Laura Cavalcante Padilha
UFF
Quando se pensa a guerra através da qual os países africanos de língua oficial portuguesa lograram a sua independência, fica clara a questão fundante da duplicidade do olhar pelo qual ela ganha seu nome. Para os portugueses, é uma tentativa, estertorada embora, de preservação dos territórios ultramarinos considerados seus por direito de "achamento", desde os séculos XV e XVI. Daí a nomeação, resultado dessa perspectiva, que torna a guerra colonial . Já para aqueles territórios subjugados, o enfrentamento bélico corresponde à concretização do anseio de libertação, sempre adiado desde que os povos de origem foram submetidos às duras leis da dominação do outro. Advém, em conseqüência, um diferente modo de denominar tal enfrentamento, passando a guerra a chamar-se de libertação nacional .
Em colóquio realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em parceria com o Centro de Documentação 25 de Abril da mesma universidade, e intitulado Mulher e guerra colonial (maio/2003), ficou clara essa duplicidade de base pela qual a história do colonizador e a do colonizado se apartam diametral-mente, muito embora a dor e o trauma da guerra irmanem, hoje, os que se enfrentaram em lados opostos, ontem. Em texto apresentado nesse colóquio, procurei discutir tal dissidência discursiva, trazendo à cena as vozes poéticas da moçambicana Noémia de Sousa (19262002) e da santomense Alda Espírito Santo (1926) para abonarem meu ponto de vista.
O presente artigo deliberadamente quer retomar parte da conferência, ampliando uma visada sobre as obras Sangue negro (2001) da primeira e É nosso o solo sagrado da terra (1978) da segunda. Devo lembrar que, apesar de publicado apenas em 2001, o livro de Noémia foi produzido entre 1948 e 1951, portanto, antes da guerra, mantendo-se em circulação, em forma de reprografias, todos esses cinqüenta anos. Já o de Alda vai da preparação à eclosão do conflito, passando pela vitória e podendo, por fim, cantar a independência. Convém ainda assinalar que Alda e Noémia participaram do movimento metropolitano em que se começa a pensar a libertação - não obstante a existência de uma ação concomitante, com o mesmo objetivo, nas então colônias. Freqüentam, juntas, espaços lisboetas onde tais idéias libertárias se consolidaram, como a Casa dos Estudantes do Império e o Centro de Estudos Africanos, principalmente no decorrer dos anos 1950.
Feita a necessária explicação introdutória, apetece-me retomar as idéias contrapostas da chama e do cristal, tal como as recorta Italo Calvino, a partir da proposta de Massimo Piatelli-Palmarini, desenvolvida no prefácio ao livro de debate entre Chomski e Piaget. Diz Calvino:
Cristal e chama, duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas categorias para classificar fatos, idéias, estilos e sentimentos. (1990, p. 85)
Esses dois símbolos, cristal e chama, assim postos por Calvino, servem para nos ajudar a pensar o conjunto das produções dos chamados anos da guerra e/ou de sua preparação e, dentro dele, os textos de Noémia e Alda, particularmente.
Como se dá com o cristal, há, naquelas produções, um movimento de refração da "luz" da história de um tempo sem luz, na perspectiva dos silenciados; de outra parte, os versos então compostos permanecem ressoando clara e prolongadamente nos ouvidos do leitor até hoje, como fazem os cristais, quando os tocamos. Também os poemas se tornam chama e se agitam sem cessar, trazendo o calor do desejo de subversão da (des)ordem colonial. Transformam-se em pura combustão. São "fogo e ritmo", parodiando Agostinho Neto (1979). Desenham novas parábolas no corpo do livro, ele próprio espécie de projeção luminosa que clareia a estrada da rebeldia e da contestação. Cito alguns versos extraídos das obras das duas poetisas, à guisa de exemplo desse procedimento combustivo:
Nas emboscadas dos muros coloniais
Nossa guerrilha é unidade na luta
Nosso fuzil é palavra de ordem
Pronta a disparar no momento exacto. (Alda, 1978, p. 117)
Condenas-me à escuridão eterna
agora que minha alma de África se iluminou
e descobriu o ludíbrio...
E gritei, mil vezes gritei: "Basta!" (Noémia, 2001, p. 133)
Como se vê, os poemas se fazem instrumentos de "guerra", ou uma forma de prenunciá-la. De qualquer modo, são pura combustão e, para nela pensar, divido estas minhas reflexões em duas partes. Numa primeira, procurarei analisar o estado de exílio dos sujeitos colonizados, estado mais agônico, quando se pensa que ele se dá na própria terra. Numa segunda, quero pensar como os textos redesenham a face dos excluídos, tentando ecoar a força das vozes dos iguais, para com elas projetar um novo mapa ideológico que ilumina questões como as de raça, gênero e classe.
A denúncia do exílio
Em entrevista concedida a Michel Laban, Alda Espírito Santo se refere à força da poesia de seu tempo que, para ela, funcionava como "um canal [...] uma válvula de escape, algo que pudesse ser um alerta e pudesse concorrer para modificar o statu quo ". (2002, p. 100). Uma poesia, enfim, e, ainda segundo ela, "de solidariedade". Assim, pode-se pensar que a busca dessa solidariedade com os iguais faz com que as produções poéticas respondam, com violência, à violência do processo de colonização, aqui recorrendo a Frantz Fanon e à sua denúncia do que se passa com Os condenados da terra (1979).
Ao fogo, portanto, historicamente ateado pelo dominador para calar vozes e corpos insurrectos, como se passou com o Massacre de Fevereiro de 1953 em São Tomé, os produtores de bens simbólicos - e a literatura é um dos mais expressivos - respondem com o fogode sua fala, daí o título mais que sugestivo da obra de Boaventura Cardoso, O fogo da fala (1980). A propósito, aliás, do massacre atrás referido, vale recuperar um trecho de carta enviada por Alda a Lúcio Lara, onde ela denuncia a violência destrutiva do dominador:
uma matança em série, uma loucura coletiva da parte de quase a totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos [...] Onde não encontraram homens queimaram casas. A população foge desatinadamente e eles prosseguem na caça aos macacos. (Lara, 1997, p. 447-8)
A abertura das obras Sangue negro de Noémia e de É nosso o solo sagrado da terra de Alda, para além dos próprios títulos, é bastante sintomática. Há uma clara convocação para que o leitor saia do plano da letra para ouvir a fala que, naquele momento inaugural, se materializa nos poemas "Nossa voz" e "Vozes das ilhas", respectivamente. Escuta-se o grito, mais do que se lê a palavra escrita. Resgato a voz de Noémia:
Ao J. Craveirinha
Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara,
sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos.
[...]
nossa voz, irmão
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade
e revolucionou-a
arrastou-a como um ciclone de conhecimento. (2001, p. 33)
Tal voz se coletiviza ainda mais em Alda, ao se pluralizar, ecoando todas as outras existentes nas "ilhas" e erguendo-se em forma de ameaça e enfrentamento:
Sobre o mar das nossas terras, por sobre a tormenta
Paira o espectro da incerteza
Nas nossas mãos erguendo-se temerosas
À espera dum gesto, duma harmonia
A pautar os nossos longos passos
Através da jornada que se avizinha dura e sangrenta. (1978, p. 33)
Apresentam-se-nos, por essas duas aberturas, vazadas em versos com freqüência longos e sempre desobedientes, as vozes em chama das duas mulheres e o mapa ideológico desse processo de combustão falante. O leitor se vê diante de uma espécie de outra cartografia poética feminina que recusa a imersão na pessoalidade do sujeito lírico e mergulha na coletividade que o possessivo nosso/nossa, reiterado de modo expressivo nos textos, enuncia e anuncia, a par de outros procedimentos estilísticos de que se valem as autoras.
Tais falas poéticas assim elaboradas se fazem metonímias das dos sujeitos duplamente excluídos da história, por serem, no caso, mulheres e africanas. Há uma sublevação de tais sujeitos que saem em busca do "ciclone de conhecimento" e da "harmonia" da ação transformadora. Michelle Perrot adverte para a necessidade de que se mude a direção do olhar, no sentido de que se possa - como se dá aqui -
reencontrar [...] as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história. (1988, p.187)
Tanto "Vozes das ilhas" quanto "Nossa voz" são textos que possibilitam o reencontro apontado por Perrot. Representam uma tentativa de inovação da prática política da maior parte das poetisas africanas que, no mesmo momento histórico, produziam textos nos padrões versificatórios e ideológicos branco-ocidentais. Basta que se cotejem, por exemplo, poesias assinadas por mulheres e que aparecem nas páginas do Jornal de Angola, nos anos 1950 (cf. Padilha, 2002, p. 219-28).
Representando uma espécie de contracorrente, os poemas de abertura das duas obras mostram a desautomatização dos papéis dos sujeitos poéticos e políticos, em clara tentativa de que se mude o "movimento da história". Daí o eu que fala no poema de Noémia insistir em mostrar que a voz coletiva "trespassou a atmosfera conformista da cidade", explicando-se também, no de Alda, o porquê da ênfase nos passos longos (embora as mãos se ergam "temerosas") em direção à "jornada que se avizinha dura e sangrenta". As mulheres, portanto, se põem em ação e movimentam a história, mudando a forma de narrá-la.
Antecedendo os poemas de abertura, o plano epigráfico das obras, por sua vez, já preanuncia o mapa ideológico atrás referido. A epígrafe de Alda é um longo poema de 91 versos, selados em uma única estrofe e por ela intitulado "São Tomé e Príncipe". Inocência Mata, em texto ainda inédito, e que foi apresentado como homenagem à poetisa em evento realizado em abril de 2003, acentua o cariz fortemente ideologizado da longa epígrafe, feita para mostrar as ilhas como, segundo um dos versos, "Terreiro de luta da resistência" (1978,
p. 27).
Por sua parte, Noémia resgata as vozes dissidentes de Miguel Torga e de Carlos de Oliveira, convocando-as para abrir a ciranda de seu livro, em flagrante pacto contra a opressão e a subalternidade. Busca, para tal, ancorar-se em poetas portugueses que se colocam também na contracorrente do estabelecido pelo poder imperial vigente e que, portanto, se fazem seus parceiros poéticos:
"Um escarro no rosto não tem expressão sente-se"
M. Torga
"Para quem espera, como nós,
é sempre a hora de cantar"
Carlos de Oliveira
Nesse sentido, já pelo pórtico das obras, pode-se ler a tentativa de deslocamento de sujeitos inconformados que querem desautomatizar seus papéis históricos, encetando um movimento de ruptura e subversão. Respondem, com um gesto contratextual, à ação da textualidade opressora do sistema colonial. Por tal gesto, inver-tem-se modelos e paradigmas e o agente modelizador dos versos tem como base, pensando com Lucía Guerra (1995), a própria experiência daqueles sujeitos, conforme, por exemplo, "Livro de João", uma parte de Sangue negro pode facilmente atestar. Recupero os versos iniciais de "Carta", um dos textos que compõem tal parte e tem como dedicatória "ao J, M", ou seja, ao João Mendes:
Companheiro branco
[...]
Quero trazer-te com meu poema
um sorriso da nossa terra estranha
mãe negra submissa e doce
embalando às costas seus filhos de todas as raças... (2001, p. 110)
Propõe-se, pela encenação da experiência dos sujeitos, que venho chamando de inconformados, uma nova cartografia que, de um lado, procura reverter a destruição dos valores culturais e, de outro, propõe saídas para o impasse que esse exílio sem sair do próprio lugar lhes impõe. Como na conferência anteriormente apontada afirmei, se o exílio é o máximo do despaisamento, pela ausência do reconhecível e das referências identificatórias, o estar exilado em seu próprio lugar, sofrendo a confrontação simbólico-cultural a cada passo, se faz o exílio dos exílios, já que os modos de viver legítimos são alvos de uma profunda desconfiança histórica do opressor, para quem sempre significaram uma menos valia cultural. A "fratura incurável do exílio", tal como a analisa Edward Said (2003, p. 46 e segs.), torna-se muito mais exposta quando se dá dentro e não fora dos territórios de origem e de experiências. Lembro os versos seguin-tes de Noémia:
Somos os despojados, somos os despojados!
Aqueles a quem tudo foi roubado,
Pátria e dignidade, Mãe e riquezas e crenças e Liberdade (2001, p. 42)
Também Alda mostra a mesma dor frente ao fato de o africa-no ser o "despojado" de tudo e, para romper tal "exílio", conclama suas iguais, enfatizando:
Irmã, a nossa conversa é longa.
É longa a nossa conversa.
Através destes séculos
De servidão e miséria...
É longa a estrada do nosso penar. (1978, p. 82)
Construindo a voz igual
A encenação dos sujeitos em estado de exílio na própria terra não se restringe à projeção da experiência dos que "assinam" os textos e/ou que põem em seus rostos ficcionais a máscara do eu-lírico. Percebe-se que, naquele momento histórico da descolonização, ou de seu desejo, era preciso encenar também o "igual", trazê-lo para o trançado das malhas discursivas, convocando-o para a ação, como se dá no último poema de Alda. O receptor, nesse jogo, transformase em interlocutor, ou seja, em "alguém", que está ali textualizadamente em presença, "ouvindo" a mensagem libertária.
Os textos, como ensina Paul Zumthor, nesse afã apelativo, nos deixam "perceber [...] o rumor, vibrante ou confuso, de um discurso que fala da própria voz que o carrega"(1993, p. 35) e a ânsia dessa voz de querer atingir os que a lêem, fazendo-os ouvir também. Não se trata apenas da rememoração, um traço forte da lírica e igualmente marca ativa nesses textos, mas da presentificação do destinatário, embora toda a sua virtualidade. Isso torna o discurso inclusivo, passando o leitor concreto a habitá-lo, principalmente quando tal lei-tor era, naquela época, um africano letrado, utente da língua portuguesa e vivia a mesma experiência histórica da subalternidade e da subjugação.
Não seria demais pensar que os poemas então produzidos circulassem oralmente nos eventos nos quais os jovens do tempo se reuniam, seja nas então colônias, seja nos espaços metropolitanos. Dizer os poemas, até hoje, representa um gozo estético muito grande, tanto para o intérprete, quanto para os que o ouvem. Cantar, contar, dizer, declamar, eis algumas das fontes de prazer do imaginário local, pois, definitivamente, como reforça Raúl Altuna, o silêncio não é banto (1985).
Volto aos textos de Alda e Noémia nos quais o procedimento artístico de encenação do outro, para a construção d'"A voz igual" (Agostinho Neto), se mostra com força. Ambas parecem, com o mesmo Neto, querer insistir na necessidade de que se apontasse um caminho que viesse a contribuir para a criação de um "povo independente com voz igual", propondo-se, para tanto, uma nova rota que partisse
Do caos para o reinício do mundo
para o começo progressivo da vida
e entrar no concerto harmonioso do universal
digno e livre
povo independente com voz igual
a partir deste amanhecer vital sobre a nossa esperança (1979, p. 138)
Adensa-se, em seus mapas textuais, o desenho desse "amanhecer vital sobre a [...] esperança" e, para intensificá-lo ainda mais, convocam-se os "irmãos" cujas vozes se igualam. Tais significantes - irmão, companheiro e correlatos - ganham uma especial cintilação, fazendo-se uma das principais tatuagens do corpo poético. A leitura das obras mostra essas marcas iniciáticas que se soterram no chamamento, na alusão, na presença, enfim, dos significantes nuclearizadores. Por isso, cito apenas duas ocorrências da palavra irmão , em poemas respectivamente de Alda e Noémia em que fica clara a vocalização do discurso, bem como a força presencial do significante:
É assim que eu te falo,
meu irmão contratado numa roça de café
meu irmão que deixas teu sangue numa ponte
ou navegas no mar, num pedaço de ti mesmo
[em luta com o gandú (1978, p. 77)
Irmão negro de voz quente
o olhar magoado
diz-me:
Que séculos de escravidão
geraram tua voz dolente?
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua? (2001, p. 74)
Recorrendo, mais uma vez, ao texto da conferência de maio de 2003, insisto em lembrar que se cria, pelos textos de Noémia e Alda, assim como pelos de Viriato da Cruz, José Craveirinha, Agostinho Neto, António Jacinto etc., um espaço de fraternidade consentida em que o igual se faz companheiro de luta e irmão, principalmente. Às vezes, no caso das duas, os irmãos são nomeados, como se dá com João Mendes (Noémia) e Deolinda Rodrigues, Cravid, Amílcar Cabral etc. (Alda). O próprio gesto da escrita, bem como sua performance oralizada, serve como reforço desse chamamento para a esperança e para a construção da fraternidade, vias para que o impasse histórico da exclusão pudesse ser resolvido.
A feminilização do significante irmão e correlatos - irmã, companheira, amiga - é de suma importância também nas produções de Noémia e Alda. A presença de faces e corpos femininos serve como movimento de reforço do que em diversos ensaios venho chamando de uma estética da privação (cf. 2002, várias páginas). Não por acaso vários estudiosos das autoras analisaram o fato de que elas se debruçam, com freqüência, sobre os corpos dessas figuras de mulher. Cito apenas um trecho de poema de Alda que resume bem a importância da representação do gênero para ambas:
Irmãs, do meu torrão pequeno
Que passais pela estrada de meu país de África
É para vós, irmãs, a minha alma toda inteira (1978, p. 81)
Evidencia-se, também, no conjunto, a matriz que serve de consolidação para a existência desse espaço de fraternidade. Trata-se da presença do significante mãe, sempre símbolo aglutinador no imaginário africano, no caso, em sua versão banta, como bem enfatiza Raúl Altuna:
A mãe banto supera o pai em profundidade sacral, pois que se enraíza na fecundidade total, cósmica. Revela e patentiza esta fecundidade e a vida participável, visto que esta germina no seu seio, e as forças invisíveis a transformam num laboratório sagrado onde realizam a comunhão vital com seus descendentes. [...] Os antepassados prolongam-se e as linhagens vão rodando pelos séculos através do sangue materno. (1985, p. 256)
Mãe e terra, portanto, se fazem duplos e significam a possibilidade de que os laços de solidariedade não se rompam. Alguns poe-mas das autoras reatualizam essa imagem solidária da mãe e da terra, ambas matrizes e garantia de continuidade.
Alda:
Nós vivemos os mesmos anseios
Olhamos para a nossa Mãe Terra
E na força do seu olhar
volvido para a fome
[...]
Sentimos mais força
para gritar (1979, p. 97)
Noémia:
Ó África mãe-terra, diz-me tu:
Que foi feito de minha irmã do mato,
que nunca mais desceu à cidade com seus filhos eternos
(um nas costas, outro no ventre)
com seu eterno pregão de vendedora de carvão? (2001, p. 96)
Neste último poema fica patente o entrelaçamento simbólico, vazado em feminino: a mãe aglutinada à terra (igualmente mãe) e a "irmã do mato", por sua vez configurada como mãe, "com seus filhos eternos / (um nas costas, outro no ventre)". As mulheres se fazem, portanto, no plano da textualidade, a partir sobretudo da reiteração das imagens da mãe e da irmã, uma forma de "subverter o ponto de vista da dominação", pelo empenho das poetisas de mostrarem "a [sua] presença, a [sua] ação, a plenitude dos seus papéis e mesmo a coerência de sua cultura", voltando a citar Perrot (1988, p. 170). Atam-se, em Sangue negro e em É nosso o solo sagrado da terra, as pontas das questões de raça e de gênero, fazendo-se as produtoras textuais mulheres combatentes ou combativas, usando uma categoria trabalhada por Susana Pravaz (1981).
Por fim, vale uma última observação, ou seja, que nos poemas de Alda e Noémia aparece uma terceira questão que suplementa as de raça e gênero: a de classe. As mulheres que ganham espaço nas obras são dinâmicas e pertencem às classes trabalhadoras, quase sempre sendo flagradas em sua atuação no mercado informal: vendedoras de carvão; vendedoras de peixe; lavadeiras; descascadoras de caroço ou mesmo prostitutas, para ficarmos com algumas categorias.
Podemos dizer dessas mulheres, com Pravaz, que "seu território é o combate, a luta pela vida, a superação de desafios" (1981, p. 61). Suas casas são mostradas em sua penúria, cobertas de zinco ou palha; habitam as cidades, os campos, sempre em espaços periféricos. Mesmo assim, resistem e combatem no cotidiano de sua história de privação. É justamente pela idéia de combate que elas se irmanam às duas senhoras da letra poética, de vozes em chama, que as recriam nas malhas de seus textos, envolvendo-as, para usar uma metáfora da moçambicana, em suas "capulana(s) de ternura" (2001, p. 96). Denunciam ambas, em estado de guerra, tudo que naquelemomento pudesse impor obstáculos ao seu caminhar em direção à liberdade que não admitia mais qualquer forma de adiamento. Por isso, mobilizam-se, e ao seu corpo, soltando as chamas de suas vozes inconformadas que continuam, passados tantos anos, a ressoar, em nossos ouvidos de leitor, com a pureza do som dos cristais.
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