Ronaldo Menegaz
Cátedra Padre António Vieira
A publicação, em 1508, do Amadis de Gaula na Espanha provocou uma explosão renovadora do romance de cavalaria em toda a Península Ibérica. A narrativa teve tão excepcional receptividade, que logo deu origem a todo um ciclo, como foi sempre habitual nesse gênero de narrativa. Como se sabe, o herói do romance de cavalaria nunca é um herói isolado, fechado sobre si mesmo e individualizado por seu criador, como no romance grego ou romano. O herói dos romances de cavalaria é sempre um herói de ciclos. Seu público leitor quer sempre saber mais de seu herói. Suas novas aventuras e, às vezes, as aventuras de seus filhos e descendentes. Marcado pelo maravilhoso e pelas aventuras que vão definindo, em face dos valores como a fé, o amor e a honra, heróis e vilões, o enredo inicial do Amadis desenvolveu um entrelaçado de histórias, que impôs ideais e modelos. Figuras importantes do século XVI documentam a boa receptividade desse tipo de narrativa. Santa Teresa de Jesus confessa como, influenciada por sua mãe, apreciava, na infância, os livros de cavalaria. Escreve ela sobre esse gosto de sua mãe que se fez seu também em sua autobiografia, Su vida :
Era [minha mãe] aficionada em livros de cavalaria, e não usava tão mal esse passatempo, como eu o usei para mim, porque não perdia seu trabalho, mas antes nos desenvolvemos para podê-los ler; e porventura o fazia para não pensar nos grandes trabalhos que tinha, e para ocupar seus filhos a fim de que não andassem em outras coisas perdidos. 1
Essa publicação do Amadis , em 1508, foi o ponto de partida de uma última ramificação do romance de cavalaria, já então superado e tardio, de que o Quijote , de Miguel de Cervantes, publicado entre 1605 (primeira parte) e 1615 (segunda parte) é a mais perfeita e genial paródia.
Dentro da copiosa atividade editorial desencadeada pela publicação do Amadis , inscrevem-se também as numerosas traduções do romance surgidas em diversos países da Europa.
O teatro quinhentista não se manteve isento da influência dessa literatura tão divulgada no século e tão rica em lances romanescos com todo seu aparato de feitos heróicos de príncipes valorosos e amores desatinados de belas princesas. Numa sociedade que se expandia em terras até então dominadas ou sob forte pressão do inimigo tradicional, o maometano, a guerra está sempre a exigir atos de coragem e desprendimento em favor do rei e da fé. Talvez mais do que somente um modismo, o cavaleiro leal e valoroso é um paradigma a se ter nesse momento de façanha e de proezas, mas também de sacrifícios e ousadias. Assim é que Gil Vicente escreve e representa três autos organicamente ligados aos romances de cavalaria: a Comédia da Rubena , em 1521, a Tragicomédia de Dom Duardos , em 1522, e a Tragicomédia de Amadis de Gaula , em 1523 ou 1524, embora a Copilaçam dê o ano de 1533 como o de sua representação.
A Comédia da Rubena , parece válido lembrar, foi representada em 1521, no ano seguinte, portanto, da publicação da Crônica do imperador Clarimundo , de João de Barros, livro que mistura ao maravilhoso da narrativa cavaleiresca as origens dos reis de Portugal. Prefaciando sua edição da Crônica , Marques Braga chama a atenção para os aspectos fantásticos da novela de João de Barros e seu parentesco com o Amadis de Gaula . 2
O mundo encantado, fantástico, cheio de prestígios e casos maravilhosos em que se movem as figuras desta Novela patenteiam que o Clarimundo é um dos numerosos descendentes do Amadis de Gaula, o mais antigo, famoso e ideal livro de cavalarias - um livro de renome universal.
A Comédia da Rubena tem o enredo mais fantástico de todos os autos de Gil Vicente que têm algum parentesco com os romances de cavalaria. Rubena, filha de um abade, tem um caso amoroso com um jovem clérigo, de que resulta o nascimento da filha, Cismena. Para que o pai não saiba desse passo da filha, ela é entregue por sua ama a uma feiticeira que invoca quatro diabos para auxiliá-la no parto e providenciar as coisas necessárias, como o berço para a criança. Fadas são convocadas para fadarem a recém-nascida e é, só então, que o leitor fica sabendo que o espaço em que ocorrem os fatos representados é Creta, numa superposição de planos geográficos dos mais ousados de Gil Vicente, sobretudo se levarmos em conta que Arrochela, aldeia da Estremadura, é deslocada pelo autor para a ilha de Creta.
Convém lembrar aqui a noção de cronotopo de Bakhtin. O termo, empregado nas ciências matemáticas e, depois, também introduzido e fundamentado na teoria da relatividade de Einstein, significa, como escreve Bakhtin, "a interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura" 3 . E essa interligação é uma das características mais marcantes do romance de cavalaria, em que o espaço e o tempo se dilatam ou se comprimem de acordo com as necessidades da ação.
No entanto, parece questionável o enquadramento da Comédia da Rubena como um enredo de cavalaria. Primeiramente, na comédia não se trata de um herói, mas de uma heroína, que, por seu turno, não é Rubena, a que dá nome ao auto, mas sua filha Cismena. Depois, esta não tem origem maravilhosa como, de praxe, todo herói tem. Cismena é uma simples filha dos amores de Rubena com um clérigo. Se falta à heroína uma origem maravilhosa, como a de Amadis, o donzel do mar, não faltarão elementos prodigiosos em seu nascimento e na vida que vai levar em Creta, até que surja o príncipe da Síria, ao final do enredo, realizando o cronotopo do encontro, tão característico desse gênero de história.
Da infância de Cismena, vivida na condição de pastorinha, assiste-se a uma conversação entre crianças, na qual a personalidade poliédrica de Gil Vicente se revela em um novo aspecto inédito até então: o conhecedor da psicologia infantil.
Invertendo situações, o príncipe da Síria vai se fazer pajem de Felício, um apaixonado de Cismena, para ter uma oportunidade de se aproximar dela, e vai acompanhar Felício ao deserto, onde se desenvolverá a interessante cena do eco. Diz a rubrica do auto: Chegando Felício àquele deserto com o dito pajem, e fazendo suas exclamações, respondia-lhe o Eco na maneira seguinte :
Fel. Oh o mais triste onde vou?
onde vou triste de mi?
Ó dores, matai-me aqui,
onde nunca homem chegou.
Eco. Hou.
Fel. Hou males, quem me vos deu
deu-vos pera me acabar.
Ó! Quem sofreu por amar
Tamanho mal como o meu?
Eco. Eu. 4
A didascália da Tragicomédia de D. Duardos , o segundo auto de inspiração cavaleiresca, já coloca o leitor no clima do romance de cavalaria: Esta primeira Tragicomédia é sobre os amores de D . Duardos, Príncipe de Inglaterra, com Flérida, filha do Imperador Palmeirim de Constantinopla .
O encontro de D. Duardos com Flérida dá-se num momento em que o herói está lutando com outro de sua estirpe e qualidade, Primaleón, filho do imperador Palmeirim, irmão, portanto, da heroína, Flérida, é um grande cavaleiro; suas façanhas são de todos conhecidas. D. Duardos não é ainda conhecido na corte, embora sua fama de cavaleiro já o tenha precedido na corte de Constantinopla, pois ao vê-lo lutando sem saberem os presentes que se trata de D. Duardos, Artada, dama de Flérida, exclama:
Art. Si non es el Donzel del mar
Don Duardos debe ser
que otro es tal.
Assim, se o cavaleiro não é Amadis, só pode ser D. Duardos, não havendo outro cavaleiro que se lhes compare e seja tão bom competidor para Primaleón. Só a infanta Olimba sabe que aquele cavaleiro é D. Duardos. Olimba tem importante papel no romance das aventuras de Primaleón. É essa Olimba que dá a D. Duardos uma taça das fadas, "esta copa de las hadas" recomendando a D. Duardos que faça Flérida beber por ela, porque quem isso fizer o amará com a mesma intensidade com que ele a ama.
Diferentemente do filtro de Tristão e Isolda, onde o conteúdo é que tinha poderes, aqui na Tragicomédia de D. Duardos , o poder sobrenatural de fazer alguém se apaixonar está no continente: é a copa das fadas que tem poderes, beber a simples água da horta na copa das fadas que fará Flérida perder-se de amores por D. Duardos.
Não faltam ao auto de Dom Duardos as tiradas tão ao gosto dos cavaleiros amantes da península Ibérica, as confissões de amor que lembram tenções do Cancioneiro geral . Observe-se esse diálogo entre D. Duardos e Flérida; esta, ressentida por não atinar com a identidade daquele homem com modos de cavaleiro, mas que trabalha numa horta, procura humilhá-lo.
Flé. Anda véte agasajar
com tus padres y hermanos,
por los cuales
holgaré de te amparar.
D. Du. Beso vuestras altas manos.
Divinales.
Flé. Véte con la bendición
a comer cebolla cruda,
tu manjar.
D. Du. Quien tiene tanta pasión
todo comer se le muda
en sospirar.
Flérida não se conforma com a condição social desse lavrador de horta que fala tão bem e tem respostas que ficariam pertinentes na boca de um verdadeiro cavaleiro. Aconselha-o a buscar outro trabalho mais de acordo com sua pessoa, ou melhor, com seu discurso. Não seria melhor que fosse pelo menos escudeiro? Na verdade, seguindo os protótipos do gênero ambos se amam, mas falta o momento de se desvendar o mistério que envolve aquele estranho personagem da horta. D. Duardos, o falso lavrador da horta, assim como acontece ao Amadis, desmaia de amor duas ou três vezes. Flérida quer revelar sua paixão pelo hortelão, mas Artada, uma de suas amas, lembra-lhe os príncipes que ela tem a sua disposição, príncipes de Hungria e de França, o príncipe da Normandia, o príncipe dos romanos e D. Duardos de Inglaterra. Não convém que ela, tão alta princesa, se enamore de um simples hortelão. Num diálogo com Artada, quando esta confessa que volta a sua senhora sem levar a resposta que ela espera: Quem é afinal o hortelão? "Voyme y no sé qué diga", D. Duardos recita um belo monólogo à base de oximoros sobre os paradoxos do amor cortês, que lembra Camões no célebre soneto "Amor é fogo que arde sem se ver". Queixa-se D. Duardos:
D. Duardos. Soy quien anda y no se muda,
soy quien cala y siempre grita
sin sosiego;
soy quien vive en muerte cruda,
soy quien arde y no se quita.
de su fuego;
soy quien corre y está en cadena,
soy quien vuela y no se aleja
del amor;
soy quien placer ha por pena,
soy quien pena y no se aqueja
del dolor.
O jogo do desconhecimento dos protagonistas continua e, antes da agnórise final, D. Duardos ainda combate e mata o cavaleiro "salvage" Camilote. Este e sua dama Maimonda, chamada na rubrica "o cume de toda fealdade", representam um contraponto paródico ao amor e à beleza de Flérida e de D. Duardos.
Bakhtin 5 comenta em seu livro como o tempo de aventuras do romance de cavalaria se organiza em relação ao maravilhoso, ao mágico e ao encantamento: tão logo D. Duardos se dá a conhecer como um cavaleiro, trajando roupas adequadas a seu estado, aparece, surgido não se sabe donde, o patrão da esquadra que o aguarda nessa hora de preamar, com dez galeras reais, e outras medianas, fustas, galeras outras e naves para conduzir para o reino encantado de Inglaterra a princesa Flérida, filha do imperador Palmeirim de Constantinopla.
O Amadis de Gaula é inspirado na famosa novela, publicada em 1508 em espanhol, de que Gil Vicente dramatiza, com liberdade, um dos episódios. O autor coloca em cena Amadis , filho do rei Perion, de Gaula, e cavaleiro que busca a fama, (que em la fama está el vivir) aceitando reptos e arriscando a vida em feitos de cavalaria, modelo ao mesmo tempo do cavaleiro corajoso e valente e do amador cortês que tudo realiza em honra e pela fé de sua dama Oriana, filha do rei Lisuarte, de Inglaterra.
O episódio escolhido por Gil Vicente é aquele em que Oriana é informada pelo Anão de que Amadis se tinha enamorado de Briolanja. A presença de anões é comum nos romances de cavalaria, nos quais eles têm funções de entretenimento nos palácios e são também empregados como mensageiros. Amadis, no cumprimento do dever de restaurar a justiça, tinha reconduzido ao trono de Sobradisa a princesa Briolanja. Ao tomar conhecimento de que Amadis está com Briolanja, Oriana lhe manda uma carta por D. Dorin, dizendo que não quer mais vê-lo. Sabendo que Oriana não o quer mais, Amadis transforma-se num ermitão e vai viver na Penha Pobre, onde se considera morto para o mundo. Essa mudança profunda na vida de Amadis está representada na substituição das roupas e de todos os atributos de cavaleiro pelo hábito de ermitão que veste e no novo nome que adota, Beltenebrós. Certificada por Dorin de que Amadis tinha passado pelo arco encantado do sábio Apolidon, pelo qual não conseguia passar ninguém que tivesse sido infiel a seu primeiro amor, Oriana manda, em busca de seu cavaleiro, a donzela Dinamarca, com uma carta humilde em que pede perdão a Amadis. Beltenebrós retoma sua identidade de Amadis, o donzel do mar, e volta, com a donzela Dinamarca ao reino de Lisuarte, onde Oriana o esperava no palácio de Miraflores.
Não só nesses três autos se vislumbra a permanência da literatura cavaleiresca em Gil Vicente , mas ainda nos autos Frágua de Amor e Comédia do Viúvo , de 1524, no Templo de Apolo , de 1526, na Nau de amores e na Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra , de 1527, e no Auto da Lusitânia , de 1532. Neste auto, explicitando a importância das ações cavaleirescas para a época histórica que se vive, Portugal surge em cena com um cavaleiro.
Pode-se ver o momento como o de numa renovação de caminhos e de inspiração que marca uma nova direção na dramaturgia vicentina. A adoção de um teatro de exaltação à coragem e ao senso do dever vem a ser oportuna para uma sociedade em expansão a se propagar por recantos do mundo que não deixam de ser países encantados, lendários reinos exóticos, como os da narrativa cavaleiresca. Por outro lado, a guerra e as conquistas de ultramar representavam cada vez mais meios de ascensão e de manutenção de postos mais avançados. Tratava-se de uma empresa que era necessário revestir de "uma forte aparelhagem político-ideológica, encontrando no combate ao infiel e na evangelização a justificação ética por excelência", como escreve Maria Leonor García da Cruz. 6 É ainda ela quem diz:
O empenhamento do cavaleiro cuja função principal - no quadro jurídico da divisão tripartida da sociedade medieval - é a guerra, reveste-se da maior importância pois, na óptica vicentina, há que devolver-lhe uma aura de sabor medieval, pondo-o ao serviço de Deus. Pelos seus actos de bravura e esforço é que os cavaleiros deveriam conseguir o favor régio, em tenças ou em cargos, para que o justo valor fosse compensado, e não a aderência e o jogo de intriga e bajulação que parecem dominar os meios mais próximos do soberano.
Os autos cavaleirescos de Gil Vicente, independentemente de qualquer conteúdo político-ideológico que podiam querer transmitir, deveriam contar com uma receptividade extraordinária numa corte consumidora de aventuras romanescas como seriam as cortes ibéricas no século XVI. Sabe-se pela história literária quinhentista que esse gosto, quase serôdio, pelos romances de cavalaria, despertado pelo surgimento, em livro, do Amadis de Gaula se transformará em forte caudal com a publicação, desde a Crônica do imperador Clarimundo , em 1520, passando pelo Palmeirim de Inglaterra , primeira e segunda partes, de Francisco de Morais, redigido em 1544, editado em 1547 em tradução castelhana e, em 1567, no original português, e pelo Memorial das proezas da segunda Távola Redonda , de Jorge Ferreira de Vasconcelos, de 1564, até a terceira e quarta parte do Palmeirim no final do século em 1587, e a Quinta e sexta parte da Crônica de Palmeirim de Inglaterra, na qual se contam as grandes cavalarias do príncipe D. Clarisol de Bretanha, filho do príncipe D. Duardos , já no século XVII, em 1602, às vésperas do definitivo Don Quijote de la Mancha .
Assim é fácil compreender que Gil Vicente, ao iniciar uma série de autos ligados à temática cavaleiresca, se estava cedendo a um gosto generalizado de seu tempo, sua atitude criadora não deixava de ser também pragmática, pelo que a exaltação dos valores da cavalaria representavam no momento histórico em que se vivia.
Notas de Rodapé
1 Santa Teresa de Jesús, Su vida , Buenos Aires-México, Espasa-Calpe Argentina, 1951, p. 25.
2 João de Barros, Crônica do imperador Clarimundo , com prefácio e notas de Marques Braga, Lisboa, Sá da Costa, 1953, vol. I, p. XXX.
3 Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e de estética - A teoria do romance, São Paulo, Editora UNESP, 1993, p. 211.
4 Gil Vicente, Obras completas , com prefácio e notas do prof. Marques Braga, Lisboa, Sá da Costa, 1963, vol III.
5 Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 271.
6 Maria Leonor García da Cruz, Gil Vicente e a sociedade portuguesa de Quinhentos , Lisboa, Gradiva, 1990, p. 222.