modernista, ou então, expoente da modernidade do início do século XX? É difícil chegar-se a uma defi­nição precisa. Há várias modernidades. Talvez se possa pensar assim. Ou então a modernidade deva ser percebida como um movimento

- desencadeado no século XVI, e fortalecido no decorrer dos sécu­los XIX e XX 4 , - que foi assumindo diferentes feições e versões, num constante mudar que é a natureza última do seu próprio existir? Talvez esta idéia de movimento interno e contínuo , alimentado por sucessi­vas mudanças de fisionomia que cada momento novo proporciona, seja um dos conteúdos mais próximos do que se convencionou cha­mar a modernidade. Este é o principal recorte que elegemos como objeto de reflexão.

As principais formas, objetos ou signos, que desempenham sucessivamente a função de emblema da modernidade, costumam trazer latente a idéia de ruptura com o passado, e acenar com o novo signo - traço ou marca - que passa a delimitar o sentido de cada época: a fábrica, o burguês, o progresso, a cidade, a estrada de ferro, a rua macadamizada, a máquina, a velocidade, os meios de comuni­cação, enfim, o Novo . Novo que, pela própria especificidade, será de pouca dura, pois os objetos e valores produzidos na sociedade mo-derna têm sua duração constantemente limitada pelo aparecimento de novos valores, novos objetos, novos signos de modernidade, isto é, a constante superação, o perpétuo estado de vir-a-ser, característi­co do momento em que foram gerados.

Neste momento, uma nova delimitação se faz necessária. Situando-nos em Lisboa, no início do século XX, ao lado de todos os ismos que celebraram os signos modernos dessa época, destacamos o poeta Álvaro de Campos como ponto de partida para esta indaga­ção sobre o modernismo português. Destacamos principalmente o Álvaro de Campos de "Ode triunfal", "Ode marítima" e ainda dos outros poemas que compõem a chamada primeira fase. São eles que ganham destaque como os textos pessoanos mais representativos do modernismo português. A crítica assim os consagra e assim também os explica. E talvez não haja mesmo muito mais a acrescentar a esse universo de leitura sobre o modernismo tão evidente do primeiro Álvaro de Campos: a celebração furiosa e apoteótica da máquina e do movimento convulsivo que ela representa; a fraternidade com todos e com tudo- "Como eu vos amo a todos, a todos" [...] " Amo­vos a todos, a tudo, como uma fera"- ; o "Sentir tudo de todas as maneiras ", que é afinal a forma mais intensa de penetrar o mundo, ou deixar-se penetrar por ele; a consagração dos infinitos e prosai­cos componentes do cotidiano, arrancando-os do rés-do-chão em que secularmente foram colocados; a criação ou a assimilação da prosa poética como a forma mais moderna de cantar o novo. Estes são alguns dos componentes da proposta modernista. Presentes em quase todas as obras dos poetas modernos, eles também estão presentes em Álvaro de Campos. Entretanto, se esses traços não tornam únicos os seus primeiros versos (freqüentemente aproximados dos textos de Walt Whitman e dos futuristas italianos), sem dúvida funcionam como a moldura que por vezes o separa dos outros heterônimos e, ainda mais fortemente, o afasta de Fernando Pessoa, ele mesmo.

Estranha condição esta em que nos deixou Fernando Pessoa, pois sempre acabamos por ser levados a diferenciá-lo dele mesmo. Mas, se compactuarmos com o jogo de máscaras que ele próprio montou, não há como não distinguir a poesia ortônima das outras todas que Pessoa criou e, principalmente, da que se delimitou como a primeira fase de Álvaro de Campos.

Na sua segunda fase, essa diferença já não é tão nítida. Há poemas em que a distinção entre Campos e Pessoa Ele-Mesmo é quase impossível. Enfraquecimento dos traços futuristas ou whitma­nianos em Álvaro de Campos? É provável que sim ou, pelo menos, o que se dá é o enfraquecimento da evidência deles. Diminuição do moderno em sua poesia? Acreditamos que não. É que o verdadeiro sentido do moderno em sua obra vai adensar-se progressivamente, na justa medida em que a sua aproximação da poesia ortônima se fizer mais evidente e em que o eco da matrizes de Walt Whitman diminuir em sonoridade, em intensidade. Mas é importante acen­tuar o termo "diminuir", já que a presença de Walt Whitman em Álvaro de Campos não pode ser apagada pelo fato mesmo de já es-tar inscrita no conjunto da obra de Pessoa, ou no próprio cerne de sua criação poética 5 .

Curiosamente, é no exato momento em que essa presença é mais visível (ou seja, nos poemas do primeiro Álvaro de Campos), que Eduardo Lourenço vai situá-lo como mais afastado de Whitman e até da modernidade, pelo excesso com que a canta, ou pelo desvio significativo que a exacerbação da matriz significa 6 .

No seu ensaio "Walt Whitman e Pessoa", vimos abordada a ques­tão da influência de Whitman em Fernando Pessoa exatamente pelo ângulo oposto ao que já nos habituáramos a ver, ou seja, o do pa­rentesco de Whitman com o primeiro Álvaro de Campos. A esse pa­rentesco já assimilado, Eduardo Lourenço chama de "waltwhitma­nismo confesso e sem alcance particular", reservando, por outro lado, para a relação Whitman-Caeiro um destaque maior, já que ela se efetiva de forma menos evidente ( rasurada , como ele diz) e, porque mais oculta, vem revestida de maior significação. No entanto, ape-sar do destaque dado a essa filiação cuidadosamente rasurada , o que sobressai nessa análise são, principalmente, os traços que marcam o distanciamento:

 

Caeiro é um Whitman desencarnado, exangue, um Whitman reduzido à pura função de olhar e ocasionalmente de um outro sentido, mas sem a apropriação imaginal do objeto desse olhar. 7

 

A partir dessa análise, pode-se perceber que os dois filhos de Whitman ou, os seus parentes próximos , transformam o que se cha­mou "influências" em um outro tipo de relação, já que Caeiro e Campos são "outra coisa que Whitman, mas outra coisa que é ininteligível se se perde de vista a inscrição matricial de ambos no magma tumultuoso e extático de Folhas de erva " 8 .

A partir dessa nova formulação, Eduardo Lourenço analisa o impacto que a poesia de Walt Whitman exerceu na produção poéti­ca de Pessoa. A presença de Whitman não pode ser confundida, portanto, com uma "mera influência formal exterior", pois, muito mais intensa, aponta para uma perturbação absoluta de seu meca­nismo criador e de sua visão, dando origem a uma re-criação do Mesmo sem paralelo 9 .

A presença de Walt Whitman em Fernando Pessoa processa­se, assim, na própria estrutura do fazer poético, numa espécie de influência às avessas, cujos traços mais evidentes são mais de nega­ção pela presença do que propriamente de aproximação identifica­dora. Para o ensaísta, a "positividade" flagrante de Whitman deveria causar arrepios à "consciência dilacerada e infeliz" de Pessoa, do mesmo modo que nada se opõe mais à união alegre e conciliadora com o mundo, proposta por Whitman, do que o "ser dividido e sem unificação possível que Pessoa foi..." 10

Na comparação da obra de Fernando Pessoa com a de Whitman, curiosamente destaca-se, na semelhança, o avesso da identidade. Enquanto pessoa se vê desterrado do mundo e, pior do que isso, desterrado de si mesmo, Whitman canta a "exaltação épica do mun­do", numa celebração unificadora de toda diferença. É a diversida­de e o múltiplo a matéria desse canto positivo. As marcas de relevo, como não poderia deixar de ser, são formadas pela: "Presença, Afir­mação e Aceitação". Trata-se do "canto caloroso" de um Eu que goza com os elementos do mundo e com a sua inserção nele. Trata-se ainda da invenção de uma plenitude, resultante da complementaridade de um Todo, onde o Eu é uma de suas partes mais integradas.

O modernismo de Whitman decorre dessa visão-recriação do mundo, mas, principalmente, de sua forma nova , instrumental exi­gido para a tarefa nova que se atribui: a reconstrução da unidade na articulação dos fragmentos; a junção das partes tornadas irreconci­liáveis a partir da fenda que a modernidade cavou com sua negação das "verdades seguramente estabelecidas e secularmente aceitas" 11 .

Whitman ama o mundo moderno. Mas um mundo moder­no criado a partir de sua visão integradora que o protege do inferno da "ruptura, do ser mesmo da modernidade." 12 O seu mundo mo­derno é um mundo diferente daquele sentido e vivido por Pessoa: "Há entre mim e o real um véu / A própria concepção impenetrá­vel". No mundo moderno de Whitman, o seu corpo pode caminhar ao encontro de outros corpos em perfeita integração e satisfação, porque ele rasurou a instabilidade que lhe fora reservada por sua época. Não se trata, no entanto, da inocência alienada e feliz tão desejada por Pessoa, ainda que este na própria enunciação desse desejo já mostre em evidência a sua mesma impossibilidade:

 

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
[...]
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando
[...]
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai! 13

Não se trata tampouco da constatação de que o homem co-mum é feliz em sua leve, "ainda que pesada" simplicidade. Não é desta natureza a felicidade de Whitman. Ele sabe, percebe e conhece o mundo em que vive, mas para viver nesse mundo, luta com ele e o constrói outro, conciliado e unificado.

Entretanto, esse mesmo ato de Whitman para unir-se ao mundo, o separa do real mundo em que vive ou, inversamente, o integra como traço "diferente e isolado" do todo fragmentado e de­sunido da modernidade. É que a negação, característica da lingua-gem unificadora de Whitman, faz do seu canto um similar do sonho ou da idealização que não tem correspondência direta fora dos limi­tes da fantasia. Não se trata aqui de negar a presença do moderno em Whitman - isso seria no mínimo impossível -, mas sim de apontar o desconforto que a ruptura, o vazio, a "ferida secreta" da modernidade causava no poeta e, de assinalar a saída que ele inven­tou para atenuar, ou mesmo rasurar esse desconforto. Saída brilhan­te, sem dúvida uma das mais brilhantes de sua época. Fernando Pessoa percebeu logo o fulgor dos seus versos e deixou-se iluminar por eles. Mas para Pessoa não havia essa saída. Ou havia, mas ele preferiu "Sentir tudo de todas as maneiras", e aceitar também a ausência de comunhão com o mundo que o fado moderno lhe reservara:

 

Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei -
Deserto o achei,
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter.

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresta, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar -
Quando na sombra penetrei,
Só o lugar achei
Da fonte seca, inútil de se ter.

P'ra quê, pois, afeição, 'sperança,
Se perco, logo
Que as uso, a causa p'ra as usar,
Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou amar -
Até à raiz, do peito onde alberguei
Tais sonhos e os gozei,
O vento arranque e leve onde quiser
E eu os não possa achar! 14

Diferentemente de Whitman, Pessoa é o poeta da ausência, da brecha, do eu dividido, do intervalo. Estes traços fazem de Fernando Pessoa um poeta mais próximo do universo da moderni­dade? Talvez. Talvez porque teve de mergulhar até o fundo do abis­mo para trazer de lá não o que queria ser, mas o que verdadeiramente era: tal como o seu tempo, um ser dilacerado, dividido, fragmenta­do e sem a unificação tranqüilizadora do sonho. E quando incorre no pecado de parecer acreditar na ausência de mistérios do mundo, ou na pacificação harmoniosa das suas lembranças de infância, logo o seu fingir-sincero é quebrado por assertivas que cavam mais pro­fundamente a distância que o separa de um tempo-espaço pleno e em harmonia com o mundo:

 

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
Eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora. 15

Este já tão citado "Fui-o outrora agora" inverte qualquer lei-tura de uma infância feliz, essa espécie de oásis a que o poeta regres­saria, vez por outra, em busca de um repouso e de uma tranqüilidade que sabe não serem possíveis. O poeta não encontra o seu oásis na infância, necessária e justa, que poderia amenizar a forma que esco­lheu para viver a modernidade de seu tempo: "Sentir tudo de todas as maneiras".

Fernando Pessoa finge ao colocar-se contíguo a uma infância que não teve, do mesmo modo que parece invejar a inconsciência da ceifeira e do marçano que ele não pode ter. Mas é no exato mo­mento em que veste a máscara desse "estar no mundo feliz" que, no paradoxo, o seu próprio viver é anunciado:

 

Ter a tua alegre inconsciência ,
E a consciência disso! Ó céu! 16

Mas voltemos a Álvaro de Campos. Não ao primeiro, mas ao mais moderno, ao mais fragmentado e, por isso também, mais pró­ximo de Fernando Pessoa. Voltemos ao Álvaro de Campos que já viajou para uma segunda fase.

O segundo Álvaro de Campos, ou Álvaro de Campos, ele mesmo , parece ter mudado o lugar do seu "Sentir tudo de todas as maneiras". A intensidade pode ser a mesma, mas o sentir, agora, não é tão externo, ou melhor, não aponta para o desejo de incorporar em si a exterioridade infinita do mundo. Trata-se de um poeta mais afas­tado do canto delirado e explosivo, e infinitamente mais próximo do tédio. O "sentir tudo" agora está dentro, incorporado. É o sentir de dentro e para dentro, num exame moderno do que a realidade, ou a ausência dela, fez desse Eu:

 

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida ... 17

Se estes trechos de " Lisbon revisited ", datado de 1926, exem­plificam a angústia, o tédio - que aqui ainda é um misto de ansie­dade e cansaço - pelo isolamento do Eu em face do mundo, os versos finais do poema acentuam ainda mais esse sentimento de desu­nidade, cavada e irremediavelmente instalada entre o Eu e o Mundo.

 

[...]
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!... 18

A ruptura dos elos que sustentam o Eu dentro do mundo não per­mitem a visão harmoniosa e a comunhão necessárias para viver com e na cidade agora revisitada. A memória sugerida pelo "outra vez te revejo" e por sua reiteração obsessiva ao longo do poema não dá, no entanto, a unidade buscada. O ato de rever e a insistência do "tornei a voltar" se revelam inócuos já que a relação passado/presente não se marca pela continuidade e sim por um ininterrupto caminhar-viver em rupturas :

 

[...]
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? 19

O ato de rever a cidade da "infância pavorosamente perdida..." vai evidenciar, assim, a consciência intensificada de se ser dolorosa­mente fragmentado: Fragmentos divididos , " bocados de mim". Essa quebra ou dispersão do Eu em outros Eus se desdobra na situação também dividida das pessoas verbais: "Ou somos todos os eu que estive aqui ou estiveram,". No entanto, a possibilidade de ver , rever a cidade vai tornar possível a expressão do desejo de uma recupera­ção - ainda que às avessas - da unidade do mundo. Tal desejo evidencia-se na identificação da cidade com o que sobra de si. E então, a cidade também se fragmenta: "Um bocado de ti e de mim!..."

Um bocado. É pouco, mas ainda é uma união. E se não serve para muito, serve pelo menos para atenuar o isolamento em que o Eu se encontra no início do poema: "Nada me prende a nada."

No poema "Realidade" 20 , datado de 1932 - embora num tom evidentemente diferente do poema " Lisbon revisited "-, existe

o mesmo processo de olhar a cidade costumeira pelos olhares díspares dos Eus diversos:

 

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado - ou, pelo menos, não dou por isso -
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro ...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada... 21

Aqui, o poeta parece divertir-se com o fato de ser outro e com as casas não saberem disso . Chega mesmo a colocar frente a frente os dois eus distintos que se cruzam na mesma rua. O mais apropriado seria talvez dizer, os dois eus que se cruzam num tempo "fora do tem­po", só permitido aos que fazem do não limite o seu próprio existir:

 

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no

[futuro,

Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente

[iluminado.

Hoje, descendo esta rua nem no passado penso alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem

[então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.

E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada. 22

 

À parte a blague ou a indiferença, intencionalmente construí­das, à parte todos os aspectos formais notadamente modernos deste poema, chamo a atenção para o insólito com que se constrói a cena do cruzamento: a eliminação das fronteiras do tempo, que pertur­bam o cruzamento, a união entre o "então" e o "agora"; o faz-de-conta verdadeiro com que se junta o separado e o à vontade com que Ál­varo de Campos brinca de rasurar a mudança. O novo aqui não é apenas sentir-se duplo, mas a encenação de um ponto de união para dar continuidade aos diferentes Eus. O ser único (ainda que apenas encenado) se verifica no cruzamento de um eu "antigo"que, no pas­sado, subia a rua sonhando o futuro como um girassol com um eu "moderno" que desce a mesma rua mas que já não consegue ver gi­rassóis, que não consegue imaginar nada por não ter mais ilusões, ainda que o tal cruzamento não pareça ser mais que uma ilusão. Trata­se de um jogo. Jogo prodigioso, onde a própria encenação do cruza­mento do Eu que passa com o Eu que passou coexistindo no mesmo tempo , tem uma carta escondida no bolso do colete, isto é, a presen­ça de um terceiro Eu. Trata-se do Eu que observa, pois existe tam­bém um Eu observador que assiste ao jogo do cruzamento. E existe ainda um outro Eu, o Álvaro de Campos. E, como se sabe, ainda um outro.

Poder-se-ia afirmar que o poeta coloca em cena a sua própria dispersão, a partir de um jogo, uma "brincadeira" de quem se distrai iludindo, ou criando situações de confronto com o diverso e o dis­perso que o compõe. Mas o que é que o compõe? Sem poder res­ponder a essa pergunta, chamo a atenção para o título "Realidade", que funciona como uma marca de peso, uma oposição à blague; e, ainda, para o final do poema que ou clama veladamente para a serie­dade (ou realidade) desta cena em fantasia:

 

Talvez isto realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez.... 23

 

Buscando trabalhar outros traços da modernidade de Álvaro de Campo/Fernando

Pessoa, retomamos o poema "Psiquetipia" (ou Psicotipia), de 1933.

 

Símbolos. Tudo símbolos...
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E por que não há-de ser?
Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando ...
Meu Deus! E não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
" It was very strange, wasn't it? "
" Awfully strange. And how did it end? "
" Well, it didn't end. It never does, you know. "
Sim, you know . Eu sei.
Sim, eu sei...
É o mal dos símbolos, you know .
Yes, I know .
Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos ... Os símbolos... 24

Trata-se de uma conversa. E de uma "Conversa perfeitamen­te natural", segundo o autor. Mas que autor? Esta pergunta intro­duz uma questão inquietante, mas acreditamos que seja a partir dela que o poema se constrói. As primeiras estrofes - ainda sem a pre­sença do diálogo - apresentam uma reflexão onde um tu se destaca em oposição ao tudo que, já de início, aparece reduzido a símbolos. Essa segunda pessoa ( tu ) poderia ser uma pessoa qualquer, com quem

o poeta conversa. Entretanto, a palavra "pessoa" não é aqui uma sim­ples palavra, e se as mãos postas sobre a mesa "com boas maneiras inglesas" parecem confundir-se com pessoas , ou com Pessoa , a am­bigüidade se desfaz na assertiva que se segue à descrição que delas é feita: "Pessoas independentes de ti...". Estaríamos, então, diante de uma conversa perfeitamente natural entre Pessoa e Campos? Apesar do receio, também natural, que tal interpretação acarreta, não resis­timos e respondemos que sim.

Estamos certamente diante de uma reflexão - ainda que ape­nas sugerida - sobre o traço maior da modernidade de Pessoa: a heteronímia.

Além de cantar a época em sua modernidade, este traço a re­cupera e reconstrói, em toda a sua configuração ambígua e dialética, na própria interioridade do poeta.

Não se trata, assim, da recuperação ou representação dos ele­mentos externos, captados pela sensibilidade arguta e acurada de um ser que sabe ler a sua época e, a partir daí, construir-escrever, em versos, o moderno do mundo. Trata-se, principalmente, da assimi­lação e incorporação daquilo que a vida de sua época lhe ofereceu como a sua "fratura secreta".

A ambigüidade do sintagma "desterrado de ti" pode exempli­ficar este comentário. Numa primeira leitura, tudo nos leva a crer que é o próprio Campos que se vê desterrado ou que os heterônimos são as figuras desterradas do poeta. Mas elas também não são ele mesmo ? O diálogo construído em inglês no final do poema reforça ainda mais esta idéia. O jogo de palavras em torno da expressão " you know " parece evidenciar a própria natureza ambígua e simbólica da linguagem: para quem fala, you é igual a outro e corresponde a tu, mas o tu , para quem ouve, é igual a eu .

 

[.] It never does, you know. "
Sim, you know . Eu sei.
Sim, eu sei...
É o mal dos símbolos, you know .
Yes, I know .

Além de revelar a ambigüidade dos símbolos lingüísticos (pen-so que aqui símbolos correspondem perfeitamente a signos), esse jogo insiste na ambigüidade da heteronímia. O tu é também o eu , ou melhor, é o tu desterrado pelo estilhaçar do eu , pela fratura que, ao instalar-se, produz outros eus , e, neste caso, um tu/eu muito especial chamado Álvaro de Campos. E a conversa fica assim, "perfeitamen­te natural", apesar do título do poema.

Exacerbando esta leitura, as mãos do poeta - instrumento de sua criação - são vistas, pelo que dele existe em Álvaro de Campos, como "Pessoas independentes de ti ...". E neste caso também o cor-po se fragmenta. Mas como o poema insistentemente afirma pela interrogação, elas (as mãos) também são símbolos. E aqui, sem dú­vida, são símbolos do fazer poético, da poesia de Pessoa: espaço mudo onde o turbilhão fragmentado da modernidade interiorizada se tor-na presente através dos símbolos que, em última instância, são as palavras.

Para concluir, recuperamos a questão apresentada no início deste texto: Fernando Pessoa, poeta moderno? Se em algum momen­to sentimos alguma inquietação em responder a tal questionamen­to, agora é tranqüilidade o que sentimos. Podemos afirmar que Fernando Pessoa é um dos maiores poetas modernos de sua época. Sua modernidade - como insistentemente salientamos - vai além da menção ou apologia do moderno, embora esse traço também esteja presente em seus versos. Entretanto, sua modernidade é maior do que o canto ao turbilhão com que a revolução industrial burguesa envolveu o homem moderno, atirando-o no espaço estilhaçado da nova era, na medida em que Fernando Pessoa incorpora a moderni­dade no próprio ato de significar/viver unidamente, nele mesmo, a fratura , a não unidade , a fragmentação . E é isto que, insolitamente, o faz inteiro, unido, único.

A multiplicidade do "Sentir tudo de todas as maneiras" é a carapuça que ele atira à própria cabeça - não apenas aceitando o que ela oferece, mas sendo-o. É o gozo diante das possibilidades in­finitas do poder ser diverso e múltiplo, podendo ao mesmo tempo ser um . É o prazer de ser um e único - como o seu tempo - no esgarçamento dos próprios limites, na fratura e estilhaçamento do seu eu em outros eus , para ser todos e, com isso, ter a plenitude de "Sentir tudo de todas as maneiras".

 

Notas de Rodapé

 

* Este texto foi apresentado, em sua primeira forma, na Universidade de Rostock como parte das atividades que desenvolvi como professor visitante, em junho de 2003.

1 Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos, "Passagem das horas". In: Poemas de Álva­ro de Campos , (Fixação de texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 92.

2 Eugénio Lisboa, Poesia portuguesa: do "Orpheu" ao neo-realismo, Lisboa, Bertrand, 1980.

3 Eduardo Lourenço, Poesia e metafísica , Lisboa, Sá da Costa, 1983.

4 Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar , São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

5 Eduardo Lourenço, Poesia e metafísica , Lisboa, Sá da Costa, 1983.

6 Id., ibid.

7 Eduardo Lourenço, "Walt Whitman e Pessoa". In: Poesia e metafísica , Lisboa, op. cit., p. 174 -5.

8 Id., ibid. p. 187.

9 Id., ibid., p. 174.

10 Id., ibid., p. 181.

11 Marshall Berman, op. cit.

12 Id., ibid.

13 Fernando Pessoa, Obra poética , Rio de Janeiro, Aguilar, p. 144. A partir desta indicação, quando se tratar de versos de Fernando Pessoa apenas indicaremos as páginas dos textos retirados da 5 a . edição da Obra poética de Fernando Pessoa, publicada pela Aguilar em 1974.

14 p. 137.

15 p. 140.

16 p. 144.

17 "Lisbon revisited (1926)", Poemas de Álvaro de Campos , op. cit., p. 147.

18 Id., ibid., p. 149.

19 Id., ibid., p. 148.

20 Id., ibid., p. 190-191.

21 Id., ibid., p. 190.

23 Id., ibid., p. 191.

23 Id., ibid., p. 191.

24 Id., ibid., p. 195-196.