Jorge de Souza Araújo
UFBA
A prática da oração sagrada é particularmente extensa e intensiva na tradição ocidental. Por isso mesmo, na literatura portuguesa, a parenética religiosa figura como um dos primeiros na ordem cronológica dos estilos. Em Portugal e por toda a Península Ibérica — berço das reações contra-reformistas — tal tradição encontrou eco em muitos pregadores que, em seu tempo, notabilizaram o púlpito cristão em manifestações da retórica sagrada com fins de catequese, convencimento e doutrina.
No século XIII, destacam-na S. Antonio de Lisboa, S. Gonçalo de Amarante e D. João Afonso de Azambuja. Durante o Renascimento, a oratória é do tipo erudita e delicada, rigorosamente classicista. No século XVI, com o advento do Concílio de Trento, florescem pregadores como Fr. João Soares, Diogo de Paiva de Andrade, Fr. João de Leite, Fr. Filipe de Luz, Fr. Tomás da Veiga, Francisco Fernandes Galvão e Fr. Bartolomeu dos Mártires. Mais o padre Tomás da Costa, pregador de D. João III, Fr. Amador Arrais, pregador de D. Sebastião e o padre José Luiz Álvares, pregador libertário contra a dominação filipina.
Já entre os séculos XVII / XVIII, o padre Manoel Bernardes, na opinião de alguns, ombreia com Vieira e até mesmo o suplanta no castiço da língua e na variedade dos escritos de caráter espiritualizante e místico. São ainda nomes do século XVII os padres Antonio de Sá, Manoel Caetano de Sousa, Bartolomeu de Quental, Francisco de Mendonça e outros.
No século XVIII os nomes que pontificam são os de Rafael Bluteau, Francisco António Rodrigues de Azevedo e os frades Alexandre do Espírito Santo Palhares, Caetano Brandão, Francisco de São Carlos e Joaquim de Santa Clara Brandão.
O século XIX marca a assunção da tribuna política do púlpito, por exigência de uma época sacudida por novos regimes constitucionais e parlamentaristas. Destacam-se como oradores Silveira Malhão, Antonio Cândido, Aires Gouveia, Manuel Eduardo da Mota Veiga, Francisco José Patrício, D. Augusto Eduardo Nunes e Santo Farinha. Na ausência de parlamento e imprensa, o púlpito viu-se transformado no único espaço de ressonância para veicular denúncias e desmascarar injustiças. Os nomes foram se sucedendo nessa fase da vida das nações e o púlpito foi perdendo suas características de lugar exclusivamente para pregações religiosas.
Logo, é rica e ampliada a galeria de oradores sacros na civilização portuguesa e Vieira não é o primeiro nem o único pregador de renome nessa galeria, salientando-se outros também e com larga popularidade na faixa de leitores cujo perfil descrevemos em outro trabalho nosso, resultado de nossa tese de Doutoramento.
Um ponto há, porém, que se reconhecer: o precursor do uso da tribuna católica para imprecações políticas e ideológicas foi, sem dúvida, o padre António Vieira que, com inflamados discursos em feição indireta e sutil, exproba preocupações sociais e defesa da missão apostólica e libertadora do homem. Embora transigindo em alguns aspectos sob a ótica do colonizador, foi Vieira quem primeiro no Brasil se bateu contra a escravidão, sobretudo a escravidão dos índios, através de memoráveis sermões como o da “Santa Dominga”, “da Segunda da Quaresma”, “da Epifania” e “de Santo Antonio — aos peixes”.
Estilo barroco e estilo vieirino
A arte de falar é, por sua própria natureza, um fenômeno contingente. Sofre influências de ordem diversa, em vista de fatores sociais, culturais e políticos próprios das circunstâncias históricas em que o pregador — o orador — vive.
Barroco por identidade e formação, António Vieira soube, como poucos, aproveitar-se muito bem das ambivalências do estilo e de todos os ingredientes da oratória, degraus e recursos do púlpito para fazer-se ouvido e traduzir à gente suas investidas apostólicas. De caráter polêmico, sua vocação tribunícia cedo se manifestaria e, ao longo dos anos, foi se sedimentando, na medida de seu envolvimento nos destinos de Portugal colonizador e nação católica. Em todas as invectivas retóricas, marcadas sempre pelo traço inconfundível da eloqüência barroca, da agressividade e do ataque sistemáticos a tudo o que lembrasse Reforma e Renascença, Vieira pautou uma linguagem erudita, alta, notoriamente persuasiva, como instrumento para “ganhar” o interlocutor, fosse este leitor ou ouvinte. Nos sermões ou nas cartas, essa faceta de polemista em Vieira está manifesta. Em carta dirigida ao rei D. João IV, seu ouvinte dedicado e fiel defensor nas querelas palacianas, Vieira defende os cristãos novos no Brasil, apresentando-os como representantes do poder econômico que poderia auxiliar Portugal em sua empresa colonizadora, assente com as idéias quinto-imperialistas e os ideais obsessivos de restauração do Reino:
Finalmente, libertando-se o comércio andará tudo, ou quase tudo, em naturais do reino, com que ficarão todos os interesses da mercancia nele, e não em mãos de estrangeiros, como está hoje, que, além de serem privilegiados de tributos, contra o estilo de todas as nações, enriquecem as suas com o que tiram das nossas terras, e, não se contentando com serem senhores do comércio de nossas conquistas, o querem ser também de Portugal, como já o são, fazendo-se cá tanto dano a sua indústria como lá a sua violência: inconveniente em que muito se deve reparar, e que pede pronto remédio, que é o que se representa[1].
Repare-se que o arguto epistológrafo prefere as portas travessas, a sinuosidade, para fazer ver ao rei os males provocados pela intolerância e o vácuo do poder, com a necessidade de utilizar-se o dinheiro dos cristãos novos e não matá-los, como pretendia a Inquisição Portuguesa. Mantendo-os vivos e gratos, mais fácil e rápido se poderia reassumir o território brasileiro em poder dos protestantes holandeses, com o que também se alargaria o poder católico dos portugueses no mundo. Conservando vivos os judeus, sob a custódia do reino de Portugal, Vieira preferia tê-los aliados na batalha contra as armas de Holanda e, num futuro próximo, para a vitória consagrada e definitiva de Portugal na formação do Quinto Império. Nisso se afere a profunda vocação polemizadora do jesuíta, mais político e diplomata que os conselheiros da Corte em Lisboa, depois interlocutor privilegiado nos negócios e interesses de Portugal na Europa.
Na opinião de Afrânio Peixoto, “os melhores sermões de Vieira foram os que ele não pôde pregar e deixou escritos” [2]. Mesmo nessa consideração particular o polemista se faz presente, sobretudo pelas características temáticas. Seus escritos revelam um autor ciente de seu ofício, mas igualmente um pregador e um apóstolo atento às regras de sua missão evangelizadora.
Notadamente nas cartas Vieira revela uma profunda vocação social. Nelas, melhor exprime seu pensamento, esboçado apenas (e, às vezes, limitado) nos sermões. Na fase mais aguda de sua defesa do homem contra o homem, a da catequese do Maranhão, ele escreveu dezenas de cartas na tentativa de eliminar oposições ao trabalho dos jesuítas na região e, simultaneamente, combater a matança de índios e o escravagismo criminoso dos colonos portugueses. As cartas, em maior número que os sermões, como que completavam as idéias do pregador, ampliando o raio de sua ação apostólica e o agregando na intervenção estilística.
O poder expressivo do estilo vieirino manifesta-se em metáforas construídas sem pendor cultista, nos apólogos, exemplos e aproximações com situações outras vividas por personagens bíblicas e através de interrogações, invectivas e exclamações conceitistas. O paralelismo de certas cenas em seu texto é sempre feito de forma a impressionar o auditório, levá-lo a repensar sua condição de cristão: “A melhor e a pior coisa que há no mundo é o conselho. Se é bom, é o maior bem; se é mau, é o pior mal” [3]. A par do evidente tom sofístico dessa máxima, observa-se a escora gramatical, feita de antíteses na sintaxe, na fonética e na modulação ortográfica e morfológica. Passa-se do adjetivo “melhor” ao seu oponente “pior”, do adjetivo “bom” ao seu oposto “mau”, dos substantivos (que, em outra situação, poderiam ser advérbios) “bem” a “mal” etc.
A fórmula constante utilizada por Vieira para realçar o estilo de seus sermões e cartas era a glosa de textos bíblicos. Geralmente citava-os em latim, traduzindo-os, ou não, como os trechos de David citados no “Sermão ao bom sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”, em que o pregador recrimina o Deus do Velho Testamento por abandonar o seu povo à sanha dos inimigos, à ameaça de extermínio na guerra contra os protestantes holandeses. Um outro ângulo de paralelismo é o próprio confronto David/Vieira, com as interpolações severas de ambos ante a divindade “indiferente” à salvação do povo eleito. O estilo é arrebatado, passional, ousado, quase profano.
Ao condenar o estilo dominicano de pregar e o próprio barroquismo na exacerbação retórico-metafórica do Cultismo, Vieira aventura-se na crítica literária, opondo um estilo à Sêneca (rítmico, direto, acessível), de preferência ao livresco ou rebuscado, gongórico ou artificioso, interpretados como homenagens barrocas a Cícero. Isso faz a sua diferença de outros pares na parenética religiosa. As armas que Vieira apresenta são do ataque frontal aos reformistas, ao antropocentrismo culto e às vilanias coloniais. Seu poder de fogo é aparente, de par com a eloqüência retumbante e poderosa na ação que dele decorre ou que ele induz. Aliando uma inteligência e memória excepcionais à pessoal integridade, Vieira perora mediante a argumentação e o entusiasmo de suas convicções. Daí a maioria de seus estudiosos considerar melhores aqueles sermões em que ele combate, acusa, investe, denuncia os inimigos da fé católica ou os opressores do homem em seu tempo.
Isso, ao nosso ver, não invalida as incursões vieirinas no âmbito da Filosofia, da Estética e da Ontologia, da Retórica clássica ou da Exegese teológica, sobretudo à luz dos Santos Doutores da Igreja. A técnica de criação em Vieira, como a da pregação, parece-nos dosada em instinto e reflexão, temperada em ritmo simples e recorrente, alternância de frases curtas e longas, paralelismos, sinuosidades, antíteses. Vieira, assim, seria fiel representante da ordem a que servia, pois se municiava continuamente de uma tática peculiar ao jesuitismo. Socorria-se com relevância da memória, da declamação, do paradoxo, emitindo símbolos, analogias, dúvidas e conflitos ao auditório. No entender de Hernani Cidade, não era Vieira um sofista, nem um místico ou um metafísico; era um teólogo, um apóstolo[4].
Vieira não professava a dialética clássica em seu sentido original. A ânsia evangelizadora levava-o a não conferir autenticidade a contestações ou protestos contra sua fala. Encarnava um poder emanado diretamente de Deus, exercido do púlpito e como tal imune a quaisquer signos de crítica ou reparo. Como o estilo de época autoriza a idéia do homem obrigado a enxergar-se como matéria vil e a voltar-se para o Deus do Velho Testamento, a base catequética de Vieira, no imperativo desse estilo, seria a de ameaça do inferno ao cristão, seu ouvinte. Por isso, a série apocalíptica dos sermões do Advento. Em sua parenética, o que objetivava Vieira era confundir o auditório, alinhando, de forma absolutista, razões e exemplos univocamente de seu lado e forçando o ouvinte a refletir e praticar conforme dogmas católicos e jesuíticos. Daí o caminho pela persuasão, mais que pelo simples ensinamento moral (faces, aliás, da didática retórica bebida em Aristóteles).
Costuma-se afirmar que os gramáticos muito teriam a aprender com a prosa de Vieira, espécie de codificador de inúmeros vocábulos e sistematizador de contribuições morfo-sintáticas e estilísticas, a um tempo filho dileto do espírito barroco e atento ao temperamento pessoal criador. A retórica bíblica, inflada do clássico e do barroco, assume impressionante unidade, clareza expositiva e força surpreendente nos sermões e cartas vieirinos. Conquanto não se tenha deixado influir pelo cultismo gongórico (desenvolvido pelos dominicanos), Vieira combina a metáfora assemelhada com a criação original, em maior profundidade, mais afeita ao conteúdo, ao racionalismo dogmático e eclesiástico, ao estado de convencimento das verdades oriundas do púlpito. Vieira seria cultor do idioma, não dos ornatos barroquistas. Por isso sua obra é um repositório de paralelismos, circularidades, repetições recorrentes e exaustivas, justamente para fixar no ouvinte sensações de temor a Deus e obediência aos preceitos da Igreja. Marcada por antíteses, sua obra se apóia na reiteração enfática com vistas a violentar padrões dos ouvintes e no meio destes instilar obediência e modelos de amar o Verbo do Todo-poderoso.
A mecânica dessas antíteses estaria no próprio catolicismo de retorno à Idade Média, fazendo florescer figuras de pensamento no desejo de impor ao ouvinte nova ordem de idéias que permitisse comparar e examinar o volume de erros e vícios humanos. Não se esgota aí a possibilidade, contudo. O Barroco, por suas características, entendido como um estilo de formas redondas, circulares, recorrentes, reiterativas, feito de curvas e relevos, confirma o caráter e natureza do discurso antitético desenvolvido por Vieira.
Essa retórica teria assim seu curso determinado desde a Bíblia. Nas Escrituras Vieira encontra motivos e exemplos numerosos para convencer, orientar e transgredir seu auditório na dimensão evangélica. O jesuíta segue pegadas da Bíblia com uma hermenêutica particular, construindo, entretanto, e por moto proprio, uma parenética de base não necessariamente factualista, mas verossímil, fechada em si mesma e disposta à reflexão unilateral. Para Jamil Almansur Hadad, “a retórica barroca não se faz em torno de motivos, mas sim de pretextos” [5]. Vieira seria, nesse sentido, um exemplar observante da tese, aliando pretextos os mais sagazes para expor seu pensamento ao racionalismo católico contra pecadores de todos os matizes.
No capítulo da circularidade, do reiterativo de seus sermões e cartas, mesmo ante o predomínio do objeto persuasivo, nada nos leva a inferir clareza das verdades do pregador. Vieira, no entanto, é claro na exposição e uno na estruturação de seus textos. As idéias que expõe podem se mostrar claras pois a meta é persuadir pela palavra e exemplo. Suas verdades, porém, não são claras (e nisso, aliás, reside mais um fundamento barroco). O estilo vieirino se orienta pelo gosto do obscuro, do aprofundado, do “difícil”, porque eivado do Mistério, do arrebatamento ascético. A circularidade prende o ouvinte até o final de cada peça oratória e a verdade do discurso só ao final fica relativamente aparente ou, antes, sugerida. A pregação é toda manipulada, via metáfora e mito, o pregador enumerando ações e parábolas, citando de memória passagens da Bíblia, ou da História, ou da Filosofia, para exemplificar, para ilustrar seu raciocínio.
O gosto no tornar óbvio o estranho, em inverter os raciocínios sobre o estupefaciente, em disseminar a dúvida, particularmente a respeito de nossa condição de mortais, de pó (outra característica barroca), funciona como jogos de efeito a fim de intensificar no ouvinte o temor a Deus. O pregador busca suster o auditório e seus sermões, calcados nas atribulações e conflitos humanos, são propositalmente extensos, gestuais, grandiloqüentes. A pregação é desenvolvida num crescendo sucessivo de vibração emocional, traduzindo, em hipérboles místicas, a retórica da autoridade religiosa, reunindo as comoções, doutrinas e prescrições do universo divino, estabelecendo-se o sincretismo do humano com o misterioso e o escatológico.
Mas o mistério reside nas idéias (no conceito) e o cultismo, quando aparece, a elas se agrega, só a elas serve, só a elas favorece. Por isso Vieira, sempre que pode, faz uso da linguagem erudita e letrada, barroquizante, por estilo e gozo estético, e pela prática sinética de conjurar o ouvinte, persuadi-lo ou dissuadi-lo, arrancá-lo do torpor ou da perversão e lançá-lo enfim na direção única do teocentrismo.
Daí discutir-se a intencionalidade literária em Vieira. Que ele não teria deliberado na criação de novos elementos lingüísticos ou literários, a ela chegando por instinto. Como seu intento evidente era convencer, assegurar para as almas o reino dos céus ou melhores virtudes na terra, todo o seu esforço criador naturalmente seria dispendido no sentido do conteúdo, do convencimento teológico. A diferenciação lingüística, o pathos humano assumido, a incorporação conforme o estilo, a imitação gongórica ou quevediana e outros elementos estéticos correriam por conta de Gregório de Matos Guerra, poeta maior do Seiscentismo no Brasil e barroco por excelência.
Ainda que não tenha exprimido a consciência da mentalidade barroca quanto à impressão estética, atendendo muito mais aos efeitos e reflexos convencionais do que enunciava, Vieira desenvolveu o que poderíamos compreender como o estético psicológico, a beleza determinada por um estado de instinto predominantemente criador e original. Daí sua filiação à convenção barroca do conceitismo, o conteúdo primando sobre a forma, especialmente a forma cultista, ornamental, de linguagem artificiosa, abominada pelo pregador.
Como estilo de época que prefigura processos mentais de correspondência alegórica, o Barroco permitia incursões livres pelo sonho e pelo criativo dos retratos. Assim, às vezes, se processava o figurado pela figura, o retratado pelo retrato, o sinalado pelo sinal, o simbolizado pelo símbolo. Donde o raciocínio por imagens.
A imagem em Vieira, aliás, é característica do sincretismo ibérico eclodido pós-Concílio de Trento, profundamente influenciada pela Bíblia e pela exegese dos Doutores, mas avançando depurada e com personalidade individual. O pensamento vieirino é contra-reformista e conceitual pelos automatismos e psicologia barrocos, mas sinuoso o bastante em sustentar o discurso pela transposição alegórica com requintes da contribuição pessoal, única, intransferível. As imagens preponderam, subordinadas ao universo barroco, cuja postura formal não exige coerência, ou unidade, mas não abre mão do imaginário. Praticamente tudo no barroco de Vieira, pode dizer-se, reproduz-se por imagens. O padre, todavia, imanta seus textos de coerência interna, unidade estrutural, clareza de idéias (embora as verdades permaneçam necessariamente obscuras), fazendo uso de imagens vivas, adventícias e vibráteis, como recurso hábil para conquistar seu auditório, ou leitorado.
Em contrapartida, no interior da ideologia barroca, é Vieira um inovador e um fabulista, para tanto concorrendo sua fama de orador sacro, cognominado “O Crisóstomo português”. Ouvi-lo na igreja de São Roque, em Lisboa, foi moda entre os nobres de sua época. Introduziu na oratória sagrada as preocupações políticas e sociais e em conseqüência chamou a si toda a sorte de ouvintes, dos curiosos aos inimigos declarados. Sua prosa, não preconcebidamente intelectualizada, representa articulação dialética e singular, com deduções silogísticas nos moldes do redil teocêntrico: é limpa e ágil, engajada às postulações arbitrárias do jesuitismo e do barroco contra-reformista para figurar no ouvinte o pânico da morte em pecado.
A montagem original da parenética vieirina poderia ser assim compreendida: trechos bíblico-clássico-teológicos, mais alegoria, igual a dogmatismo. As citações das Escrituras são motes ideológicos do discurso persuasivo. A correspondência alegórica, rica e convincente, pontilha o texto com base na constatação psicológica, em fatos da História Social e da História Natural, nos exemplos dos ascetas, no doutrinamento católico, nas revelações e manifestações do amor divino e nas idéias (barrocas, mais uma vez) de que o mundo estará irremediavelmente sucumbido se o homem se afastar da caridade e do amor cristãos.
A tendência profetizante em Vieira é um dado curioso que comporta algumas interpretações. Há quem afirme, por exemplo, que esse veio profético de Vieira correria por conta de um seu distante parentesco judaico. Outros, simplesmente, ridicularizam a veleidade profética do pregador. Comparado aos grandes pregadores franceses (Bossuet, Bourdaloue, Massillon, Fléchier), percebe-se que Vieira antecipa o salto da parenética ortodoxa com a direção apostólica de seus sermões e a intervenção de idéias políticas, de libertação social e de profecia expansionista da fé.
Independente disso, mesmo nos sermões de natureza pronunciadamente política, o que se torna superlativo em Vieira é sempre o pregador religioso, ainda que travestido em tribuno ou agitador social. A principal área de seu interesse é a Restauração Portuguesa e, com ela, a salvação de almas para o reino católico de um Deus eternizado pela Palavra. Defendendo o progresso social com a liberdade dos gentios, a vitória final das forças cristãs católicas (povo eleito por Deus conforme a parcialidade leitora), ainda que fosse necessário conceder, Vieira refletiu o homem em várias posturas e circunstâncias temporais. Por isso atacou maus políticos, maus ministros (da Igreja, inclusive), maus administradores. E ainda quando se defendia, ou quando defendia a fé católica, era pelo ataque que se orientava. Sua intenção final, sua ambição definitiva: a cristandade triunfante, o ideário católico acumulando espaços e gentes no espectro ideológico da Contra-Reforma. Para tanto o inquieto jesuíta utilizar-se-ia de todos os ardis, da linguagem aos jogos retóricos, dos exemplos e ações humanos às ameaças do fogo candente do Inferno. E tudo com um estilo personalíssimo em que pontifica a persuasão, a persuasão como força motriz, como leit-motiv de suas brilhantes peças, libelos, anátemas das novas cruzadas operadas pela Companhia de Jesus.
A persuasão como estratégia de conquista para Deus
Os primeiros estudos sobre a natureza da persuasão como disciplina retórica foram provavelmente os de Aristóteles, filósofo canonizado pela escolástica tomista. Na Arte retórica, o Estagirita impetra o debate sobre o tema, justificando, dentre os princípios da arte da argumentação, e como uma de suas bases constitutivas, a persuasão. A outra grandeza seria o ensinamento moral.
Para Aristóteles, a Retórica tem na eloqüência o condutor das paixões provocadas pelo orador no auditório. Segundo ele, o principal em Retórica será a arte das provas, ou seja, a habilidade em discernir, a cada questão, o que seja apto a persuadir o ouvinte. Essa persuasão, todavia, não se realiza no plano da demonstração da verdade (critério, aliás, da Ciência), mas pela revelação do verossímil, pela força da eloqüência. O processo da transferência dessas provas se articula não pelo analítico, mas pelo dialético.
Aristóteles considera que a finalidade da Retórica não é persuadir, mas ensinar o possível. A Retórica desvela o que é próprio para persuadir (em cada caso o que é, tecnicamente, capaz de persuasão)e, pela descoberta, monta a transformação da opinião pública e da mentalidade do auditório. Ao orador, useiro da disciplina retórica, são indispensáveis qualidades e atributos não apenas de ordem intelectual. É necessário ainda que ele represente virtudes morais para poder influir no ânimo da comunidade que ouve. Assim, o orador deve servir como modelo ético a fim de que, por meio do discurso (demonstração oral de suas convicções e seus valores), possa orientar o ouvinte na reflexão e prática de ações morais e espirituais que resultem em bem comum.
Vieira dispôs sempre do veio persuasivo com a finalidade de manter seu auditório nas fileiras católicas. Munido das três observações aristotélicas quanto à moral do pregador, influindo sobre a disposição do ouvinte por meio da demonstração (discurso), o jesuíta amiúde imprime em seus sermões uma característica retórica predominantemente persuasiva, avançando sempre além do simples ensinamento moral. Aristóteles dizia que “o orador que defende ou acusa não deve apenas demonstrar, mas realçar qualidades ou defeitos que o assunto encerra, seja por análise individual, seja por confronto”[6]. Tais requisitos são intensamente utilizados por Vieira, que aprofunda seus assuntos dando-lhes o máximo de refinamento e percuciência e confrontando modelos e comportamentos no sentido de demonstrar ao ouvinte a verossimilhança de suas afirmativas.
Onde a retórica vieirina destoa e se descaracteriza quanto ao modelo aristotélico é na observação segundo a qual a Retórica é filha da dialética e da política. Na verdade, se há um atributo absolutamente inexistente na obra de Vieira é o pressuposto dialético. Falta a esta obra a disponibilidade de ouvir, de debater, de exercitar-se dialeticamente. Profundamente jesuíta e intrinsecamente disciplinado, Vieira comunga do dogma, resultado de penosos exercícios espirituais, talvez. Seu sermonário é, pois, intimamente vinculado ao apostolado, à iminência da morte, à indução do leitor/ouvinte ao desapego material e cuidados ascéticos em face do Inferno inevitável. O que procura essa obra é a prática de ações, a peroração ilustrada com menções escatológicas, apelando para as repetições, os silogismos, os paralelismos, de sorte a convencer o ouvinte da justeza e prerrogativas do caminho cristão.
Aristóteles observava que a demonstração da verdade retórica (arte das provas) ocorre pelos processos da indução (exemplo), do silogismo e do silogismo aparente. A indução é matéria de extraordinária capacidade persuasiva em função de sua aptidão em tornar clara aos sentidos do ouvinte a trajetória das provas, ainda mais entre pessoas de pouca instrução — caso do auditório barroco. O silogismo, mais intelectualizado, como procede do esforço de verossimilhança e dos sinais propostos tacitamente ao ouvinte, facilita a técnica da explicitação, da demonstração cabal do assunto tratado. Por isso mesmo é mais forte, de maior impacto, sobretudo no confronto dialético, para derrubar os argumentos dos contraditores. Aristóteles defendia também que os discursos com base em exemplos são mais persuasivos que os baseados em entimemas (silogismos oratórios), embora estes últimos impressionem mais o auditório. Já o silogismo aparente, por utilizar-se de proposições verdadeiras aparentemente conformes com a opinião, reforça a idéia mais geral do público, fortalecendo o senso comum e alcançando maior eficácia retórica.
Na medida das conveniências doutrinárias, Vieira usa desses três modelos aristotélicos. Da indução, para demonstrar mais facilmente aos ouvintes a natureza inelutável de seu discurso. Pela ilustração dos exemplos, tornando a demonstração muito mais fácil de penetrar na alma e no raciocínio do ouvinte. Ainda seguindo a cartilha peripatética, o padre Vieira busca as demonstrações mais extravagantes, menos conhecidas e correntes, para transfigurá-las, torná-las factíveis à persuasão, posto que nessas o senso comum ainda não se estabeleceu. Por essa razão, quando toma um assunto, Vieira costuma refletir, ruminar, insistir, reiterar, recorrer, até esgotá-lo, tendo o cuidado constante de fechar todos os círculos e saídas para que seu ouvinte não consiga escapar ao aprofundamento espiritual que o conduza ao temor/amor de Deus, à obediência cega, à salvação do fogo dos infernos pelo alcance dos contrários do pecado. A persuasão assim resgata o ouvinte para os procedimentos de retidão, desprendimento material, caridade e amor.
A persuasão em Vieira alcança o raio da alegoria — de resto, um recurso típico da tradição medieval — como reforço à grandeza dos padrões sociais e éticos. Consubstanciada pelo modelo do pregador, alimenta-se também da ironia, da sátira, do ataque (sutil ou explícito) contra vícios morais e administrativos dos representantes do rei na Colônia do Brasil. Assim é que, no “Sermão do Bom Ladrão”, Vieira fala de políticos e administradores que furtam, roubam e enforcam, escondendo suas próprias falcatruas. O suporte alegórico do bom ladrão é a demonstração pouco corrente, escolhida pelo pregador para testemunhar melhor dos erros de sua época, dos crimes de superiores e nobres e de colonizadores reles, distantes da justiça reinol e divina.
O Deus de Vieira, como vimos, quando quer castigar, é o do Velho Testamento (onisciente, onipresente, todo poderoso e vingativo). Nesse caso, a base catequética do sermonário vieirino assume a persuasão através do medo, da dúvida, dos tons ameaçadores. Mais ameno se torna com o Deus Filho, pela idéia da dívida do cristão para com o Salvador, que deu a vida para remir uma raça de homens maus, ingratos e criminosos. Vieira tudo faz, então, sem articulação dialética ou deduções silogísticas convencionais, mas por postulações arbitrárias, pelo dogma da Revelação e pelo terror psicológico calcado em circunstâncias bíblicas, históricas ou ontológicas. A isso, porém, atém-se o pregador face ao espírito do século XVII e do próprio barroco, a que não deixa faltar uma certa impregnação profetizante, o que lhe valeria, aliás, um tanto de crítica desairosa e os embaraços bandarristas junto ao Santo Ofício.
Não é sem razão que os sermões tidos como os mais felizes de Vieira sejam justamente aqueles em que o diapasão de polemista encontra-se a serviço da natureza persuasiva como instrumento de conquista do rebanho católico. Da relação de Afrânio Peixoto, teríamos: “da Sexagésima”, “pelo bom sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”, “da Primeira Dominga do Advento”, “de Santo Antonio — aos peixes”, “da Delegação de São João Batista”, e “da Epifania”. A esses certamente os estudiosos poderiam relacionar outros tantos, de acordo com as impressões individuais. Em todos, de qualquer modo, salienta-se o contraponto de guerra declarada do pregador contra o amoralismo e os vícios humanos, mediante uma linguagem fervorosamente perfilada no sentido de um estoicismo cristão feito à semelhança do gentio Sêneca — o filósofo mais amado e citado por Vieira.
O próprio pregador observa a persuasão constituindo o melhor de sua obra parenética. Chega mesmo a confessá-lo explicitamente como arma de insinuação e eficácia no “Sermão da Sexagésima”, quando defende “a pregação que frutifica” como sendo aquela “quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme, vai para casa atônito e confuso”[7]. Aí se desdobra tanto a ideologia barroca, quanto a do pregador. Sua intenção será, portanto, além de confundir o auditório, anular qualquer possibilidade de herança renascentista ou antropocêntrica. E qual o recurso então manifesto senão a persuasão pelo medo, pela dúvida? Não persuade pelo esforço dialético, porque o que deseja é fazer o ouvinte tremer, atônito, incerto em sua efemeridade. Nem pela reflexão e análise crítica, contrárias ao dogma. A persuasão vieirina vinga pelo temor e confusão infundidos no ouvinte. E o pregador ajunta ainda uma fieira de sentenças de cunho terrorífico para implantar o regime de caos no espírito do auditório: “Assim que desde o primeiro instante da vida, até o último, nos devemos persuadir a assentar conosco que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos”[8].
Em nosso entender, não é gratuita a ultimação do verbo “persuadir” conforme aparece no trecho acima. Pois persuadir, mais que propriamente ensinar, parece ser a intenção dominante em Vieira. Passa o pregador de docente a vigilante obreiro de Deus, cobrador inflexível dos bons augúrios e ações dos homens:
Dá conta de todos os passos de teus pés, de todas as obras de tuas mãos, de todas as vistas de teus olhos, de todas as atenções de teus ouvidos, de todas as palavras de tua língua, e de tudo o mais que tu sabes, e não cabe em palavras[9].
Assim, que o homem não se pertença por inteiro, pois afinal não passa de pó ungido por Deus na condição de ser vivo e, como tal, a esse mesmo Deus deve dar sempre notícias de seus atos e de seus sentidos. Que nada escape ao conhecimento de Deus, adverte Vieira. O homem, mordomo de seu corpo e de sua alma, deve zelar e cuidar desse mesmo corpo e dessa mesma alma, dando notícia de seus gestos.
Sobre o homem, aliás, para persuadir ainda mais o ouvinte quanto ao egoísmo, a desgraça moral e, enfim, a transitoriedade da condição humana, aproveitando para reafirmar a infinitude e graça superior de Deus, Vieira assevera:
Não é o homem um mundo pequeno, que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno. Basta por prova o coração humano, que sendo uma pequena parte do homem, excede na capacidade e toda a grandeza e redondeza do mundo. Pois se nenhum homem pode ser capaz de governar toda esta máquina do mundo, que dificuldade será haver de governar tantos homens cada um maior que o mesmo mundo, e mais dificultoso de temperar que todo ele? A demonstração é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas têm seu curso ordenado, que não pervertem jamais; o sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa; o mar com ser um monstro indômito, em chegando às areias, pára; as árvores, onde as põem não se mudam, os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário, o homem, monstro, ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição nem apetite o falta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e como é maior que o mundo, não cabe nele[10].
Da condição humana assim refletida, tida em aparência ora com o quimérico, ora com o monstruoso, salta Vieira para a demonstração final de sua máxima parenética, denunciando a brutalidade dos mais fortes contra os mais fracos. A eloqüência do sermonário se prolonga e acentua nas cartas do jesuíta aos grandes de sua época. Escrevendo ao novo rei de Portugal, D. Afonso VI, filho menor de seu amigo e ouvinte D. João IV, já falecido, Vieira se mostra, mais uma vez, remissivo às Escrituras, semelhando o povo índio ao povo hebreu escravo no Egito:
Entre todas as injustiças nenhumas clamam tanto ao céu como as que tiram a liberdade aos que nasceram livres, e as que não pagam o suor aos que trabalham; e estas são e foram sempre os dois pecados deste Estado[11].
Mais adiante, na mesma carta, denuncia, indignado:
Em espaço de quarenta anos se mataram e se destruíram por esta costa e sertões mais de dois milhões de índios, e mais de quinhentas povoações, como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo[12].
E chama a atenção do rei para as atrocidades cometidas contra os gentios indefesos, reclamando providências e buscando comprometer a Corte nas decisões, tudo através do vigor retórico e autoridade jesuítica, uma vez que “sobre os fundamentos da injustiça, nenhuma coisa é segura nem permanente”[13].
Leit-motiv em sua fala, e de forma direta ou indireta, a verdade é que a persuasão está inextricavelmente fixada mesmo nos menores jogos oratórios de Vieira. A fim de radicar os homens, os embrutecidos a purificados, na glória de seu Deus, o jesuíta frui todos os recursos de sua privilegiada parenética. Asim, no “Sermão do Mandato”, aludindo às excelências do amor divino, em confronto ou oposição ao amor humano, defende a superioridade daquele sobre qualquer outro, notoriamente para cobrar o amor humano ao Criador. Rememorando a passagem bíblica e a utopia renascentista do celebrado amor de Jacó por Rachel, filha de Labão, Vieira ressalta o engano do pastor e a sabedoria do pai. Jacó termina por servir mais sete anos a Labão, pois este, ao invés de Rachel, lhe dera Lia. Vieira entende que “se Jacó soubera que servia por Lia, não servira sete anos nem sete dias”[14]. E sentencia não ser assim o amor de Deus, que ama a Lia por ser Lia e a Rachel por ser Rachel. Ou seja: Deus ama a cada um segundo sua própria natureza ou condição. Diferentemente do homem, que gosta de uns e se aborrece com outros.
Notas