Sumário

Notas para um estudo das formas oriundas de sedere no português arcaico

Eneida Bomfim
PUC-Rio
Cátedra Padre António Vieira

Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses

O verbo derivado de sedere foi conjugado em sua inteireza no português arcaico, mas muitas das suas formas foram cedo subs­tituídas por formas do latim esse.

Edwin B. Williams 1

O sentido originário de sedere , estar sentado, sentar-se ( sedentare , derivado do part. pres. de sedere ) ainda perdurava no século XIV [...].

Carolina Michaëlis de Vasconcelos 2

1. Proposta

Não é novidade que as formas do verbo ser no português moderno são provenientes dos verbos latinos esse e sedere . Partindo do conteúdo das epígrafes, gostaria de apresentar algumas reflexões, encaminhando-as como se segue.

No português moderno não há diferenças semânticas ligadas ao étimo entre as diversas formas do paradigma de ser . Este verbo é usado: 1. na acepção de existir ; 2. seguido de um predicativo que expressa um estado permanente do sujeito (atributo ou um modo de existir) e 3. na função de auxiliar, semanticamente esvaziado. De acordo com as afirmações das epígrafes, tem-se: 1. o sentido etimo­lógico de sedere perdura no século XIV; 2. as formas oriundas de sedere constituíam um sistema no português arcaico e 3. algumas destas formas foram substituídas por outras provenientes de esse.

Tomando como base esses fatos, num primeiro momento, faz­se necessário investigar: 1. o(s) sentido(s) peculiar(es) às formas pro­venientes de sedere em suas realizações no português arcaico; 2. a permanência ou não dessa(s) acepção(ões) em relação às formas subs­tituídas por outras oriundas de esse e 3. a possibilidade de coocorrência de outros verbos com o mesmo significado.

Com referência a 3, cumpre lembrar que no português arcai­co os verbos ser e estar eram intercambiáveis em vários contextos. Já na língua atual, há fatores determinantes da seleção de um ou de outro verbo. Não há ligação direta entre os domínios de ser e estar hoje e o estudo das formas derivadas de esse e sedere . O estabelecimento de parâmetros que, no português moderno, sirvam para determinar o que leva o usuário a selecionar um ou outro verbo, assim como ou­tros do mesmo campo semântico, pode, entretanto, concorrer para

o esclarecimento de estruturas correntes em outras etapas da língua.

Tem-se, então, um conjunto de fatos que precisam ser orde­nados: 1. a oposição entre ser e estar no português moderno; 2. a existência de um paradigma de formas oriundas de sedere significan­do 'estar sentado' ou simplesmente 'estar' no século XIV; 3. a indefinição do limite semântico entre ser e estar no português arcai­co; 4. a gama de sentidos assumidos por estes verbos em etapas an­teriores do português.

Proponho partir da observação da língua moderna como apoio para comparações com os fatos de etapas mais antigas, no caso, o português dos séculos XIII e XIV, tendo em vista a observação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos na epígrafe. Num plano mais amplo de acompanhamento da variação do uso dos verbos em estu­do e da posterior fixação dos seus significados, caberia investigar os contextos da variação, fatores propiciadores da mudança e época aproximada de sua efetivação. O pequeno estudo que ora apresen­to, como sugere o título, são notas que, acredito, serão de utilidade para a análise do assunto, mas estão longe de concluí-la.

 

1.1 Considerações preliminares

Começo por comentários rápidos sobre como os estudos do português focalizam na língua moderna esse grupo de verbos.

A tradição gramatical no Brasil costuma classificar ser , estar e outros como verbos de ligação 3 ou verbos relacionais 4 , o que vale dizer, verbos semanticamente esvaziados. Na literatura atual de in­fluência lingüística não há consenso quanto a esta posição. Bechara (2003: 209) 5 observa que a distinção entre verbos nocionais e relacionais está na base da diferença entre predicado verbal e predicado nominal. Os verbos em questão, ainda que tenham um significado léxico muito amplo e vago, são o núcleo da oração. A distinção é válida quanto aos aspectos semânticos, mas não é sinta­ticamente pertinente, já que o núcleo da oração é sempre um verbo. Para Perini (1995: 72) 6 , somente um verbo pode ser núcleo do predicado. Azeredo (2000: 72) 7 chama a atenção para o fato de que os verbos impropriamente chamados de ligação podem contribuir para a expressão da modalidade ( ser , parecer ), do aspecto ( estar , ficar , tornar-se etc.) Distingue os predicadores não-verbais em: 1. atribu­tivos; 2. identificativos e 3. situacionais (relativos ao tempo e ao es­paço). Em Vilela e Koch (2001: 67) 8 , encontra-se que "Os verbos copulativos e afins são freqüentemente colocados entre os verbos de estado que, como é evidente, têm valores diferenciados". Distinguem:

1. estado natural (ser); 2. estado adquirido (estar, achar-se); 3. esta­do permanente (viver, continuar); 4. mudança de estado (tornar-se, converter-se); 5. dúvida de estado (parecer). De certa forma essa clas­sificação coincide com a de Oiticica (1940: 32-33) 9 , proposta a par­tir do sentido do verbo na frase. Para Oiticica os verbos de estado indicam: 1. estado permanente (seguido de substantivo ou adjetivo) - ser; 2. estado passageiro (seguido de substantivo ou adjetivo) - estar, continuar, achar-se, encontrar-se; 3. de mudança de estado (se­guido de substantivo ou adjetivo) - ficar, cair, fazer-se, tornar-se. Nos exemplos analisados e comentados (p. 204-205) distingue em­pregos de parecer como verbo indicativo de dúvida de um estado (O velho parece triste); de aparência de um estado (Meu tio parece uma criança) e de semelhança (João se parece com Pedro).

Apesar das diferenças de foco, há coincidência na caracteriza­ção desses verbos como indicadores de estado relacionado com o sujeito.

Mateus et alii (1989: 100) 10 observam que o português opõe ser / estar como uma das formas disponíveis na língua para expressar a distinção entre predicadores de propriedades individuais e predi­cadores de propriedades de manifestações temporalmente limitadas de individuais. Os predicadores de individuais de natureza não ver­bal ocorrem no contexto / ser - os predicadores de manifestações temporalmente limitadas de individuais, não verbais, ocorrem no contexto / estar -. Têm expressão sintática diferente. Alguns predi­cadores podem ser usados para exprimir uma ou outra propriedade. Nesse caso, a ocorrência de um ou de outro verbo vai permitir a interpretação da propriedade. (O sapato é / está velho; Ele é / está síndico do prédio). O fato de não haver liberdade de seleção entre ser e estar , acrescido da importante distinção semântica decorrente da escolha leva as autoras a não aceitar que os verbos, neste tipo de construção, sejam meros elementos de ligação, devendo, antes, ser considerados verbos predicativos. Em conclusão, "esta distinção se­mântica está marcada em cada uso concreto de um predicador e é um dos fatores que selecionam os valores aspectuais possíveis desse predicador." (op. cit.: 102).

 

2. Apresentando a questão

Com referência ao português arcaico, deixando de lado os empregos de ser e estar como verbos auxiliares, a seleção preferencial recai sobre ser , quando significando estado, sobretudo no que tange à localização. A acepção primitiva de estar (estar de (em) pé) ainda existiu em fases recuadas do português, mas, gradativamente, houve

o esvaziamento semântico do sentido etimológico, passando o ver­bo a expressar simplesmente 'estado' ainda que pudesse ser interpre­tado como 'manter-se', 'ficar' e, também, como 'deter-se', 'parar', dependendo do contexto, como exemplificado a seguir com ocor­rências da Demanda do Santo Graal (doravante DSG) 11 :

1. Quando Erec entendeu que a justar lhe convinha, disse que lhe nom era mister, ca seu cavalo era já ta magro que nom podia já estar . (vol. II: 43) [estar de pé]

2. Entam o filhou el-rei pola mãao e levou-o aa rebeira do rio u o padram stava . (vol I: 25) [estar]

3. [...] ca bem sabia que nom staria muito em Camaalot (vol. I: 27) [permanecer]

4. E o cavaleiro esteve , tanto que viu que o rogava de coraçom [...]. (vol II: 9) [deteve-se]

 

As notas que passo a apresentar obedecem a um roteiro. Inicial­mente será constituído um corpus do século XIV com base em uma amostra dos três (3) primeiros capítulos da DSG. Desse conjunto de dados constam as ocorrências de ser e estar , analisadas e quantifi­cadas, de acordo com o seu sentido no texto. Numa segunda etapa, a investigação ficará restrita às ocorrências de formas provenientes de sedere , posteriormente arcaizadas, concorrentes de outras oriun­das de esse . Os dados dessa fase provêm dos cinqüenta e um (51) primeiros capítulos da DSG. Posteriormente, para conferência dos resultados, o corpus será ampliado com dados de excertos de outros textos do século XIV.

A escolha da Demanda do Santo Graal como fonte de dados justifica-se por ter sido traduzida do francês, provavelmente em fins do século XIII ou início do XIV e por se tratar de uma narrativa cujo assunto propicia a ocorrência das formas verbais pesquisadas.

 

2.1 Os dados da Demanda do Santo Graal

Antes de apresentar o quadro I que sintetiza as ocorrências dos verbos pesquisados na amostra da DSG, cumpre justificar algumas decisões que tiveram de ser tomadas com relação ao enquadramento dos dados nos significados propostos:

 

- foram englobadas ao significado de 'ser' as ocorrências de valor existen­cial;

- não foram contadas as ocorrências de ser em construções perifrásticas equivalentes ao futuro do indicativo, como, por exemplo, "será começada" = "começará";

- não foram levados em conta os matizes de sentido de estar .

 

Quadro I - Ocorrências de ser e estar (DSG)

Verbo

Significado

Totais

 

Ser

Estar

Mud. estados

Estar sentado

T

%

Ser

79

66%

19

16%

9

7%

13

11%

120

100%

 

100%

 

63%

 

100%

 

100%

 

92%

 

Estar

0

0%

11

100%

0

0%

0

0%

11

100%

 

0%

 

37%

 

0%

 

0%

 

8%

 

Totais

79

60%

30

23%

9

7%

13

10%

131

100¨%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

Mud. estado - mudança de estado

 

Das dezenove (19) ocorrências de ser , significando 'estar', registradas no corpus , dez (10) dizem respeito a localização e nove (9) a estado.

Sintetizando as informações do quadro, nota-se: 1. preferên­cia absoluta na seleção de ser ; 2. predominância de ser em acepções próprias de estar ; 3. ocorrências de ser , indicando o início de uma situação ou de um estado e 4. o emprego de ser , significando 'estar sentado' ou simplesmente 'estar', restrito a formas provenientes de sedere , que não se conservaram no paradigma atual do verbo ser .

Com relação a este último ponto, assinalo que as formas do subjuntivo provenientes de sedere não guardaram o sentido etimo­lógico no português arcaico. O mesmo não pode ser dito do impe­rativo. Há ocorrências de imperativo com o sentido de 'estar senta­do'. Transcrevo, a seguir, alguns exemplos ilustrativos dos diferentes empregos dos verbos em estudo.

5. [...] aquela era ña das donzelas [...].(DSG, vol I: 3) [ser]

6. [...] sabede que manhaã, hora de comer, seeredes aqui. (DSG, vol I: 3) [estar]

7. [...] e sabede que quantos na corte eram , foram ende mui ledos, [...] (DSG, vol I: 9) [estar e ficar]

8. Aqui deve seer Foam [...] (DSG, I: 9) [sentar-se]

9. [...] filhade esta espada, ca ela é vossa, por testimunho de quantos aqui estam [...] (DSG vol. I: 13) [estar]

10. Ora seede , e divisar-vos-ei a maior maravilha [...] (DSG, vol. I: 265) [sentar-se]

 

O verbo (a)sentar(-se) ocorre quatro (4) vezes na amostra pesquisada:

11. [...] filhou-o el-rei pola maão e assentou-o na seeda da Távola Redonda [...]. (DSG, vol I: 17)

12. E el-rei se foi assentar na sua alta seeda. (DSG, vol. I: 19)

13. Entam lhe fez vestir os panos, que trazia, e foi-o assentar na seeda perigosa. (DSG, vol I: 21)

14. E el-rei se foi assentar na sua alta seeda. E depois os companheiros da Távola Redonda foram seer cada u em seu lugar. E os outros, que nom eram de tam grã nomeada, severom cada ñu u devia. (DSG vol I: 19)

A origem de assentar e seer é a mesma: o verbo sedere . O pri­meiro provém do vulgar sedentare, derivado do particípio presente sedente-. Nos textos medievais tanto aparece a forma assentar, com a protético, quanto sentar . Do ponto de vista semântico, o sentido mais antigo é o observado no exemplo 11. A construção pronomi­nal que aparece em 12 guarda a mesma relação existente hoje entre 'sentar' e 'sentar-se' (Ela sentou a criança na cama / Ela sentou-se na cama).

Os exemplos de 11 a 13 podem fazer supor que a diferença entre assentar e seer estaria no traço (+ dinâmico) presente no pri­meiro verbo e ausente, no segundo. Entretanto, não é o que se dá em 14. A rigor ' seer ' e ' severom ' poderiam estar substituídos por ' sen­tar-se ' e ' sentaram-se '. O que se nota em textos da época é variação entre aqueles dois verbos, com preferência para (as)sentar quando há a presença do traço (+ dinâmico). O fator semântico está na base da variação e posterior mudança, como ocorre em situações diferen­tes de desaparecimento de formas no português e substituição por outras. A equivalência semântica vai ter papel decisivo no desapare­cimento do paradigma das formas provenientes de sedere , significando 'estar sentado'. Este assunto deverá voltar a ser discutido, quando da análise de dados da ampliação do corpus .

Passo à segunda etapa da coleta de dados, desta vez restritos às formas decorrentes de sedere, posteriormente arcaizadas, a partir dos cinqüenta e um (51) primeiros capítulos da DSG. O resultado está resumido no quadro II.

Quadro II - Formas provenientes de sedere (DSG)

Formas

Significado

Totais

 

Estar sentado

Estar

T

%

See

5

71%

2

29%

7

100%

 

15%

 

11%

 

13%

 

Seendo

2

100%

0

0%

2

100%

 

6%

 

0%

 

4%

 

Seer

4

50%

4

50%

8

100¨%

 

12%

 

21%

 

15%

 

Sei

0

0%

1

100%

1

100%

 

0%

 

5%

 

2%

 

Severom

2

100%

0

0%

2

100%

 

6%

 

0%

 

4%

 

Sevestes

1

100%

0

0%

1

100%

 

3%

 

0%

 

2%

 

Siia(m)

20

63%

12

37%

32

100%

 

58%

 

63%

 

60%

 

Totais

34

64%

19

36%

53

100%

%

100%

 

100%

 

100%

 

 

Observa-se que as ocorrências na acepção de 'estar sentado' são maioria (64%), mas não devem ser desprezados os significativos 36% dos empregos com o sentido de 'estar'.

Cabem alguns comentários. Nem sempre o contexto favorece o reconhecimento do sentido. Pode-se dizer que as ocorrências têm em comum o traço (-dinâmico). Assim mesmo, lembro o exemplo 14, já examinado anteriormente. Comprovando esse fato, fora dos capítulos pesquisados nesta etapa, há ocorrências de imperativo, que poderiam ser substituídas por 'assentar-se'.

15. Ora seede e divisar-vos-ei a maior maravilha [...] (DSG, vol I: 265)

16. Ora seede a cabo de mim e contar-vos-ei minha maa-andança e meu pesar (DSG, vol. I: 371)

Não ocorreram nos capítulos pesquisados as formas 'seve' e 'sejo'. Esta última <sedeo , primeira pessoa do singular do presente do indicativo, não encontrei, salvo engano, na Demanda . Também, no glossário da DSG, Magne não apresenta abonações desse uso. A forma 'sejo' é freqüente nos cancioneiros e aparece em textos em prosa, como registrarei numa próxima etapa dessas reflexões.

Quanto a 'seve' <seduit, terceira pessoa do singular do preté­rito perfeito do indicativo, registrei passim três (3) ocorrências.

17. El-rei siia na cima do paaço mui triste, e pois seve grã peça, disse tam alto que todos lo ouvirom. (DSG vol II: 441)

18. Mas na seeda de Lançalot seve u cavaleiro que havia nome Elians [...]. (DSG, vol. II: 445)
19. Na seeda de Boorz seve outro cavaleiro que havia nome Balinor [...]. (DSG, vol. II: 445)

 

 

2.2 Ampliação do corpus : dados do Livro das
linhagens
e da Corte imperial

Como reforço e verificação dos resultados obtidos na DSG, ampliamos o corpus com dados da mesma época. Foram escolhidos:

1. a descrição da batalha de Salado, inserida no III Livro das linha­gens (LL) que, segundo J.A. Saraiva e Óscar Lopes 12 , é " A mais no­tável narrativa histórica contida no corpo dos Livros das linhagens " 13 e 2. excertos da Corte imperial (CI), de autor desconhecido do iní­cio do século XIV, texto em que personagens como a Igreja Militan­te, a Igreja Triunfante, mouros, rabinos, um filósofo gentio e outros estabelecem diálogo sobre assuntos filosóficos e teológicos 14 .

No primeiro texto, não foram encontradas formas oriundas de sedere significando 'estar sentado'. O segundo, além de formas provindas de sedere, encontradas na DSG, tem a forma sejo < sedeo , primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Depois da análise dos dados, reunidos nos quadros III e IV, cabem comentá­rios que me parecem pertinentes para o estudo da questão.

 

Quadro III - Ocorrências de ser e estar (Batalha de Salado - BS)

 

Verbo

Significado

Totais

 

Ser

 

M. est.

 

Loc.

 

Estado

 

T

%

Ser

18

78%

2

9%

3

13%

0

0%

23

100%

 

100%

 

100%

 

37,5%

 

0%

 

67,6%

 

Estar

0

0%

0

0%

5

45%

6

55%

11

100%

 

0%

 

0%

 

62,5%

 

100%

 

32,4%

 

Totais

18

53%

2

6%

8

23%

6

14%

34

100¨%

%

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

 

M. est. - mudança de estado Loc. - localização espacial e temporal

 

 

Quadro IV - Ocorrências de ser e estar (CI)

 

Verbo

Significado

Totais

 

Ser

 

Loc.

 

Est.

 

M.est.

 

M.sent.

T

%

Ser

44

83%

4

7%

1

2%

1

2%

3

6%

53

100%

 

100%

 

25%

 

25%

 

100%

 

100%

 

78%

 

Estar

0

0%

12

80%

3

20%

0

0%

0

0%

15

100%

 

0%

 

75%

 

75%

 

0%

 

0%

 

22%

 

Totais

44

65%

16

24%

4

6%

1

1%

3

4%

68

100¨%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

 

Loc. - localização espacial e temporal; Est. - estado; M. est. - mudança de estado; E. sent. - estar sentado

Comparando-se estes dados com os coletados na DSG, algu­mas observações se fazem necessárias:

1. Não foram encontradas formas provenientes de sedere significando 'es-tar / estar sentado' no texto da Batalha de Salado. Em compensação, há duas (2) ocorrências de sia e uma de sejo na Corte imperial .

2. Ser , usado com valor de estar , é preferencialmente localizador (10x9 na DSG, 3x0 na BS e 4x1 na CI). No presente ponto da análise, não há elementos para considerar significativa esta preferência.

3. Analisando-se as ocorrências de estar nos três (3) textos, observa-se mai-or incidência da acepção de "localização" na DSG (7x4) e na BS (12x3). Na CI, predomina a acepção de "estado".

O conjunto de dados do século XIV favorece a expectativa de confirmar-se a observação de E. Williams sobre a existência de um paradigma oriundo de sedere , no sentido etimológico, concorrendo com outro proveniente de esse .

É importante lembrar que (as)sentar(-se) concorreu com as formas provenientes de sedere em etapas recuadas do português. Como observado na análise dos dados da DSG, aquele verbo apre­senta, na grande maioria das suas realizações, o traço (+ dinâmico). A observação é pertinente com relação aos outros textos. Com rela­ção a ser e estar , no português arcaico não se nota a oposição entre [-transitório] e [+ transitório].

Duas ocorrências, transcritas a seguir, ambas da CI, são dig­nas de nota. Os itálicos são de minha responsabilidade.

20. E em aquella rreal cadeyra, que era mais alta, ssya seentado hññ barom muy aposto e muy fremoso; (op. cit. p.137).

21. Em hññ a das cadeyras que estavam a cerca da rreal cadeyra do barom glorioso ssya assentada hññ rreinha umy fremosa[...]. (ibid., p. 139)

 

Nos dois (2) casos, o conjunto 'ssya (a)sentado(a)' significa 'es-tar sentado' e apresenta o traço (-dinâmico), próprio das formas pro­venientes de sedere na acepção de 'estar sentado'. Essas ocorrências revelam: 1. o enfraquecimento do sentido de seer ('estar sentado') e

2. o enfraquecimento do traço (+ dinâmico) de ( as ) sentar que já se insinuava em ocorrências da DSG. O fato é da maior importância para o acompanhamento da variação que antecede a mudança, com o desaparecimento definitivo das formas representativas de sedere .

A observação dos dados aponta para um processo de mudan­ça. Proponho investigar o comportamento das formas em estudo, em textos dos séculos subseqüentes, no intuito de acompanhar a mu­dança em curso e procurar estabelecer a época de sua conclusão.

O corpus será acrescido paulatinamente, à medida que se fizer necessário. Passo a examinar dados do século XV.

 

2.3 Dados do século XV


2.3.1 O Orto do esposo

Proponho uma coleta de dados no Orto do esposo (OE). Trata­se de obra escrita nos fins do século XIV ou começo do XV, o que, de certa forma, aproxima lingüisticamente os dados dos anteriormen­te apresentados. O texto de cunho religioso é de autoria de um monge anônimo que o escreveu "pera prazer e consolaçõ da alma de ty, minha irmãã e companheyra da casa divinal e huanal" 15 . A linguagem é despretensiosa, repetitiva, com traços marcantes de coloquialidade.

Foram pesquisadas as ocorrências dos três (3) primeiros livros, o primeiro, constituído de um prólogo e cinco (5) capítulos, o se­gundo, de prólogo e quatorze (14) capítulos e o terceiro, de quinze (15) capítulos. No primeiro livro, não há registro de formas deriva­das de sedere ('estar sentado'), no Livro II, registra-se uma (1) ocor­rência de sya com valor de 'estar' e no, III, uma (1) ocorrência de sia e duas (2) de see . Os dados estão organizados no quadro V, a seguir.

O procedimento é o mesmo adotado com relação aos textos do século XIV. Faz-se um levantamento das ocorrências de ser e de estar e, num segundo momento, são pesquisadas e analisadas as for-mas provenientes de sedere , significando 'estar sentado' encontradas no texto.

 

Quadro V - Ocorrências de ser e estar (OE)

Verbo

Significado

Totais

 

Ser

 

Estar-Loc.

Estado

M. estado

Estar sent.

T

%

Ser

202

78%

30

12%

18

7%

6

2%

2

1%

258

100%

 

100%

 

61%

 

82%

 

100%

 

100%

 

92%

 

Estar

0

0%

19

83%

4

17%

0

0%

0

0%

245

100%

 

0%

 

39%

 

18%

 

0%

 

0%

 

8%

 

Totais

202

72%

49

17%

22

8%

6

2%

3

1%

282

100¨%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

100%

 

 

Loc. - localização; m. estado - mudança de estado; estar sent. - estar sentado.

Comentários:

1. Ser , usado por estar tem majoritariamente o valor de 'localização' (12% x 7%) e

2. a seleção de estar é prioritária no sentido de localização (83%).

 

Considerei necessário, a exemplo do que foi feito com relação à DSG, pesquisar no texto inteiro as ocorrências das formas em es­tudo provenientes de sedere , como se pode conferir no quadro VI. São, ao todo, treze (13) ocorrências, salvo engano de contagem.

Na DSG foram encontradas sete (7) formas diferentes. No Orto do esposo, apenas três (3).

Quadro VI - Formas provenientes de sedere (OE)

Formas

Significado

Totais

 

Estar sentado

Estar

T

%

 

See

6

86%

2

14%

8

100%

 

 

60%

 

50%

 

57%

 

 

Seendo

1

50%

1*

50%

2

100%

 

 

10%

 

25%

 

14%

 

 

Sia

3

75%

1

25%

4

100%

 

 

30%

 

25%

 

29%

 

 

Totais

10

71%

4

29%

14

100%

 

%

100%

 

100%

 

100%

 

 

 

*Seendo é forma proveniente de sedere e está opondo-se a outra ocorrência com o sentido de 'estar sentado'

Os resultados obtidos orientam para a pesquisa de novos da­dos da mesma época. O texto escolhido foi o da Arte da ensinança de bem cavalgar toda sela , de d. Duarte, doravante LC, o primeiro tra­tado de equitação da Europa. É de meados do século XV, já que foi terminado depois da morte de d. João I, pai do autor.

Como o exame dos empregos de ser e estar não revelou fatos novos em relação aos textos analisados anteriormente, detive-me no foco do presente estudo que são as formas oriundas de sedere , signi­ficando 'estar sentado', o que a natureza do texto favoreceu.

Quadro VII- Formas provenientes de sedere (LC)

Formas

Significado

Totais

 

Estar sentado

Estar

T

%

 

Seendo

4

80%

1

20%

5

100%

 

 

16%

 

7%

 

13%

 

 

Seer

20

60%

13

40%

33

100%

 

 

84%

 

93%

 

87%

 

 

Totais

24

63%

14

37%

38

100%

 

%

100%

 

100%

 

100%

 

 

 

Com relação aos dados do século XV, no corpus até agora ana­lisado, nota-se um decréscimo desse grupo de formas com relação ao século anterior. Com relação à atenuação semântica de 'estar sen­tado' para 'estar' nota-se equilíbrio nos percentuais de ocorrência. Na DSG tem-se um percentual de 71% x 29%; no OE são 86 x 14% e no LC, 80 x 20%.

Estes resultados encaminharam a pesquisa para uma amplia­ção do corpus , desta vez com dados coletados na Crônica de d. Fernando (CDF) 16 , de Fernão Lopes, sem dúvida, o melhor prosa­dor da sua época, apesar das limitações lingüísticas da língua escrita medieval. A CDF, como as demais, tem características de coloquia­lidade, como, por exemplo, o fato de se dirigir com freqüência aos ouvintes, a presença de elementos anafóricos distanciados das res­pectivas referências, o uso exagerado de conectores como 'e', 'porém', 'então', 'desi' e outros, que merecem estudo especial.

2.3.2 Dados de Fernão Lopes

Cumpre dar um esclarecimento sobre a coleta de dados na CDF. Até o capítulo XLIX, todas as ocorrências, salvo engano, fo-ram computadas, tanto de ser, na acepção de 'estar' quanto do paradigma de sedere . Do capítulo L ao CLXXVIII que encerra o li­vro, as ocorrências do último tipo foram rigorosamente procuradas e analisadas. Os resultados apontaram para um decréscimo na sele­ção das formas oriundas de sedere .

Na amostra constituída a partir dos quarenta e nove (49) pri­meiros capítulos do livro, não foram encontradas ocorrências das formas provenientes em estudo. Com relação ao emprego de ser na acepção de estar , são numerosas as ocorrências, a maior parte indi­cando localização (74%). Encontrei apenas um (1) emprego de ser , indicando mudança de estado. Na segunda amostra, a resposta foi positiva. Foram encontrados um emprego de seendo , dois (2) de seer e cinco (5) de siia (m),

 

Quadro VIII - CDF

Forma

Significado

Totais

 

Estar

Estar sentado

T

%

Seendo

1

100%

0

0%

1

100%

 

25%

 

0%

 

12,5%

 

Seer

0

0%

2

100%

2

100%

 

0%

 

40%

 

25%

 

Siia(m)

3

50%

3

50%

6

100%

 

75%

 

60%

 

62,5%

 

T

4

44%

5

56%

9

100%

%

100%

 

100%

 

100%

 

 

Foi guardada a oposição entre [- dinâmico] x [+ dinâmico], com exceção de um exemplo que transcrevo, a seguir, em que assentado apresenta o traço [- dinâmico] favorecido pelo fato de estar forman-do perífrase com siia .

22. Estonce, passeando mui mansso, chegou-sse ao cabo da mesa, veendoo el-rrey d'hu siia assentado , e com os geolhos derribou o pee da mesa e deu com ella em terra. (CDF, cap. CLXVI, p. 571-2)

Lembro que os exemplos 20 e 21 apresentam as mesmas ca­racterísticas.

Os resultados apontaram para um decréscimo na seleção das formas oriundas de sedere , em benefício de ( as ) sentar ( se ).

 

2.4 Dados da passagem do século XV para o XVI

 

Ficou clara a necessidade de aumentar-se o corpus com dados de textos de fases posteriores do português. Foi escolhido o texto integral da Croniqua delrey d. Joham II , de Rui de Pina 17 .

Esta obra foi terminada no final do século XV ou, no máxi­mo, nos primeiros anos do século XVI, dado que foi paga em 1504.

A variação entre ser e estar ainda está presente. Não há ocor­rências de formas derivadas de sedere , significando 'estar sentado'. Em todas as circunstâncias a seleção recai sobre assentar ( se ).

Como confirmação dos resultados, foi utilizada, também, a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal (1500). Compro-vam-se as conclusões tiradas a partir do texto de Rui de Pina.

Nos autos de Gil Vicente, aparecem algumas formas, a maio­ria com o sentido de 'estar', mas também com o sentido de 'estar sentado' 18 . São arcaísmos, ainda recentes, que servem para marcar a linguagem de rústicos.

3. Considerações finais

Neste ponto, voltando às epígrafes que motivaram estas no­tas, é possível concluir que o sistema do verbo derivado de sedere não apenas persistiu, no século XIV, mas alcançou o século XV e, ainda nesse século, sofreu um enfraquecimento gradativo até desaparecer. Com certeza, não passou para o século XVI.

Recapitulo o caminho percorrido. A análise dos dados forneceu pistas importantes para o acompanhamento da variação entre seer ('estar sentado') e ( as ) sentar ( -se ). Duas ordens de fatos mostraram-se pertinentes para a presente investigação; 1. os que envolvem a varia­ção entre ser e estar e 2. as conseqüências advindas do duplo valor semântico de seer ('estar sentado'), que aparece no corpus com percen­tuais significativos no valor de 'estar'. Note-se que a separação semân­tica entre ser e estar ainda não estava resolvida, embora em processo, quando o paradigma de sedere , com sentido etimológico saiu de circulação.

Pode-se dizer que a polissemia de ser foi um elemento facilita­dor da mudança, do mesmo modo que a concorrência com ( as ) sentar (- se ). No último caso, registrem-se o enfraquecimento semântico das formas do esquema de sedere e o obscurecimento do traço [+ dinâ­mico] de (as) senta r(- se ), como se pode observar nos exemplos em que os dois verbos aparecem lado a lado.

Transcrevo:

20. E em aquella rreal cadeyra, que era mais alta ssya seentado hññ barom muy aposto e muy fremoso (op. cit. p. 137) 19
21. Em hñña das cadeyras que estavam a cerca da rreal cadeyra do barom glorioso ssya assentada hña rreinha muy fremosa [...] (ibid., p. 139)

22. Estonce, passeando mui mansso, chegou-sse ao cabo da mesa, veendoo el-rrey d'hu siia assentado , e com os geolhos derribou o pee da mesa e deu com ella em terra. (CDF, cap. CLXVI, p. 571-2)

Encontram-se, também, empregos de seer com o traço [+ di­nâmico]:

15. Ora seede e divisar-vos-ei a maior maravilha [...]. DSG, vol. I: 265)

16. Ora seede a cabo de mim e contar-vos-ei minha maa-andança e meu pesar. (DSG, vol. I: 371)

 

Os principais fatores propiciadores da mudança são de ordem semântica: 1. a semelhança de significado das formas do paradigma proveniente de sedere e ( as ) sentar ( se ); 2. o enfraquecimento do traço [+ dinâmico] do segundo verbo e 3. o fato de seer etc. valerem por estar com freqüência significativa.

A mudança foi antecedida da variação dos elementos em ques­tão, e já era incipiente no século XIV. O processo de mudança con-cluiu-se no século XV.

Um acompanhamento mais aprofundado do processo de mudança é uma proposta para o desenvolvimento destas notas. Outros caminhos de investigação se abrem a partir dessas reflexões, como, por exemplo, a história compartilhada de ser e estar .

 

Notas de Rodapé

 

1 Edwin B. Williams, Do latim ao português , tradução de Antônio Houaiss. MEC­INL, 1961: 241.

2 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, "Glossário do Cancioneiro da Ajuda". Re-vista Lusitana , vol. XXIII, 1920. Lisboa: Livraria Clássica Editora, p. 82.

3 Cf. NGB, livros didáticos e gramáticas como as de Cunha e Cintra (2001), Rocha Lima (1976) e outros.

4 Said Ali, na Gramática secundária (1964) e na Gramática histórica (1965).

5 Evanildo Bechara, Moderna gramática portuguesa. 37. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

6 Mário Perini, Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1995. 7 José Carlos de Azeredo, Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 8 M. Vilela e I. V. Koch, Gramática da língua portuguesa . Coimbra: Almedina, 2001.

9 José Oiticica, Manual de análise, 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1940. 10 M. H. Mateus et alii. Gramática da língua portuguesa . 2. ed. Lisboa: Caminho, 1999.

11 Augusto Magne, A demanda do Santo Graal . Reprodução fac-similar e transcri­ção crítica do códice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena. Rio de Janeiro: 1955. vol. I e II.

12 J. A. Saraiva e Óscar Lopes, História da literatura portuguesa , 2. ed., Porto: Porto Editora, [s.d.], p. 74.

13 O texto que serviu de base à coleta de dados está em J. J. Nunes, Crestomatia arcaica , 5. ed. Lisboa: Livraria Clássica, [s.d.], p. 45-60.

14 Id., ibid., p. 136-143.

15 Orto do esposo , edição crítica com introdução, anotações e glossário por Bertil Maler. Rio de Janeiro: MEC-INL, 1956. Vol. I, Livro I, Prólogo, p. 1.

16 Fernão Lopes, Crônica de d. Fernando , edição crítica por Giuliano Macchi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975.

17 Rui de Pina, Croniqua delrey dom Joham II , nova edição com prefácio e notas de M. de Carvalho, Coimbra: Atlântida, 1950.

18 Cf. Eneida Bomfim, "Uma leitura dos autos de Gil Vicente: o Auto da festa ". Semear - Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, Rio de Janeiro: Instituto Camões / PUC-Rio, n. 8, p. 193-211.

19 Trata-se da Corte imperial , de onde foi retirado, também, o exemplo 21.