Sumário

Releituras de Eça de Queirós

Cleonice Berardinelli
PUC-Rio/UFRJ
Cátedra Padre António Vieira

Há cem anos quase exatos, em Neuilly, numa tarde de verão, Eça agoniza. E Viana Moog, ficcionista doublé de biógrafo, recria, com terna emoção, a cena:

 

As janelas foram abertas sobre o jardim, onde floriam as queri­das tílias de agosto do moribundo. Um raio de sol veio nimbar­lhe a fronte. O padre perguntou-lhe se o ouvia. Ele já não pôde responder, mas ainda assim recebeu a extrema-unção.

No orfanato vizinho, onde chegara a notícia de que Eça estava morrendo, as mestras reúnem às pressas as pequenas sem pai que ele tanto amou, para entoarem em coro o Miserere em sua in­tenção.

Eça morria serenamente. Pelas janelas abertas espreitavam as tílias, enquanto as vozes frescas das crianças inundavam os ares, quebrando o silêncio solene dos espaços.

* * *

Um sino ao longe bate quatro pancadas. O calendário marca 16 de agosto de 1900. O século XIX também tinha terminado. (Moog (1943), p. 349)

 

É o centenário dessa morte prematura (Eça morreu aos cin­qüenta e cinco anos) que aqui se comemora, celebrando um dos maiores prosadores da língua portuguesa de todos os tempos, cria­dor de um estilo que o individualiza de maneira inconfundível, de uma obra que, accessível à primeira abordagem, oculta em suas do­bras múltiplos significados, permitindo leituras sucessivas em que há sempre uma nova descoberta.

Ao fascínio de sua pena submeteram-se os que lhe descobri­ram as primeiras produções. Gerações de outros leitores se vêm su­cedendo. Se considerarmos que a primeira é a do próprio autor (c. 1840 - c. 1895), a segunda será a dos que nasceram por volta de 1880 e morreram por volta de 1960, a terceira, a dos que, nascidos neste nosso século XX, a expirar, andam pela casa dos oitenta. De dois leitores especiais - um, da segunda, outro da terceira - ve­nho dar-lhes o testemunho, em ordem inversa. Para tal, permito-me uma pequena digressão.

Em agosto de 1999, a conferência de abertura do 6 o Congres­so da Associação Internacional de Lusitanistas, foi feita pelo profes­sor e ensaísta Antonio Candido de Mello e Souza - ou, mais sim­plesmente Antonio Candido -, um exemplo de verdadeiro cidadão pela sua postura intelectual e política, pelo seu relevante papel de mestre de mestres. Aos nossos ouvidos, e aos da posteridade, soará apenas este seu duplo prenome: Antonio Candido.

Pois é por este eminente colega que inicio a minha fala. E por quê? Porque, há pouco menos de um ano, ao abrir o referido con­gresso, fez questão de dizer que não iria fazer uma conferência, mas dar um depoimento. Foi, na verdade, um depoimento de vida, um retrato da sua experiência de jovem - em casa, na escola e na uni­versidade - como discente e docente, como ensaísta notável, como cidadão exemplar. Falava sobretudo dos outros, mas dos relatos res­saltava o falante, a sua perspicaz leitura dos homens e das obras. Falava mansamente, no tom em que devem falar os bons contadores de estórias ou histórias; o silêncio na sala era absoluto; os presentes ouviam, encantados. Ao fim, o aplauso quente e longo.

Para mim, sua contemporânea e colega na USP, muitas lem­branças eram comuns. Recuperei algumas já perdidas, avivei outras, ainda presentes. De todo o seu relato, porém, um "capítulo" me fi­cou mais vivo que todos: aquele em que o meu amigo falava do cul­to a Eça de Queirós, professado pelos da geração de seu pai e conti­nuado com paixão pela sua.

Lembrou que "desde a segunda metade do século XIX até o tempo da [sua] mocidade" havia "uma presença atuante" da geração de 70, destacando-se "a avassaladora voga de Eça de Queiroz", mais lido pelos jovens brasileiros do que o seu contemporâneo brasileiro Machado de Assis, por ser este "menos conhecido e menos presente, porque menos incorporado aos hábitos mentais, que é o que faz os narradores extravasarem do livro para a experiência de vida." Acen­tuou ainda que "foi uma sorte o fato de serem contemporâneos dois narradores de nossa língua que foram dos maiores da literatura oci­dental". E acrescentou:

 

Eça era objeto de verdadeira mania por parte não apenas de quem tinha certa formação intelectual, mas de leitores mentalmente modestos, nas capitais, nas pequenas cidades, nas fazendas. As pessoas sabiam de cor trechos de seus livros, os seus personagens eram comentados como se fossem gente de carne e osso, os ra­pazes assumiam ou atribuíam os nomes deles: um era João da Ega, outro era Carlos da Maia, um terceiro era Jacinto, não fal­tando quem apelidasse algum vigário de cônego Dias e muito jornalista de Palma Cavalão. (Conferência de abertura do VI Congresso Internacional de Lusitanistas).

 

Testava-se o conhecimento da sua obra, fazendo-se uns aos outros perguntas a que hoje mesmo os seus leitores assíduos teriam dificuldade ou mesmo impossibilidade de responder. Desafiavam­se, disputando-se o título de melhor e maior admirador do grande ficcionista. Havia clubes ecianos que promoviam tertúlias só para comentar e discutir as suas obras. Em expressão posterior àquela época, poderíamos hoje dizer que os seus fãs proliferavam, dando origem a fã-clubes empenhados em divulgar a sua obra e celebrá-lo.

Ressalta Candido o efeito que exerceu sobre a sua geração a geração de 70 que, mais que um impacto literário,

 

atuou como uma espécie de corpus ideológico, afetando a nossa maneira de ver a história e a sociedade, num sentido radical adequado à atmosfera mental do Brasil no decênio de 1930, depois do movimento armado de outubro daquele ano. (Id.)

 

e ainda o número de livros publicados no Brasil sobre sua vida e obra, encabeçando-os com Eça de Queiroz e o século XIX , de Viana Moog, do qual utilizei o fecho para dar início a esta fala.

Além de leitor em extensão e profundidade de Eça, foi Anto­nio Candido, desde cedo, um estudioso atento da sua obra, um seu analista.

Lembro aqui que em 1944, um ano antes do centenário de nascimento do ficcionista, o historiador Jaime Cortesão, diretor in­telectual da Editora Dois Mundos, com sede no Brasil e em Portu­gal, confiou a Lúcia Miguel Pereira a direção de um livro comemo­rativo da data. A escritora aceitou o desafio e produziu o Livro do centenário , que veio à luz em 1945, com um número considerável de colaboradores, na maioria brasileiros e portugueses - em núme­ro quase igual -, que constituem a primeira e terceira partes, e um grupo bem menor constituído por ecianos de outras nacionalidades. Entre os brasileiros está o meu caríssimo colega, citado no prefácio pela diretora do volume como "o mais jovem de todos" e por ela considerado como um dos autores brasileiros em quem "repontam aqui e acolá" "restos da sua [de Eça] herança", parecendo-lhe "dever ao humorista português um pouco da vivacidade da sua escrita." Antonio Candido tinha então menos de trinta anos... ( Livro do cen­tenário, "Prefácio", p. 19)

A geração brasileira de amantes do grande ficcionista portu­guês, à qual pertencia o pai de Candido, era contemporânea da de Fidelino de Figueiredo, meu mestre de Literatura Portuguesa, em quem tem origem a minha devoção a ela e a minha luta de mais de meio século por divulgá-la e fazê-la compreendida e amada. Foi em páginas suas, de um livro intitulado "... um pobre homem da Póvoa de Varzim ", que reencontrei o testemunho da sua admiração pelo autor que ele qualificava como "um dos mestres mais queridos" da sua geração.

A reunião destes ensaios para publicação, tal como a dos tex­tos constitutivos do Livro do centenário, fez parte das comemorações realizadas em 1945. Neste ano de 2000, em que estamos homena­geando o centenário da morte do grande ficcionista da geração de 70, pareceu-me bem incluir o testemunho do meu mestre nas co­memorações do que ele chama "mestre querido", relembrando algo do que escreveu para celebrá-lo, há mais de cinqüenta anos.

Tomei o volume e iniciei a leitura do "Prólogo", em que o mestre fala de momentos muito especiais, de comemoração, aque­les em que um sentimento de solidariedade, um mesmo impulso ideal une as pessoas. São

 

Estes raros momentos de consagração da força eterna do espíri­to [que] equivalem a exames da consciência colectiva, quaresmas purificadoras depois de longos entrudos à solta,jejuns que a todos advertem. São, exemplificando entre nós e confinando a nossa recordação ao campo da literatura: em 1880, o tricentenário da morte de Camões, o poeta vagamundo e pobretão, que nos fi­xou o idioma e celebrou a epopeia dos descobrimentos geográ­ficos da Renascença [...] ("... um pobre homem da Póvoa de Varzim ...", p. 12-3).

 

À rememoração de Camões seguem-se (lembra ele): em 1895, a de João de Deus; em 1899, de Garrett; em 1910, de Herculano; em 1942, de Antero, todos no centenário de seu nascimento; em 1945 será o de Eça de Queirós, "um cônsul distante, sempre em apu­ros de dinheiro, cuja imaginação foi uma força guiadora para gera­ções sucessivas". Nessa comemoração "palpita um nobre sentimen­to de gratidão", porque, "de facto, nós todos somos seus devedores" e acrescenta, numa lúcida sinopse da obra eciana:

 

[...] porque a obra de Eça constitue uma interpretação total da vida, com seus problemas e suas soluções, é um mundo ideal, em que a ironia carrega as cores tristes do que é, para nos fazer anelar o que deveria ser. É uma filosofia em acção, não em ideias, mas em formas e cores. Ele nos deu, a todos, juízos sobre a pá­tria e sobre o seu tempo, caricaturas cruéis e sangüineas leves, impregnadas de indulgência sorridente. E com esse opulento conteúdo de emoções e conceitos de valor, a sua obra conduziu­nos e ensinou-nos receitas inolvidáveis, como as biografias de Plutarco orientaram a gente moça da Renascença [...]

Essa obra foi, primeiro, uma estilização novelada e caricaturesca da retardatária sociedade romântica do reinado de D. Luís I [...] E como ninguém pode viver sem julgar, devemos-lhe gratidão pelas receitas prontas, que nos ministrou para os nossos juízos mais urgentes.

 

Até mesmo os Altos Interesses e as Altas Mentiras lhe devem gratidão, porque há na sua obra muitas advertências que os acon­selharam a moderar um pouco a sua indiferença esfíngica e a sua acção narcótica - ainda que a lição maior do artista se houves­se perdido, por um erro de estratégia, num instante de timidez. Teria sido aquela profética Batalha do Caia, embrionariamente contida na Catástrofe . Palpitava ali a mesma intuição adivinha­dora do ensaio sobre Guilherme II. (Id., p.16-7)

 

A frustração que sente Eça pela não realização da Batalha do Caia , sobre a qual (ou sobre o que ela teria sido, aquilo que adivinha ao ler "A catástrofe") provoca em Fidelino de Figueiredo uma série de considerações do maior interesse, que conhecemos através dos de­poimentos de José Maria d'Eça de Queirós, o filho, feitos a partir dos papéis que encontrou em poder de sua família e da de Ramalho Ortigão, entre os quais "o plano inicial do livro". D'"A catástrofe " , diz este que é "simples folheto escrito a lápis, sem menção de data e mesmo de título."

Fidelino de Figueiredo conhecera pessoalmente o filho de Eça e diz que não seria de duvidar que ele "tivesse uma ou outra vez com­pletado as lacunas e 'adivinhado' os passos ilegíveis do difícil manus­crito a lápis, à luz dos seus modernos sentimentos." (Id., p. 110). Ciente das liberdades que este tomara com o texto de A capital , emite seu parecer:

 

[...] para a história literária teria tido muito maior importância publicar um "fac-simile" do próprio manuscrito de Eça, o tal folheto a lápis ou as tais vinte folhas soltas, do que reproduzir o da carta-proposta ao editor Chardron, que é o que se lê na In­trodução ao Conde de Abranhos. (Id . , p. 111)

 

A gênese d' A Batalha do Caia , explica-a o próprio autor, em carta a Ramalho, datada de Newcastle, 10-11-78:

 

Concebi o livro, uma tarde, em casa de uma senhora, estando só com ela; ela tocava ao piano a gavotte favorita de Marie Antoinette - e eu, ao pé do lume acariciava um cão. De repente, sem motivo, sem provocação - lembrou-me, ou antes flamejou­me, através da ideia todo esse livro tal qual o descrevo: singular, não? Fiquei aterrado: supus ser um bom pressentimento, ou uma visão. Depois a minha segunda exclamação mental foi esta: - Que escândalo no País! Você conhece-me e está daí a ver que me despedi da senhora, e vim para casa lançar o esboço do escândalo para o País . E simplesmente o que eu quero fazer é dar um grande choque eléctrico ao enorme porco adormecido (refiro-me à Pátria). Você dirá: - Qual choque! Oh, ingénuo! O porco dorme: podes-lhe dar quantos choques quiseres, com livros, que o porco há-de dormir. O destino mantém-no na sonolência, e murmura-lhe: Dorme, dorme, meu porco ! Perfeitamente: mas eu estou-lhe a dizer o que pretendo fazer - e não o que o País fará: naturalmente, continuará a dormir: veremos. ( Dicionário de Eça de Queiroz , verbete "A Batalha do Caia")

 

Choca o leitor o modo grosseiro com que o autor se refere à pátria; choca-o mais o tom desfaçado com que diz que, com a ameaça de publicar o livro, feita a Andrade Corvo - ministro dos Estran­geiros, que o nomeara cônsul - em carta que Ramalho fará chegar às mãos deste, o diplomata lhe proíba a publicação, dando-lhe, à guisa de indenização do prejuízo causado, o dinheiro de que necessita para pagar suas contas.

Tem pena de que o livro não apareça. Reconhece que tem um lado positivo - "mostrar ao País as conseqüências de prolongar uma tão horrorosa condição de abaixamento" - e outro negativo - além de importuno, é um ataque à Espanha "e serve portanto apenas para criar irritação." A par dessas razões de ordem política, que seriam contrárias à edição, ele tem outras, de ordem literária. Lamenta que não se imprimam as descrições que fez de Lisboa, da anarquia, das confusões nas ruas, de mil cenas.

Ramalho não se prestará a ser intermediário em tal interme­diação e classifica de chantagem a proposta de Eça: é o que se deduz da carta que este lhe enviou a 28 de novembro. Depois de tecer con­siderações sobre o fato, Fidelino de Figueiredo procura desculpar algum tanto o procedimento do nosso autor:

 

[...] quando nos debruçamos sobre uma grande obra de pensa­mento e sobre uma grande vida, devemo-nos preparar para surpreender alguma contradição, alguma repetição, alguma fra­queza, porque elas são condições da existência. (Id., p. 131)

 

e, dizendo que "não há mais notícia da obra, que ou não foi escrita ou, se o foi, nunca apareceu", conclui que tal se deveu ao fato de não estar ainda, em 1878, o grande escritor

 

[...] maduro para a realização de uma tal obra. A sua sensibilida­de profunda podia adivinhar tudo aquilo, mas a sua arte não o saberia dizer, porque para uma tal obra requeriam-se outros meios de expressão, outro estilo [...] (Id., p. 31-2).

 

De A Batalha do Caia só se têm, pois, referências. "A catástro­fe", que a conterá possivelmente em estado embrionário, apresenta, através de um narrador em primeira pessoa, a situação de Portugal invadido e derrotado, em 1881, pelos espanhóis (não era a invasão espanhola que tão ardentemente desejava o João da Ega ainda em 1888?) em seqüência a um conflito entre as grandes potências, dan-do origem a uma terrível derrota. O conto será publicado em 1925 pelo filho do escritor, juntamente com O conde de Abranhos , que, de certo modo, completa, como diz o editor na introdução ao volume:

 

Os Abranhos tinham preparado aquela atmosfera de inércia colectiva, de incapacidade de esforço espontâneo em que o País, tendo abdicado toda a iniciativa nas mãos dos governantes, [...] estava condenado a aceitar passivamente todas as crises, todas as convulsões, todas as catástrofes. "A catástrofe" apresenta-se-nos como a continuação natural de "O conde de Abranhos", a sua conseqüência lógica, e quase poderíamos supor que é ainda o mesmo Zagalo, aterrado pelo espectáculo das nossas desgraças, quem nos descreve a catástrofe miserável, e, finalmente, nos aponta com dedo profético um futuro melhor, numa pátria len­tamente resgatada pela fé tradicionalista da "geração que se pre-para!" (Eça de Queiroz, Obras de ..., vol. III, p. 299).

 

Não me agrada a hipótese de José Maria, de que o mesmo Zagalo fosse o personagem-narrador do conto. Para sinteticamente caracterizá-lo, basta citar algumas frases da carta que dirige à con­dessa de Abranhos, oferecendo-lhe o livro que escreveu sobre o seu marido, de quem diz que teve, "durante quinze anos, a honra tão invejada de ser o secretário particular", qualificando-o como "varão eminente, orador, publicista, estadista, legislador e filósofo", cujo "ser moral" pretende reconstituir. Dá testemunho de uma indiscutível virtude, a gratidão, reconhecendo que o que tem e o que é, deve-os ao conde, mas revela, no mínimo, uma total falta de espírito crítico no julgamento do falecido patrão. Cita-o, a louvá-lo, em fala na Câmara dos Deputados: "Não podemos dar ao operário o pão na Terra, mas, obrigando-o a cultivar a Fé, prepararmos-lhe no Céu banque­tes de Luz e de Bem-Aventurança!", onde não se sabe o que é pior

- se a solução enganosa dada à miséria, se as metáforas com que a reveste o orador. Ao longo do extenso relato da vida do conde, o tom é de adulação, revelando-se o narrador um acomodado e interessei­ro, louvando sempre o "grande estadista", ou pensando fazê-lo, pois por vezes a sua estultícia deixa filtrar o que realmente este é. O pró­prio Eça, em carta ao editor, escreve: "querendo fazer a apologia do seu amo e protector, o idiota Zagalo apresenta-nos, na sua crua rea­lidade, a nulidade do personagem." Através dele se exerce mais uma vez a sátira do autor contra as nulidades que ocupam altas situações de poder.

Bem diversa é a impressão que nos causa o narrador autodie­gético de "A catástrofe", começando pelo seu modo de narrar, entre­meado de reflexões em que se revela a sua profunda amargura, a sua sensação de que "o ar está carregado de qualquer coisa de subtil e opressivo, como uma atmosfera intolerável", depositando "na alma uma tristeza contínua, obcecante.", a consciência da derrota e "o sonho da desforra [que] faz suportar a realidade da catástrofe..."

Obsessiva é a presença da sentinela estrangeira, à porta do arsenal. É um soldado jovem, forte, bem plantado no chão, bem armado, com "um ar de estabilidade, de perpetuidade que [lhe] faz o coração negro" e lhe tira a idéia de que a ocupação inimiga pode ser transitória. Confronta-o com os soldados portugueses, com o "seu derreado de ombros [...], a moleza lenta do passo, uma expressão contínua e evidente de tédio e de fadiga". E reflete: "Não tínhamos exército, nem esquadra, nem artilharia, nem defesa, nem armas!... Qual! O que não tínhamos era almas..." Volta atrás no tempo e relembra o momento da invasão. A luta desigual sobre a terra enso­pada, sob a chuva impiedosa, o alferes que os comanda ferido, ago­nizando e a gritar : "Acabem-me, rapazes!" E é o pânico, a fuga: "fujo com uma amargura exasperada, gritando sem saber por quê, na ân­sia abjeta de achar um canto, uma casa, um buraco..."

Agora instalou-se na pátria uma paz aparente, de vulcão em repouso:

 

Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração! Já não se vê pela cidade aquela vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir. (Id., p. 417)

 

E o narrador leva os filhos à janela, mostra-lhes a sentinela e "acostum[a]-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora." E lembra o terrível epíteto que o seu criador pusera na boca de outros personagens para qualificar a pátria: "Isto é uma choldra!" e ajunta: "E em lugar de nos esforçarmos por salvar 'isto' - pedíamos conhaque e partíamos para o lupanar." E o con-to, talvez inconcluso, termina:

 

E há uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum modo quase religioso, as antigas festas da Pátria! (Id., p. 418)

 

Feitas estas minhas considerações sobre "A catástrofe" e seu narrador, volto a Fidelino de Figueiredo.

Passada a Primeira Grande Guerra, com os ensinamentos que trouxe, maior lhe parece "a concordância do conto com os sentimen­tos da zona subterrânea da vida portuguesa". "A experiência da Segun­da Grande Guerra", escreverá, "fez nascer esses heróicos movimen­tos interiores de resistência, em que a alma dos povos se purificou sob um torturante fogo lento e oculto." (Figueiredo, p. 111-2). Es­creverá isso em 1944, sob o domínio de Salazar, quando se insta­lara novamente "aquela atmosfera de inércia colectiva, de incapaci­dade de esforço espontâneo em que o País [...] estava condenado a aceitar passivamente todas as crises, todas as convulsões, todas as catástrofes". E acrescenta: "A ideia central da obra está presente no conto e bem explícita: a ressurreição pela dor."(Id., p. 120). É esta a sua esperança de exilado da pátria que, mais uma vez, "está metida / No gosto da cobiça e na rudeza, / De ~ua austera, apagada e vil triste­za." Infelizmente, partiu bem antes da ressurreição da pátria, que só viria sete anos depois.

Buscando conter, no breve tempo de uma comunicação, o testemunho de dois leitores muito especiais da obra de Eça de Quei­rós, captei, através de Antonio Candido, o espaço ocupado no Bra­sil pelo escritor português na primeira metade do século XX, a pai­xão que despertou, a influência que exerceu - ele e a geração de 70

- não só como impacto literário, mas como corpus ideológico ; atra­vés de Fidelino de Figueiredo, a sua consagração como mestre , a rá­pida mas aguda e certeira análise de sua obra, levando-o ao livro nunca lido, A Batalha do Caia . A este duplo testemunho acrescen­tei, de passagem, o meu próprio, centrado no conto "A catástrofe" . Produzi, talvez, um texto compósito, uma espécie de colagem. Pus-me, de certo modo, à sombra do colega e do mestre, irmanados os três no culto do grande autor que hoje começamos a celebrar. Com

o gosto de lhes ter ouvido a voz, e a ela incorporado a minha, calo­me para que se ouça ainda uma vez, e para terminar, a de Fidelino de Figueiredo, a felicitar-se por participar de "mais um desses mo­mentos muito especiais, de comemoração, aqueles em que um sen­timento de solidariedade, um mesmo impulso ideal une as pessoas." O momento que aqui vivemos é um destes. Congratulemo-nos.

Notas de Rodapé

* Conferência apresentada no colóquio Eça entre milênios: pontos de olhar, reali­zado no fórum de ciência e cultura da UFRJ, em 5 de junho de 2000.

Referências bibliográficas

CAMPOS MATOS, A., org. Dicionário de Eça de Queiroz , Lisboa: Caminho, 2. ed. revista e aumentada, 1988. FIGUEIREDO, Fidelino de. "... um pobre homem da Póvoa de Varzim ...". Lis­

boa: Portugália, [1945]. Livro do centenário de Eça de Queiroz . Lisboa-Rio: Edições Dois Mundos, [1945?]. MOOG, Viana. Eça de Queiroz e o século XIX . 3. ed. Porto Alegre; Globo, 1943. QUEIROZ, Eça de. Obras de . 3 vol. Porto: Lello & Irmão, 1958.