Sumário

(Re)Inventando Portugal: Eça e os dilemas de uma cartografia afetiva

Maria Aparecida Rezende Mota
UFRJ
Real Gabinete Português de Leitura

Lúcia Miguel Pereira, prefaciando, em junho de 1945, o Li­vro do centenário de Eça de Queirós , afirmava que "os escritores real-mente grandes são aqueles em que cada época pode encontrar aquilo que mais a interessa" e lançava uma questão que tomo como epígrafe para esta comunicação:

 

Hoje vivemos sob o signo da política e dos prementes proble­mas sociais; por isso, buscamos no Eça sobretudo o modo por que encarou a sociedade do seu tempo. Que acharão nele os que lhe celebrarem o centenário de morte? De que será então apre­ciado, e apreciado sob outro ângulo, não resta dúvida. No ano de 2000 ele ainda saberá obrigar a pensar, a rir, e a comover o leitor. 2

 

O que encontramos em Eça, hoje? É certo que nós, brasilei­ros, passadas mais de cinco décadas da indagação de Lúcia, ainda nos ocupamos com a política e com os problemas sociais. Nossas refe­rências, entretanto, mudaram. Tanto a política quanto os problemas sociais, para além do recorte nacional, inscrevem-se, hoje, num qua-dro mais amplo, no qual a própria idéia de nação parece perder con­sistência em confronto com os discursos que constituem um mundo sem fronteiras, sob o signo onipresente do Mercado. Os nacionalis­mos, no entanto, permanecem. Poderíamos interpretá-los como manifestações de resistência a um processo tido como hegemônico e inelutável ou seriam eles um indício da própria fragilidade do pos­tulado que pretende abolidas as construções simbólicas através das quais o indivíduo e o coletivo se reconhecem como o Mesmo e, si­multaneamente, estabelecem o Outro?

No amplo sistema de referências que, ao longo dos tempos, os homens criaram para designarem-se como coletivo e elaborarem sentimentos e objetivos comuns, a nação, configuração moderna desse sistema, tem sido uma das mais complexas e poderosas cons­truções identitárias. E o que Eça de Queirós tem a nos dizer sobre isso tudo? Pensamos que a questão nacional encontra em sua obra um lugar privilegiado. Na verdade, a História e o Romance produ­zidos pela Geração de 1870 assinalam a identidade nacional portu­guesa como um tema e um problema. Examinar essa produção discursiva, hoje, diz um pouco sobre nossas permanentes e sempre atuais indagações, nossa histórica incapacidade de ser coletivamen­te em plenitude, nossas recorrentes crises de brasilidade. Cumpre­se, assim, a pergunta, com ares de profecia, de Lúcia Miguel Pereira.

Entretanto, voltemos ao tempo de Eça, mais exatamente aos anos 1870, quando ele, Antero de Quental, Joaquim Pedro Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis e vários outros jovens, diversos quanto às origens e à formação, ampliaram o alcance das ruidosas tertúlias do Cenáculo, instalando-se, em maio de 1871, no Casino Lisbo­nense, de onde pretendiam abalar a letargia lusitana com suas conferências.

Embora malogradas, as Conferências do Casino assumiram os contornos de uma plataforma político-literária-existencial, referên­cia simbólica tão ou mais legítima que o critério etário para a desig­nação futura dos integrantes daquela que veio a ser chamada de a "Grande Geração". Ocupando a cena cultural ao longo das últimas décadas do século com uma tríplice contestação - ao regime polí­tico, aos esquemas vigentes de pensamento e de ensino e ao modelo literário romântico -, esses intelectuais propunham ao país uma reforma "moral" que o libertasse do atraso e da decadência. Já não chegavam a Portugal, através dos Pireneus, as "imensas criações da alma moderna"? Já não era possível compreender e traduzir o mun­do com "Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet, Proudhon. Littré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner, Quinet..." 3 ?

Todavia, para que a nação se renovasse era preciso, em primeiro lugar, mostrá-la a si mesma, de tal sorte que, reconhecendo-se na verdade nem sempre bela das letras, formasse a consciência de seus erros e desequilíbrios de modo a superar as misérias de seu presente. Desse ponto de vista, observar , descrever e explicar não eram, para essa Geração formada no culto à Ciência e engajada na transformação social, tão-somente operações transplantadas do repertório das ciên­cias da natureza para um novo estilo de narrativa. A escrita subme­tida ao paradigma da objetividade tornava-se o instrumento mais eficaz para que Portugal se conhecesse a si mesmo. O romance rea-lista-naturalista trazia, portanto, no interior de sua trama e na com­posição de seus personagens, um conteúdo pedagógico-político: a autognose social, como precondição para a regeneração nacional. Eça de Queirós o explicita numa carta a José Joaquim Rodrigues de Freitas, datada de março de 1878, a quem agradece a crítica elogiosa a O primo Basílio :

 

Os meus romances importam pouco; está claro que são medío­cres; o que importa é o triunfo do Realismo - que, ainda hoje, méconnu e caluniado, é todavia a grande evolução literária do século, e destinada a ter na sociedade e nos costumes uma influ­ência profunda. O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar "segundo o passado"; queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc.; e apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático - preparar a sua ruína. 4

 

A Arte não seria, entretanto, a única lente através da qual a sociedade poderia examinar de perto esse Portugal "sentimental, devoto, católico, explorador". Era preciso saber quando e por que Portugal se tornara um "país de espectros". Era preciso responder à questão fundadora: Por que não somos mais o que fomos? Era preciso revolver a história, repensar as origens, identificar a essência portu­guesa, perguntar mais uma vez aos mortos se a existência nacional era produto de uma vontade coletiva de ser ou a expressão metafísica de uma raça. Para Oliveira Martins, o Realismo deveria inspirar não só os romances, mas a História, "até agora vista de uma platéia, es­crita para a cena, disposta entre os bastidores e bambolinas da ilusão sentimental" 5 . Eis por que resolveu escrever uma História de Portu­gal que publicou em 1879. Nela, explicou que a nação portuguesa se originara da vontade de sua população e seus príncipes e barões, e não de especificidades geográficas ou raciais. Quando essa vontade se enfraquece, a nação também agoniza. E era isso que se verificava, desde o século XVII: a falência da "energia própria", que resultara nesse país "enfermo", "caduco". Portugal só permanecia independente

- Oliveira Martins constatava-o de maneira brutal - porque era conveniente ao equilíbrio europeu. "Não vivemos desde 1641 sob o protetorado da Inglaterra? Não chegamos a ser positivamente uma feitoria britânica?", indagava 6 .

À nação como vontade política, Teófilo Braga contrapunha a nação natural. Desde seus primeiros trabalhos, o historiador açoria­no adotara o princípio etnográfico como explicação da nacionalida­de, constituindo-se a raça moçárabe, definida por ele como o produto dos extratos celtas, romanos, visigodos e árabes que se haviam mis­turado com os iberos originais, na única e verdadeira origem das nacionalidades peninsulares. Quem desejasse, portanto, estudar e explicar a nação, deveria ocupar-se das tradições populares, em que ainda se encontrava depositada a essência do caráter nacional, o "gê­nio Moçárabe" 7 . Para Teófilo Braga, o resgate do verdadeiro Portu­gal deveria ser realizado por meio da recolha das tradições populares, dever patriótico daqueles que se ocupavam com a História do país.

A regeneração de Portugal passava, portanto, pela crítica do presente e pelo conhecimento do passado. Somente assim as condi­ções político-culturais desfavoráveis seriam superadas e alcançada a renovação da sociedade. Esse é o primeiro significado do movimen­to literário e político da Geração de 70 que começara com as Con­ferências do Casino.

A vasta produção desses escritores favorece, entretanto, uma outra interpretação, para além da exposição de uma necessidade premente de autognose do ser português . Se considerarmos esses tex­tos como estratégias discursivas integradas a um projeto político - (re)construir a nação -, que modelos ou padrões foram tomados para diagnosticar a decadência portuguesa? Que alternativas foram pensadas e apresentadas para que a nação atingisse o objetivo posto no Programa/Manifesto de maio de 1871, "ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada" 8 ? Examinemos as respostas a essas questões por meio daquele que, ainda hoje, nos comove e nos faz pensar: Eça de Queirós. Como ponto de partida, tomemos essas duas noções tão presentes no discurso da Grande Geração: civiliza­ção e decadência.

Pensemos, em primeiro lugar, que o tempo de Eça foi o tem­po do Grande Imperialismo, quando "civilização", mais do que um conceito, era uma imagem, com rosto, nome próprio e residência. As elites letradas e políticas, não só em Portugal, mas em todo o mundo não desenvolvido, percebiam que um processo planetário de dominação e de expansão dos valores civilizacionais da Europa estava, já há algum tempo, em curso e que, no imaginário social, as referên­cias civilizatórias não incluíam a totalidade do continente europeu. "Quem pensa e sabe na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim", bradava o poeta da Questão Coim­brã 9 . Na ponta ocidental da Europa e tão distante dela, Portugal era o porão ou o sótão - o lugar onde se guardam os trastes inúteis - da mansão onde a civilização residia. Sob o título "Fastos da pere­grinação de Sua Majestade o Imperador do Brasil por estes reinos", Eça de Queirós e Ramalho Ortigão apontavam a área social e a de serviço dessa planta imaginária:

 

Vindo a Portugal, depois de ter percorrido a França, a Itália, a Inglaterra e a Alemanha, fez-nos Vossa Majestade o simpático efeito daqueles que, visitando um grande prédio, querem depois de vistas as salas nobres e os espaçosos apartamentos lustrosos e brilhantes, que se lhes mostrem igualmente aqueles quartos es­curos, baixos e esconsos que estão sempre fechados, e onde não vai ninguém. Fez-se a vontade de Vossa Majestade, patenteando-se-lhe no re-mate da sua viagem o interior da água furtada da Europa. 10

 

As analogias são fortes. Com elas se desenhava uma auto-ima-gem nacional desvalorizada - excluída, por próprio demérito, do mundo da cultura européia -, à qual se adicionava a representação da capital do país como síntese desse desvalor. As únicas vantagens de Lisboa deviam-se à natureza e não à ação civilizatória do homem, como se pode observar nesta passagem:

 

Lisboa é a cidade mais suja da Europa... E se não fosse o Tejo, que lhe faz uma certa toilette, se não fosse um sol maravilhoso, que tudo alegra, doura, esbate - Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa. 11

 

Antero de Quental, na famosa conferência pronunciada no Casino Lisbonense, "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos", incluía portugueses e espanhóis no mes­mo "quadro de abatimento e insignificância" e vocalizava o sentimen­to de humilhação e de pequenez das nações ibéricas, perante a Europa imperial 12 . Os autores d' As farpas , entretanto, exagerando a insignifi­cância portuguesa no concerto das nações , expandiam as dificuldades do país para além do marco civilizatório. Para eles inexistiam, não apenas a organização social e o desenvolvimento material, mas, a própria nação:

 

Mas, querido, é justo que pensemos também um pouco na Pá­tria. Porque enfim, temos uma pátria. Temos pelo menos - um sítio. Um sítio verdadeiramente é que temos: isto é - uma lín­gua de terra onde construímos as nossas casas e plantamos os nossos trigos. O nosso sítio é Portugal! Não é uma nação, não é um país, não é uma nacionalidade, não é uma pátria; mas é um sítio. Já não é mau. A Lapônia nem um sítio é: cabanas entorpe­cidas na fria extensão da neve. Podemos pelo menos desdenhar a Lapônia. Ah! ah! miserável Lapônia! Como a nossa organiza­ção é mais rica, a nossa raça mais digna, o nosso cérebro mais vasto! A Lapônia! pouff! __ nós ao menos temos um sítio! 13

 

Uma representação coletiva apresenta um duplo movimento: internamente, ela identifica; externamente, ela distingue. Ou por outra, civilização, como qualquer imagem identitária, simultanea­mente, agrega os "de dentro" e isola os "de fora". Saber-se intelectual numa sociedade predominantemente iletrada teria produzido uma espécie de projeção metonímica, pela qual o isolamento em que se sentiam esses escritores era percepcionado como o da própria nação. Pode-se apontar, como prova disso, um enunciado semi-oculto em seu discurso: tratava-se da idéia de uma cartografia da civilização, cujas coordenadas demarcavam as terras para além dos Pireneus, como locus privilegiado do progresso e do refinamento do espírito humano. Nesse mapa não se encontrava Portugal, com a sua paró­dia de uma civilização de empréstimo, em que se importava tudo:

 

Leis, idéias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, esti­lo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em cai­xotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... 14

 

A denúncia e a crítica às condições portuguesas, presentes nesses textos, expressavam, de maneira oblíqua, a vontade de inte­grar Portugal à aventura triunfante do Ocidente, transfigurada, agora, em padrão de aferição da humanidade. Para Eça, Antero e seus com­panheiros de ofício, pensar Portugal, nos marcos da civilização oci­dental, significava, pois, a possibilidade de projetá-lo nessa trajetória linear e ascendente, para a qual contribuíra, outrora, com a ousadia das navegações e das conquistas.

O processo de identificação relaciona experiências novas e antigas, produz familiaridades e estranhamentos. Ora, uma hipóte­se para a reconstrução nacional, isto é, para a (re)identificação dos portugueses com eles mesmos, poderia ser a retomada do passado como referência identitária. A história, contribuindo para revitalizar a memória coletiva, incorporava-se, assim, ao projeto de recupera­ção da auto-estima nacional. Frédérique Verrier, ao tratar de uma certa tendência italiana ao autodenegrimento, define-a como uma "forma inédita, e até masoquista, em todo caso sofisticada, de nacio-nalismo" 15 . As farpas podem ser interpretadas a partir desse registro, como a expressão de um nacionalismo masoquista que se comprazia em escarnecer dos valores nacionais, até mesmo de seu passado. No número de dezembro de 1871, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós consideravam um insulto à nação, a declaração de alguns diploma­tas estrangeiros que pretendiam divertir-se no país:

 

A diplomacia é bem audaciosa em pretender divertir-se! É que­rer estabelecer uma exceção insultuosa aos costumes nacionais! Aqui ninguém se diverte. Suas ex as . estão extremamente enga­nadas: vieram talvez para Portugal por equívoco! Isto aqui é sé­rio. Não se vem gozar para cá. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Nós somos graves! Havíamos de nos rir, não era mau: e tanta tristeza por essa his­tória atrás, é o pobre D. Sebastião nas areias d'África, coitado! e o infame domínio de Castela que... sim, meus senhores, que!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. Isto aqui não é lugar de troça. 16

 

Para os autores dessa "crônica mensal da política, das letras e dos costumes", o peso do passado, mas também a casticidade da lín­gua portuguesa, adquiriam, pela via transversa da auto-ironia, um valor positivo. Carlos Fradique Mendes, heterônimo da Geração de 70, afirmava que só se devia falar, "com impecável segurança e pure­za", a língua de sua própria terra porque nela é que verdadeiramente residia a nacionalidade. As outras línguas devia-se falar mal, "orgu­lhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo

o estrangeiro". E exortava: "Falemos nobremente mal, patrioticamen­te mal, as línguas dos outros!" 17 .

Como valorizar, contudo, a história e a cultura de Portugal se a certeza do pertencimento à linhagem ocidental encontrava-se aba­lada pela convicção de que o presente desmerecia o passado e que a nação, à beira do século XX, padecia os males de uma velhice senil e indigna? Vejamos o que pensava a esse respeito João da Ega, numa ocasião em que discutia-se o estado da nação - a bancarrota, a ine­ficiência da monarquia, os políticos, essa "coleção grotesca de bes­tas". O país, era evidente, todos concordavam, precisava de reformas. Mas Ega achava pouco. O que o país precisava era de uma invasão espanhola:

 

Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos de fa­zer um esforço desesperado para viver. E em que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos [...], porque tudo desaparecia, estávamos novos em folha, lim­pos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recome-çava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo ci­vilização como outrora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! 18

 

Essa escandalosa hipótese enunciada no famosojantar do Hotel Central, prenúncio dos encontros dos "Vencidos da Vida", era a própria reiteração da fragilidade do ser português , clamando à Provi­dência Divina, por uma catástrofe, por um trauma, como o diz Eduardo Lourenço, que, tornando a História ao marco zero, se fi­zesse ato inaugural de um novo Portugal.

E a catástrofe efetivamente veio, no dia 11 de janeiro de 1890, e tinha um nome: Ultimatum .

A ilustre casa de Ramires , romance excepcional, escrito em dois registros temporais, o presente do Fidalgo da Torre, Gonçalo Men-des Ramires, e o passado, revivido através da novela "A torre de d. Ramires", narrativa de proezas e lendas "só portuguesas, só nossas", que "refizessem à nação abatida uma consciência de sua heroicida-de" 19 , sugere uma espécie de proposta ao país agora humilhado pela Inglaterra. Eça começou a escrevê-lo em 1897, portanto, após o Ultimatum , silenciando, no entanto, sobre os fatos recentes. A Áfri­ca, todavia, é assunto de debates e de comentários dos personagens que valorizam o lado heróico das conquistas ultramarinas, conside­rando um ultraje à pátria delas desfazer-se. É nesse sentido que se pode interpretar a figura antes tímida e mesmo covarde do fidalgo Gonçalo Ramires que nascera com a falha , "essa irremediável fraqueza da carne, que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma amea­ça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir..." 20 , transformada pela dupla ação da recordação e da escrita em um homem em que reviviam "as energias magníficas dos seus fortes avós" 21 , metempsicose do formidável Tructesindo Mendes Ramires. Partiria, então, esse novo português, "silenciosamente, quase misteriosamente", para Moçam­bique, voltando, quatro anos depois, vitorioso e rico. A África, "essa África portentosa, onde cumpria, como glória suprema e suprema riqueza, edificar de costa a costa um Portugal maior" 22 , despertara Gonçalo, como deveria despertar Portugal, de seu sono letárgico.

Ao Gonçalo Ramires, como duplo de Portugal, parece aplicar­se com justeza, a análise elaborada por Eduardo Lourenço acerca das auto-imagens nacionais presentes na literatura portuguesa, nas quais inscreve-se o viver coletivo dupla e antagonicamente orientado pela "consciência de uma congenital fraqueza e a convicção mágica de uma proteção absoluta". A conjunção desse complexo de inferioridade e superioridade, raiz da "relação irrealista que mantemos conosco mesmos", cumpriria, segundo Lourenço, uma única função: "a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade" 23 . Pois que, naquele momento em que a Inglaterra - senhora de vastos territórios e mares, símbo­lo da civilização ocidental, modelo dos sonhos da Geração de 70 e, deles, algoz - expunha brutalmente ao mundo a impotência de Portugal, o mesmo Eça de Queirós, que confessava, alguns meses depois do Ultimatum , sua desilusão ao constatar que não havia no país "uma força latente de onde pudesse vir o movimento de reorga­nização nacional" 24 , oferecia à leitura um Gonçalo/Portugal em pro­gresso, o ser nacional metamorfoseado em imperial, ou melhor, imperialista, aliás, como o era a Inglaterra.

E não estava tão distante o tempo em que a verdade do realis­mo naturalista pretendera desnudar e corrigir os vícios do clero, a futilidade e o tédio das camadas dominantes, a péssima educação sentimental, a sordidez da política de futricas, as disputas estéreis da academia - toda essa "nevrose ibérica" que, em Portugal, "degene­rou em imbecilidade misturada de velhacaria" e que, combinada com "as influências hereditárias da sífilis genérica", explicava muita coisa do país 25 .

A narrativa queirosiana instituía, pois, no simbólico, uma nação superior/inferior, simultaneamente voltada para si mesma e para o passado mítico transfigurado em nova e irrealística aventura conquistadora, ou para além-Pireneus, para o "mundo novo que o Norte nos arremessava aos pacotes" 26 , com o qual, a inferioridade portuguesa se transmutaria em modernização material, estética e moral.

Em A cidade e as serras a operação compensatória faz-se com nitidez. À representação da superioridade da civilização européia -

o palacete em Paris, onde Jacinto de Tormes cercara-se do Conforto e da Ciência proporcionados pelos "aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as forças universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos sécu-los" 27 - é atribuído um valor negativo porque artificializara a vida de Jacinto, afastara-o de seu ser autêntico, esmagando-o sob o peso de uma formidável doença: o tédio. Em que lugar residiria, portan­to, o autêntico Jacinto? Em que lugar estabelecer a autenticidade do ser português? Mas a respostajá estava em Garrett. Uma corrida numa noite quente de verão, escrevera ele, em 1846, entre os coxins de seda de uma elegante caleche, do Bois de Bologne ao Boulevard de Gand, era, seguramente, dos prazeres maiores deste mundo; porém não se comparava ao prazer e à consolação de alma e corpo, quando, de-pois de uma jornada, apeava-se de uma chouteira mula à porta de uma estalagem no Ribatejo 28 . O Baixo Douro, onde se erguia a quinta da família Tormes; o Ribatejo, visitado por Almeida Garrett; o Por­tugal profundo , enfim, definiam as coordenadas dessa cartografia afetiva de um espaço não corrompido, com suas festas rurais, seus usos, seu tempo de espera da terra e das águas, onde, certamente, vivia, ainda, a alma nacional.

Fredric Jameson sugere que "toda literatura tem que ser lida como uma meditação simbólica sobre o destino da comunidade" 29 .

Para além, portanto, da superfície do texto, a obra queirosiana, como, de resto, o Romance e a História escritos pela Geração de 70, guar-dam um comprometimento com a origem e o devir de Portugal. Tentando conciliar a (re)invenção da nacionalidade com a perma­nência de sua essência, Eça de Queirós escreve uma nação dilemática, no entrelugar do passado mítico, das terras rústicas e da latitude Norte. Nação, nome moderno da vida em comunidade, como qual­quer representação totalizante, designa e organiza, circunscreve um território de afetos e confere sentido aos sentimentos e aos pensa­mentos. Se, portanto, de um lado, a narrativa nacional não enfatiza as diferenças internas, nem lida com aquilo que distingue os homens no espaço social, de outro, ela responde, no simbólico, ao desejo e à necessidade dos indivíduos de conferirem um sentido e um signifi­cado à experiência humana. A narrativa queirosiana pode ser inter­pretada, portanto, de um duplo ponto de vista: como uma resposta à necessidade premente de decifração do ser nacional e como a ela­boração discursiva de uma unidade, na medida em que o Romance, assim como a História, atribuindo conseqüência e coerência a acon­tecimentos dispersos e heteróclitos, acabam por construir no imagi­nário social, um sentido unívoco para uma vida coletiva, feita, na verdade, de pluralidades e fragmentações.

A forma através da qual uma nação é imaginada, modelada e transformada, altera-se com as mudanças sociais e mentais. Benedict Anderson assinala, entretanto, que esses processos não conseguem explicar o afeto que as pessoas sentem pelas invenções de sua imagi­nação ou porque as pessoas estão dispostas a morrer por elas. As nações inspiram amor nos indivíduos; "os produtos culturais do nacionalismo - poesia, ficção, música, artes plásticas - apresen­tam esse amor com muita clareza" 30 . É sempre útil lembrar disso, principalmente nos nossos tempos, quando o nacionalismo é trata­do pela razão pragmático-liberal quase como uma patologia. Há, pois, essa dimensão amorosa no texto queirosiano e, para além dela, a dimensão utópica de uma nação a transformar. Eis o que, respon­dendo a Lúcia Miguel Pereira, encontramos nele hoje, nós que cele­bramos o centenário de sua morte.

 

Referências bibliográficas

 

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JAMESON, Fredric. O inconsciente político : A narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade : psicanálise mítica do destino português. 4. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1991.

MARTINS, Joaquim Pedro de Oliveira. História de Portugal . 2. ed. Lisboa: Bertrand, 1880.

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__________. "Novos fatores da política portuguesa". In: Obras . Porto: Lello & Irmão, 1986, vol. IV.

QUENTAL, Antero Tarqüínio de. Prosas sócio-políticas . Publicadas e apresenta­das por Joel Serrão. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982.

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VERRIER, Frédérique. "A Itália sem complexos". In: BOURDIEU, Pierre (org.). Liber 1 , São Paulo: Editora da Universidade de SãoPaulo, 1997.

 

Notas de Rodapé

 

* Comunicação apresentada em 5 de junho de 2000, no Seminário Internacional "Eça entre milênios: pontos de olhar", promovido pelo Instituto Camões e o Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

1 Procult - Programa de Teoria, Historiografia e História da Cultura (UFRJ). Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (Real Gabinete Português de Leitura).

2 Pereira e Reys, p. 20.

3 Quental, 1985, p. 242-3.

4 Queirós, 1986, p. 1.178.

5 Martins, p. 125.

6 Martins, p. 231-2.

7 Braga, p. 52.

8 Quental, 1982, p. 253-4.

9 Quental, 1985, p. 242.

10 Ortigão e Queirós, 1872, p. 9.

11 Ortigão e Queirós, 1871, p. 18.

12 Quental, 1882, p. 263.

13 Ortigão e Queirós, 1872, p. 5.

14 Queirós, 1970, vol. II, p. 83.

15 Verrier, p. 189.

16 Ortigão e Queirós, 1871, p. 71.

17 Queirós, 1970, vol. I, p. 154-5.

18 Queirós, 1970, vol. II, p. 120-1.

19 Queirós, 1970, vol. II, p. 488.

20 Id., ibid., p. 659.

21 Id., ibid., p. 510.

22 Id., ibid., p. 581.

23 Lourenço, p. 19.

24 Queirós, 1986, p. 1.022.

25 Queirós, 1970, p. 893.

26 Queirós, 1896, p. 485.

27 Queirós, p. 767.

28 Garrett, 1966, p. 37.

29 Jameson, 1992, p. 64.

30 Anderson, p. 154.