Sumário

Lúcia Miguel Pereira e a tradição da biografia no Brasil

Maria Helena Werneck
UNIRIO
Cátedra Padre António Vieira

Lúcia Miguel Pereira foi crítica literária, biógrafa, romancis­ta, tradutora, autora de livros infantis. Filha do dr. Miguel da Silva Pereira, influente professor de clínica médica e combativo partici­pante de campanhas sanitaristas nas duas primeiras décadas do sé­culo XX no Rio de Janeiro, e de Maria Clara Tolentino Pereira, descendente de uma linhagem de cultas mulheres mineiras, concluiu sua formação escolar no Notre Dame de Sion, tradicional colégio católico do Rio de Janeiro. Com companheiras de escola fundou a Revista Elo , apresentada como revista das "antigas" do Sion. Publi­cou na revista, entre 1927 e 1929, seus primeiros escritos, que cons­tituíam, na época, um dos aspectos da militância intelectual católica, coordenada pelo Centro Dom Vital.

Na década de 1930 e início dos anos 1940, inicia-se na crítica literária, observando de forma intensa o fértil panorama cultural bra­sileiro, que teve como núcleo propulsor um movimento editorial sem precedentes na história da inteligência do país. No jornal Gazeta de Notícias e em revistas como Boletim de Ariel , A Ordem , Lanterna Verde e Revista do Brasil não subtrai comentários apaixonados e sagazes sobre as literaturas brasileira e européia, principalmente a francesa, assim como não se exime de refletir sobre a situação do país e do mundo. A formação católica inspira a crítica na defesa da fidelidade aos princípios religiosos como matriz da transformação espiritual, perspectiva sob a qual deveriam ser buscadas as soluções para os pro­blemas sociais.

Numa época de forte difusão das idéias marxistas no Brasil, Lúcia critica o sociologismo objetivo na literatura porque vê no ro­mance moderno, cujo modelo identifica em A condição humana , de Malraux, a possibilidade de exprimir uma nova forma de individua­lismo, liberto de qualquer forma de sobredeterminação do humano e, assim, capaz de responder "às inquietações da existência em si, dos modos e motivos de agir". Lê e critica, no calor dos lançamentos, os grandes escritores brasileiros do período, como Jorge Amado (com quem trava elegante polêmica sobre a relação entre literatura e idéias políticas), Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, além dos poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima, buscando em suas obras "a verdade profunda do homem, que o cotidiano dilui de ordinário". Também atravessa os anos 1930 a dedicação à literatura portuguesa. Escreve para a seção "Letras portuguesas", da Revista do Brasil , quarenta artigos em que analisa a produção de escritores e poetas portugueses desse tempo, resenha obras críticas e títulos comemorativas do centenário de Antero de Quental 1 .

Ao longo dos anos 1940, principalmente após a guerra, até 1959, quando falece junto com o marido, Octávio Tarquínio de Souza, em desastre de avião na cidade do Rio de Janeiro, a partici­pação de Lúcia Miguel Pereira na imprensa literária especializada decresce, tornando-se esporádica. São jornais de grande circulação

- Correio da Manhã e o "Suplemento Literário" de O Estado de S. Paulo e não mais revistas especializadas que imprimem seus artigos. Expandem-se os objetos de seu interesse, que passa a recair majori­tariamente sobre a literatura de língua inglesa. Virginia Woolf, a romancista e a ensaísta, numerosos autores americanos merecem registro e análise, incluindo-se neste campo o Ensaio de interpreta­ção da literatura norte-americana , de 1943.

Atravessando as três décadas deve-se ressaltar a fidelidade de Lúcia Miguel Pereira à obra de Machado de Assis, "esse labirinto onde dá tanto prazer perder-se" e à fugidia figura humana do escritor. De 1934 a 1959, por meio de 13 artigos publicados em períodicos, esteve sempre atenta aos estudos sobre o escritor e à possibilidade inesgo­tável de "destrinchar, investigar, interpretar" que o universo macha­diano proporciona. Sua obra ensaística sobre Machado de Assis é referência fundamental na fortuna crítica do autor, tendo sido revalorizada por críticos como Antonio Candido e Roberto Schwarz. Em 1936, três anos antes do centenário de nascimento do escritor, publica Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, um dos textos decisivos para a guinada interpretativa de base psicológica, que re­novou a recepção da obra de Machado de Assis, e até hoje é conside­rado um dos clássicos da fortuna crítica do romancista.

Para a biografia, paralelamente à atuação militante de Lúcia na imprensa, confluem o gosto pela pesquisa histórica e a capacida­de de fabulação da romancista. Lúcia Miguel Pereira, que em 1942 amplia sua incursão no gênero com A vida de Gonçalves Dias , elege como a melhor concepção de biografia a desenvolvida por Lytton Strachey, quando o escritor inglês dedica-se à revisão das grandes figu­ras da era vitoriana, introduzindo a concepção do historiador que faz da biografia ao mesmo tempo uma arte e um documento humano.

Além de defender o equilíbrio entre verdade histórica e valor literário como uma prerrogativa do gênero, a ensaísta não deixa de considerar o papel da biografia no contexto brasileiro, pensando-a como uma alternativa para os estudos de história literária e história do Brasil. A biografia teria uma eficácia didática especial, no momen­to em que o imaginário do país necessitava de referências precisas para a construção de uma identidade nacional moderna. Seria esse o único gênero "capaz de fazer com que os brasileiros se interessem pelas figuras de sua terra".

Nas décadas de 1930 e 1940, verifica-se, assim, um consenso entre os críticos e os editores sobre o valor intelectual e mercadoló­gico das biografias. Tanto que não discriminam os títulos do gênero em séries ou coleções à parte em seus catálogos. Biografias como as escritas por de Lúcia Miguel Pereira sobre o escritor Machado de Assis e o poeta e dramaturgo Gonçalves Dias, e as elaboradas pelo histo­riador Octávio Tarquínio de Souza, que reconstituem vidas de polí­ticos dos nossos primeiros anos de nação independente, estão lado a lado com estudos históricos, sociológicos e etnográficos publicados pelas coleções de obras de pesquisa sobre o Brasil, como a Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, a Documentos Brasileiros, da José Olympio e a Biblioteca Histórica, lançada pela Livraria Martins.

Lúcia Miguel Pereira publica a primeira, a segunda e a tercei­ra edições de Machado de Assis : estudo crítico e biográfico, em 1936, 1939 e 1946, ao abrigo da Coleção Brasiliana, da Companhia Edi­tora Nacional. A quarta edição, de 1948, foi publicada pela Casa Jackson. Mas, em 1953, o livro volta a integrar outra prestigiosa série de estudos sobre o Brasil - a Coleção Documentos Brasileiros, da José Olympio, que o reproduz até a sétima edição. A oitava edição sai em 1988, na segunda fase da Coleção Retratos do Brasil, da Edi­tora Itatiaia. Esta é a edição disponível ainda hoje nas livrarias.

Interessa-nos focalizar a edição revista de 1939, porque o tex-to ganha praticamente a sua forma definitiva, depois de incorporar a leitura de documentos que fizeram parte da Exposição do Cente­nário de Machado de Assis. Nessa exposição, entre manuscritos (al­guns deles impressionantes, como as breves "Notas sobre as crises da moléstia", escritas por Machado de Assis, entre 1906 e 1907, a pe­dido do médico do escritor, Miguel Couto), inúmeras fotos, obje­tos pessoais, mobília, aparece um documento-chave - a certidão de batismo onde se comprova a nacionalidade portuguesa, açoreana, da mãe do escritor.

Ao se deter nesse documento, a biógrafa escolhe, no entanto, uma outra informação - a situação de afilhado de uma família abastada do menino recém-nascido, porque segundo ela, na biogra­fia, os fatos realmente significativos são aqueles que vão de algum modo repercutir na existência futura, sobretudo no modo de ser, no temperamento do biografado. ( MAECB , p. 12) 2 :

 

[...] Ter vivido alguns anos no aconchego desse ambiente opu­lento deve ter contribuído mais para a psicologia de Machado de Assis do que ser filho de uma mulher branca, que apenas lhe atenuou a mulatice. Isso explicará talvez em parte o seu fraco pelas altas rodas, a sua falta de inquietação social. E em sua obra são inequívocos os sinais deixados pela gente do Livramento . ( MAECB , p. 13 )

 

A infância do escritor passa a ser um dos biografemas que movem a escrita de Lúcia Miguel Pereira 3 . Retiramos esta categoria do quase diário A câmara clara , em que Roland Barthes descreve e pratica uma nova maneira de ver a fotografia. Ao folhear álbuns fo­tográficos, descobre haver fotos que apenas despertam o interesse sensato de quem as observa, mas há outras fotos em que um deta­lhe, às vezes localizado fora do interesse da foto, atrai e fere:

 

[...] Sinto que basta a sua presença para mudar a minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um novo valor superior. Esse detalhe é o punctum (o que me punge). 4

 

Ao deixar-se guiar pelo punctum , aquele que olha, ou aquele que tem a sua atenção despertada por uma frase, por um som, uma música, está, antes mesmo de qualquer operação cognitiva, pres-tes a entregar-se . O mínimo, o pequeno, a parte desprende-se do todo movida pela subjetividade disponível de quem aceita defron-tar-se com a verdade de um referente para deixar-se encantar. Nesse pacto de emoção e encantamento, o encontro se faria em plenitude.

Se o gosto amoroso do saber que emana do detalhe se sobre­põe ao esforço disciplinado de captar o conjunto da imagem fixada na fotografia, quando se tratasse de escrever a vida de homens ilus­tres há, também, a chance de se deixar comandar pelo punctum :

 

[...] Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas biografias; chamei esses traços de "biografemas"; a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema tem com a biografia. 5

 

Ao relacionar o conceito de punctum ao de biografema , Roland Barthes desloca o foco de investigação teórica das escritas de teor biográfico do processo de representação dos fatos da vida para a re­lação que o leitor desenvolve ao ler, conhecer/escrever a vida. O lei-tor guia-se pela sua individualidade para atravessar a vida do outro, o que passa a exigir o efeito de um corte e de um cruzamento para se produzir significado. Esse novo biografismo barthesiano, que incor­pora a subjetividade e a historicidade de quem admira e escreve, propõe uma rotação no valor da singularidade.

Na perspectiva das escritas biográficas tradicionais, a singula­ridade decorria da capacidade de, em sua trajetória de vida, o bio­grafado ter-se elevado acima dos homens e com isso ter conquistado a garantia de figurar como exemplo. Na visão do novo biografismo, tal como proposto por Barthes em seus últimos escritos, a singulari­dade deriva do "mistério simples da concomitância" (Barthes, 1980, p. 124) entre o biografado e o autobiografado e quem lê, como tam­bém ocorre entre a imagem da fotografia e quem a vê.

Ao selecionar o enigma da infância como biografema que move a sua escrita, Lúcia Miguel Pereira está atenta não só à maneira como se teria formado o sentimento de ambição que ligaria a vivência in­fantil com o trajeto do homem adulto e do escritor consagrado, mas também está atenta à função do sentimento na estrutura estamental da sociedade oitocentista brasileira. Para tratar dessa trajetória de ultrapassamento de contigências sociais, a biografia não deverá per-der de vista o modelo do romance, já que esse gênero literário pode se ater à tragédia da vida privada, quando percebe laços sentimen­tais na evolução dos homens, quando os apanha "em flagrante, em pleno movimento":

 

[...] Afinal, escrever história, e sobretudo escrevê-la em forma de biografia, pondo em primeiro plano um homem, é uma forma de criação. Ou melhor, uma re-criação. Se o biografado não so­frer, no espírito de quem o estuda, essa verdadeira gestação espi­ritual, não viverá no livro. As suas ações serão anotadas, mas ele estará ausente. A biografia, ainda quando não tiver nada de ro­manceada, tem muitos pontos de contato com o romance. 7

 

Se por um lado Lúcia Miguel Pereira está convicta do acerto de aproximar biografia e romance, por outro está atenta à moderni­zação que o discurso da crítica literária sofre nos anos 1930, sob a influência da linguagem das ciências. Nos anos que corriam, eram os rótulos das ciências que exerciam o controle sobre a competência do leitor, ao mesmo tempo em que serviam aos literatos que queriam exibir novos dotes de retórica:

 

[...] pedimos emprestado à mecânica, à física, à geometria, à psicologia ou à psiquiatria os seus termos. Qualquer ensaio que se preze - sobretudo no ensaio é que a moda pegou - precisa ter aquele aspecto rebarbativo outrora reservado aos livros de ciência. Se não falar em ângulo, incidências, entropia, dinamis­mo, reflexão, esquizofrenia e recalques a coisa não fica com apa­rência profunda. 7

Lúcia embarca na retórica moderna do ensaísmo, mas man-tendo a postura da crítica profissional que sabe rir dos exageros e, portanto, sabe como evitá-los. Está em curso na década de 1930 uma modernização da retórica ensaística pelo empréstimo do voca­bulário científico, e a biógrafa lança mão da terminologia científica para desentranhar o homem do "boneco de bronze, rígido e defini­tivo, sem mistérios como sem fraquezas" ( MAECB , p. 20), imagem através da qual o escritor chega à década de 1930. A biógrafa refaz a catalogação a que Machado de Assis fora submetido pelos primeiros tempos de posteridade-"o homem da porta da Garnier"; "o homem da Academia de Letras"; "o humorista sutil"; "o burocrata perfeito"; "o marido ideal"; "o absenteísta" -, porque não se contenta com essa exposição de similitudes perfeitas.

Certa de que a imagem deformada apenas lhe resguarda a in­timidade e a verdadeira fisionomia, despreza os "aspectos oficialmente característicos de Machado de Assis", para buscar a fórmula de uma nova equação, pela qual se pudesse questionar a visão do "escritor inteiramente ausente da obra, escrevendo sem se dar, sem revelar" ( MAECB , p. 20). O projeto da biografia apóia-se, então, na crença da verticalidade da operação interpretativa que, por não se conten­tar com os dados disponíveis pela ordem da visibilidade, quebra uma superfície para ir ao encontro da verdade das profundezas.

Apresentando seu trabalho como uma interpretação - "Inter­pretação de Machado de Assis devia ser o título desse livro" ( MAECB,

p. 24) -, Lúcia Miguel Pereira adota, desde o primeiro capítulo, um modelo mesclado de escrita biográfica, cuja força motriz estará na narrativa ficcional do romance, mas que não repele, ao contrário, atrai, os discursos da psicologia, da psiquiatria, os conceitos da me­dicina eugênica e a visão de historiadora da literatura brasileira. Po­deríamos ir mais longe e afirmar que as designações de caráter, tomadas de empréstimo à psiquiatria, e os atributos raciais descritos são tragados por um modelo de romance que Lúcia Miguel Pereira tenderá a experimentar nas quatro obras que escreve, entre 1939 e 1954 - o romance de formação. Interessa à autora de romance, como interessa à crítica militante, acompanhar o processo de forma­ção e expressão de uma personalidade, seja por meio de uma inter­pretação escrita por ela mesma, seja por meio da interpretação já processada por escritores, cujas obras têm por ofício ler e analisar para as resenhas das revistas e nas quais espera encontrar rotas de desen­volvimento de uma vida, a partir do empenho racional da vontade de um indivíduo.

Porque recusa qualquer forma de sobredeterminação do hu-mano é que a biógrafa se propõe a fazer uma "biografia do espírito", baseada numa relativização das circunstâncias exteriores da vida do biografado, impressas em documentos:

Uma coisa são, porém, os acontecimentos, e outra o homem. Os fatos observáveis, palpáveis, ostensivos, podem ter pequena re­percussão no íntimo, na essência da personalidade; as tendên­cias apenas indicadas, os sonhos desfeitos, os encontros fortuitos são, não raro, mais importantes; e não serão também fertilíssimo material biográfico? ( MAECB , p. 23)

Onde encontrar esse material volátil de que a biografia se nutre, para se aproximar do ideal do romance, senão nos escritos literários do biografado, tomados como "excesso de vida", ou como evasão, "fruto da incapacidade de viver"? Em ambos os casos, os livros, que teriam "muito de autobiográfico[s]", seriam os portadores da essên­cia de uma personalidade:

 

Graças a eles, podemos levantar o véu de banalidade que enco­bre o autor, surpreender no indivíduo Machado de Assis, tão simples aparentemente, a existência de recantos sombrios, de mistérios, de contradições, de fraquezas, de humanidade. ( MAECB , p. 24)

 

As obras de ficção passam a ser lidas como o repositário do Machado escondido pela "lenda deformadora". Então, para recriar o homem a partir desses fragmentos de confissões involuntárias, a mão da biógrafa não pode dispensar a pena da romancista. Assim, logo depois de fazer um pé de página explicando, com a ajuda de citação do Le tempérament nérveux , de Alfred Adler, o tipo de nevro­pata inseguro em que Machado de Assis se encaixa, Lúcia Miguel Pereira sai do registro da ciência e adota o de romancista que come­ça a compor uma personagem cuja timidez sobressai sobre todos os outros traços:

 

Atitude de tímido, afinal, desses tímidos que se tornam afeta­dos para esconderem o embaraço. Certo de ter, ao lado de in­discutíveis superioridades, taras de que se vexava, e quisera esconder, Machado penetrou na celebridade como num salão cheio de gente pronta a criticar-lhe o traje modesto.

Era ali o seu lugar, ali devia ficar - mas convinha não se mexer muito, para não ostentar o terno coçado, os sapatos cambaios

- e para não se mostrar deslumbrado de estar ali. E ficou num canto, teso, arredio, julgando descobrir em cada olhar o brilho tão temido da zombaria. ( MAECB , p. 26)

 

A biógrafa procura manter-se próxima à tarefa de desvendar o que o tímido gostaria de ocultar: "a origem obscura, a mulatice, a feiura, a doença - o seu drama enfim". No entanto, há um certo desconforto em assumir a função de testemunha de acusação, cujo objetivo é preciso esclarecer: "Não há impiedade nessa atitude. Ao contrário. Porque essas misérias, que venceu, que sobrepujou, só podem elevar o homem, torná-lo tão grande quanto o artista." ( MAECB , p. 27)

Esse desconforto desaparece dos capítulos II ("O moleque") e III ("O operário") da biografia, que narram a infância e a juventude de Machado de Assis. A biógrafa está livre do rigor documental que se exigiria de uma biografia histórica, passando a caminhar a partir de pistas colhidas pela leitora apurada da literatura machadiana, mas deixando-se também conduzir pela veia da romancista, disposta a experimentar um gênero de ficção, a do Bildungsroman 8 , cuja narra­tiva contempla os seguintes núcleos temáticos: infância da persona-gem, conflito de gerações, provincianismo ou limitação do meio de origem, o mundo exterior (a sociedade em sentido amplo), auto­educação, alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação e de uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a aban­donar seu ambiente de origem e tentar uma vida independente 9 .

Em relação ao seu Machado de Assis , não há reparos a fazer no modelo, porque não se trata de uma história de final indeterminado, que pode sugerir o fracasso ou uma transformação apenas em estado germinal da personagem. Ao contrário, quase tudo que é caracte­rístico do bildungsroman pode ser remontado pela narrativa da biografia. Trata-se, no entanto, de contrapor a vitória da integração social e da realização pessoal, que o desfecho conhecido de antemão apresenta, à vida ociosa da infância e à luta pela profissionalização no mundo das letras da juventude. Etapas da vida do biografado documentadas de forma tão frágil, na década de 1930, que abrem espaço para a imaginação da romancista atuar com mais desenvoltura.

Assim, aos poucos, no capítulo II, a face do grande romancis­ta se transforma no seu avesso: a do "molequinho tratado com cari­nho, afilhado de viúva rica, seu protegido" e criado na velha quinta do Livramento. O registro de biógrafa compenetrada de suas obri­gações fica assegurado, dessa vez, pelo adoção da hipótese fornecida pela linha dos estudos eugênicos que analisa as decorrências da he­rança genética na doença mental. No entanto, o bom gosto da ro­mancista retira a informação sobre "os antecedentes mórbidos" apresentados pela família de Machado de Assis do corpo do texto, colocando-o num extenso, porém descartável, pé de página. Quan­do se sabe que esses pés de página, nas mãos de médicos como Peregino Jr. e Hermínio de Brito Conde, viraram "romance da me­dicina", avalia-se melhor o procedimento adotado por Lúcia Miguel Pereira em sua biografia. Parece haver a deliberada intenção de tirar proveito romanesco das designações científicas, utilizadas como com­ponente da caracterização de um personagem:

 

Joaquim Maria foi um menino doentio, pois se lembrava de ter tido na infância, umas "coisas esquisitas", certamente os primei­ros sintomas do mal que o atormentou durante toda a vida. Mas a saúde precária não o impediu de gozar a existência solta do bairro humilde, pululante de moleques, em contraste tão chocante com a quinta da madrinha.

Foi um moleque entre muitos outros, um moleque feio, de ca­misa de riscado e pés no chão, espiando, curioso, a gente que se aventurava pela Gamboa e as embarcações que atracavam na praia de São Cristóvão. ( MAECB , p. 34.)

 

Ao abordar a relação entre Machado de Assis adolescente e a madrasta analfabeta Maria Inês, Lúcia Miguel Pereira começa a resolver o enigma do mulatinho transformado em grande escritor. Entre Maria Inês e Joaquim Maria se instala o silêncio, que a biógrafa trata logo de preencher com perguntas, cuja significação estará no afastamento progressivo dos dois pólos dramáticos, separados pela vocação para as letras e por uma distância irremediável, que será toda ocupada pela ambição, sentimento cuja gênese e evolução centrali­zam a trama forte da biografia de Lúcia Miguel Pereira:

 

À noite, pronta a tarefa no Correio Mercantil , depois de um dia de vibração intelectual, para onde se recolheria o moço? Sobre a sua vida íntima, nesse momento, não há nenhuma informação. Moraria ainda com Maria Inês, em São Cristóvão? Que poderia ser a convivência dessas duas criaturas, unidas pelo coração, mas não tendo mais nenhum ponto de contato?

A madrasta, tão boa e tão humilde, era testemunho vivo, inso­fismável do passado a que Joaquim Maria queria fugir. Era a prisão à condição modesta. E na alma do moço escritor um conflito se há de ter travado, um doloroso drama íntimo, entre a gratidão e a ambição. Deixou­se afinal levar pela segunda, mas não sem lutas, lutas que o mar­caram fundamente a ponto de ecoarem ainda nos romances escritos trinta anos depois, e devem ter feito sofrer muito esse introvertido que tudo tentava para sair de si mesmo, para se al­çar acima do seu destino normal, para compensar, pela perso­nalidade construída, as deficiências trazidas do berço. ( MAECB , p. 71)

A fascinação por uma forma de enredo, que acompanha a tra­jetória e o fluido da consciência de quem pretende ir além de um destino traçado por sua raça, por sua classe social, pelos limites de uma saúde precária ou pelos papéis atribuídos ao seu sexo, dá coe­rência à escrita de Lúcia Miguel Pereira tanto no romance quanto na biografia:

 

Desde menino, trabalhara duramente, para subsistir, para subir. E o conseguira. Ainda não tinha completado quarenta anos, e, volvendo os olhos para o passado, via uma longa carreira, quase um quarto de século de vida literária. À custa de muitos esfor­ços, lutando contra o pior dos inimigos - a doença insidiosa e implacável -, contra a pobreza, contra a maldição da cor hu­milhante, ia vencendo. E agora, que aplainara todas as dificuldades, perseguia-o a ameaça do fim, do nada, do grande silêncio. Para que então ter nascido? A que o conduzia a existência? Sofrimentos, ambições, triunfos, que significava isso tudo? E, depois de uma noite mal dormida, ruminando todas essas coisas, via uma aurora como nunca vira na cidade. ( MAECB , p. 171)

 

O que podemos, então, perceber é que a biógrafa-romancista ao acertar as contas do escritor com a sua infância e sua juventude, constrói por meio de uma outra voz ficcional uma resposta para o enigma - o sentimento da ambição. Desse sentimento partilham de diferentes modos o menino Joaquim, o homem Joaquim Maria Machado de Assis, as personagens de Lúcia Miguel Pereira, as per­sonagens dos romances de Machado de Assis.

A partir de um biografema cuidadosamente desenvolvido, a biógrafa supera a exigência retórica modernizadora do uso do jar­gão psiquiátrico na biografia e na crítica e prenuncia um dos moti­vos recorrentes da ficção machadiana, que será objeto da crítica sociológica tal como a praticada por Roberto Schwarz. (Quando o crítico estuda as complexas relações de favor que envolvem os per­sonagens abastados e os agregados nos romances, quando analisa a conformidade ou a audácia de personagens femininas, como Estela em Iaiá Garcia e Capitu em Dom Casmurro , diante das dificuldades em conciliar o amor e a perspectiva de ascensão social, ecoa em suas páginas a leitura sensível e apurada de Lúcia Miguel Pereira.)

No entanto, o enigma da infância e da ambição, que foi des­crito pela biógrafa, torna-se um motivo implacável de disputa entre os intelectuais interessados pela vida de Machado de Assis a partir dos anos 1950. O domínio da admiração pelo escritor deixa de ser exercido por experiências compartilhadas como a de visitar uma exposição, de participar de rituais de celebração, de romarias à casa do artista. Passa, então, a incluir formas de violência, de luta entre os bons e os maus admiradores. Os biógrafos que sucedem Lúcia Miguel Pereira estão dispostos a desfazer a mitologia do molequinho da Gamboa. Vão em busca de novas fontes documentais e instalam um regime de contestação de versões. O sentimento de admiração passa a ser exercido como um campo de luta entre admiradores. O enigma derivado de um detalhe que comove desloca-se para a busca do improvável original esquecido entre as gavetas e pastas de arqui­vos. A infância ou a velhice- tempos em que proliferam sentimentos sutis - deixam de valer a pena para a curiosidade dos novos e im­placáveis biógrafos, muito mais interessados na evolução do talento e na preparação da posteridade do grande escritor brasileiro 10 .

 

Notas de Rodapé

* Este texto constitui versão modificada de capítulo do livro O homem encaderna­do : a escrita das biografias de Machado de Assis, Rio de Janeiro, EdUERJ, 1996, da autora.

1 Bibliografia de Lúcia Miguel Pereira: artigos em periódicos e ensaios: "A leitora e seus personagens", Seleta de textos publicados em periódicos (1931-1946), (Pesquisa, seleção e notas de Luciana Viegas), Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1992; "Escritos da maturidade", seleta de textos publicados em periódicos (1944­1959), (Pesquisa, seleção e notas de Luciana Viegas), Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1994. Biografias e história literária: Machado de Assis : estudo crítico e biográfico, 8. ed., Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988; A vida de Gonçalves Dias , Rio de Janeiro, José Olympio, 1942; História da literatura. Pro-sa de ficção (de 1870 a 1920), 4. ed., Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988; O livro do centenário de Eça de Queiroz (org.), Lisboa, Dois Mundos, 1945; Cinqüenta anos de literatura , Rio de Janeiro, Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Cultura, 1952; Textos escolhidos de Adolfo Caminha (org.), Rio de Janeiro, Agir, 1960. Prefácios, artigos em coletâneas e opúsculo: " Simplicidade", in Homenagem a Manuel Bandeira , Rio de Janeiro, Tip. do Jor­ nal do Comércio , 1936; Ensaio de interpretação da literatura norte-americana , Rio de Janeiro, Sociedade Felipe d'Oliveira, 1943; "Prefácio", in Manoel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço , São Paulo, Saraiva, 1951; "Prefácio" in: Macha­do de Assis, Casa velha , São Paulo, Martins Editora, 1952; "Prefácio", in Lima Barreto, Histórias e sonhos , São Paulo, Brasiliense, 1956; "Prefácio", in Manoel de Oliveira Paiva, A afilhada , São Paulo, Anhembi, 1961; "A valorização da mulher na sociologia histórica de Gilberto Freyre", in Gilberto Freyre, sua ciên­cia, sua filosofia, sua arte , Rio de Janeiro, José Olympio, 1962. Romances: Ma­ria Luíza , Rio de Janeiro, Schimidt, 1933; Em surdina , Rio de Janeiro, José Olympio, 1933; Amanhecer , Rio de Janeiro, José Olympio, 1938; Cabra-cega , Rio de Janeiro, José Olympio, 1954. Livros Infantis: Fada menina , Rio de Janei­ro, José Olympio, 1939; A floresta mágica , Rio de Janeiro, José Olympio, 1943; A filha do rio Verde , Rio de Janeiro, José Olympio, 1943; Maria e seus bonecos , Rio de Janeiro, José Olympio, 1943.

2 Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis : estudo crítico e biográfico, 8. ed., Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1988. A obra será referida por MAECB .

3 Em "Machado de Assis e o espírito de infância", escrito em comemoração do centenário do escritor para a revista A Ordem em junho de 1939, Lúcia Miguel Pereira confessa que a leitura de Machado de Assis lhe proporcionava prazer, admiração e um ligeiro mal-estar, "uma sensação impalpável, porém constante, que por vezes crescia em irritação". Após levantar algumas hipóteses sobre o motivo de seu desagrado: o ceticismo, a agudez da análise, o humorismo, chega finalmente a identificar o que considera a "nota destoante [...] que compromete a sonoridade puríssima da obra": a negação do espírito de infância, ou o recalcamento da infância. Para a crítica, o escritor "viveu do futuro antecipando a velhice, antecipando a velhice. Formulou nitidamente, isso sim, as amargas experiências dos adultos. Desdenhou da fonte cantante, para beber do açude das águas paradas." (In: L. M. Pereira, A leitora e seus personagens , Rio de Janei­ ro, Graphia Editorial, 1992, p. 283-4).

4 Roland Barthes, A câmara clara , trad. de Júlio Castañon Guimarães, 3. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 68.

5 Id., ibid., p. 51.

6 Boletim de Ariel , jul. 1937, p. 297.

7 L. M. Pereira, 1992, op. cit, p. 17.

8 A pesquisa sobre o romance de formação havia sido iniciada por Lúcia Miguel Pereira nas primeiras tentativas ficcionais publicadas por casas editoriais dife­rentes no ano de 1933 - Maria Luiza e Em surdina . A obra Machado de Assis: estudo crítico e biográfico é tributária da pesquisa do gênero romance de forma­ção ou de aprendizagem, que Lúcia Miguel Pereira empreende a partir de 1933, e à qual dará continuidade em 1938, com Amanhecer , e, em 1954, com Cabra­cega .

9 C. F. Pinto, 1990, p. 14.

10 Referimo-nos aqui especialmente aqui a Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971 e a R. Magalhães Júnior, autor de Vida e obra de Machado de Assis , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981, 4 vols.