Tania Brandão
UNIRIO
Pensar um paradoxo - essa é a condição que o tema escolhido, traduzido no título, propõe. Na verdade, trata-se de um paradoxo em princípio, talvez o registro de uma impossibilidade, pois o título parece reunir opostos irredutíveis, realidades históricas antagônicas, que não se poderiam aproximar em qualquer grau que fosse a não ser que existisse, como é o caso aqui, o desejo absoluto de discutir o teatro brasileiro. Discutir o teatro brasileiro em sua totalidade, não apenas o teatro moderno brasileiro do título, pois o outro termo da proposição é exatamente Gil Vicente, ou melhor, o teatro de Gil Vicente, referência que nos levaria obrigatoriamente a esta idéia de conjunto, supondo-se aqui que Gil Vicente é, em algum grau, parte do teatro brasileiro; aliás, uma avaliação que pode ser questionada e até refutada com veemência. No fundo, a questão que norteia este texto e dá margem a que se cogite falar em paradoxo diante dos termos do título é precisamente a pergunta sobre o papel desempenhado por Gil Vicente no teatro brasileiro, em particular no teatro de nosso tempo. Uma vertente a explorar que talvez possa indicar a existência de um paradoxo historicamente construído, erigido em dogma pelo fazer humano.
O objetivo a atingir, portanto, é o desvelamento desse paradoxo, o que significa propor uma discussão bastante extensa do teatro brasileiro. Vale começar situando o que seria esta primeira condição atribuída aos dois termos - realidades históricas antagônicas . Ao falarmos de teatro moderno brasileiro , estamos apontando para um palco em particular, o palco do encenador e da encenação , que começou a se tornar realidade profissional no Brasil a partir de 1948, ainda que a sua formulação originária, primeira, européia, date do final do século XIX. Dissemos 1948 com absoluta intencionalidade; mais adiante será necessário retornar a essa data. Assim, em termos imediatos, temporais, nada poderia ser tão distante do teatro de Gil Vicente, encerrado no século XVI, iniciado intempestivamente em 1502, como espetáculo de um homem só, que irrompeu na câmara da rainha para declamar o seu Monólogo do vaqueiro , quanto a poesia cênica de equipe regida pelo diretor, que viria a se tornar a forma de ser do teatro do século XX. Essa poesia cênica foi adotada pelo palco brasileiro, ainda que em um outro tempo histórico, quando já ia adiantado o século XX e não no final do século XIX.
Observe-se que o teatro moderno brasileiro aconteceu aqui como cálculo deliberado, busca, intencionalidade; não foi um gesto - digamos - espontâneo, de rompante, como se costuma qualificar a manifestação do poeta português quinhentista. Gil Vicente, a julgar pelos vestígios que nos restaram, sequer possuía um palco consolidado ao redor para com o qual dialogar, ou para enfrentar, combater. Ainda que possa ter existido em seu tempo um jogo teatral maior, como expressão social forte, ele não foi tão forte a ponto de imprimir sua presença na história. E, de qualquer maneira, fosse qual fosse a densidade do teatro português naquele momento, o fato concreto é que o teatro vicentino que se iniciou em 1502 precedeu a criação do edifício teatral, situação que não é negligenciável para os estudos da cena no século XVI. Gil Vicente, na verdade, não tinha palco.
Já o teatro moderno brasileiro foi cálculo e intencionalidade exatamente porque necessitava enfrentar um outro teatro, senhor absoluto dos tablados, o teatro do primeiro ator, das companhias de hierarquias e convenções; ainda será preciso, adiante, voltar a esse teatro que a cena moderna brasileira enfrentou. Por ter sido luta, o próprio momento de aparição do teatro moderno brasileiro é um fato temporal extenso, controverso, muito diferente do episódio ímpar que marcou o surgimento do teatro vicentino. A questão não é irrelevante para o estudo que se pretende esboçar aqui. Muito ao contrário até. O longo percurso temporal permitiu uma oscilação razoável do conceito de teatro moderno que foi defendido nos palcos nacionais, com resultados expressivos para o tema em pauta.
Existe um debate histórico na atualidade a respeito da data que seria o marco inicial do nascimento do moderno no teatro brasileiro. Por bastante tempo, essa data foi flutuante, sujeita a questionamentos e controvérsias. Ao longo dos anos 70, consolidou-se uma vertente favorável ao reconhecimento de 1943, ano da estréia de Vestido de noiva , de Nelson Rodrigues, dirigido por Ziembinski, com cenários de Santa Rosa, como o marco inicial do moderno no palco nacional. Há um testemunho de época de cores fortes e de importância extrema para as idéias que pretendemos defender neste texto:
O que víamos no palco, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, era essa coisa misteriosa chamada mise en scène (só aos poucos a palavra foi sendo traduzida por "encenação"), de que tanto se falava na Europa. Aprendíamos, com Vestido de noiva , que havia para os atores outros modos de andar, falar e gesticular além dos cotidianos, outros estilos além do naturalista, incorporando-se ao real, através da representação, o imaginário e o alucinatório. 1
O autor do comentário é Décio de Almeida Prado (1917-2000); o texto, devotado precisamente à análise do teatro brasileiro moderno, publicado em sua primeira versão em 1984, mescla memorialismo e pesquisa e fala, nesse trecho, da vivência de uma geração, a geração que teria feito a revolução moderna e da qual o autor participara ativamente. Uma atenção cuidada ao teor do texto revela a existência de uma platéia iniciada, atualizada, que acompanhava o debate europeu sobre a encenação - é um nós (o que víamos no palco...) que insinua a existência de uma demanda, de uma expectativa, uma ambiência. Esta ambiência era um novo amadorismo, que começara a se articular havia algum tempo em certas bases, justamente modernas , e que permite que se questione a data de 1943 como marco inicial do teatro moderno. Nesse momento, já estava em andamento um processo de mudança que o pequeno trecho insinua. Na verdade, o ciclo moderno teria sido iniciado em 1938, com o Teatro do Estudante do Brasil organizado por Paschoal Carlos Magno, que estreara nessa data, sob a direção de Itália Fausta, uma montagem de Romeu e Julieta , de Shakespeare. A repercussão conquistada pelo TEB foi considerável; provocou o aparecimento ou a reativação do teatro do estudante por todo o país, injetou ânimo novo no teatro amador, graças à habilidade de Paschoal Carlos Magno para mobilizar os meios de comunicação e conquistar o apoio das elites e das cabeças pensantes.
E qual era o ideário desse novo teatro, a raiz da formulação do teatro moderno brasileiro? O ideário desse novo teatro era derivado do teatro de que tanto se falava na Europa. Mais exatamente, era uma mistura de concepções franco-italianas, proposições de Jacques Copeau 2 (1879-1949), em particular. Em um primeiro momento, até meados da década de 40, importava mais a lição francesa, sob um determinado colorido, do que a lição italiana, que logo se fará ouvir. Para o encenador francês, que tomou para si a tarefa de reformar o palco parisiense do início do século, teatro era encenação em um sentido muito peculiar, era justamente dar vida em cena a um texto de indiscutível densidade poética, empreendimento em que um líder guiaria um conjunto homogêneo de abnegados amantes da arte no processo de materialização da essência do texto da peça no palco. O palco poderia estar nu, despojado de enfeites e artifícios, mas deveria estar impregnado pela essência do texto, deveria ser vestido pelas palavras do autor, instrumento eficiente para conter os impulsos expressivos dos atores. Antes de pretender revolucionar a cena francesa, Copeau militara na crítica teatral, convivera com o meio intelectual parisiense e deplorara o comercialismo e o tom de histrionismo rasteiro que dominavam o teatro de seu país, segundo sua opinião. Para atingir o seu ideal de transformação do palco francês, Copeau julgou fundamental trazer o poeta ao teatro, descobrindo novos autores e montando os clássicos. Inaugurava-se uma nova época na cena teatral do ocidente, mas uma nova época em que uma das vertentes mais fortes de trabalho era o textocentrismo , quer dizer, a valorização absoluta do texto do dramaturgo como pauta que o encenador deveria seguir para fazer com que os atores, no tablado, expusessem uma obra de arte verdadeira e legítima. Nesse contexto, a prioridade era a construção de um repertório em que os clássicos, qualificados como tal pela sensibilidade moderna, faziam figura forte.
No Brasil do final da década de 30 e dos anos 40, o jovem movimento do teatro dos estudantes e do amadorismo reformista passou a seguir, em boa parte, esse ritmo que fora proposto por Copeau a partir de 1913, na França, com a abertura do Vieux Colombier. A agitação renovadora não se limitava ao Rio de Janeiro, então capital teatral do país e na verdade o grande centro do teatro profissional. Nenhuma outra praça poderia, então, se comparar ao Rio de Janeiro. O teatro carioca, no entanto, que começou a se estruturar como mercado de arte no século XIX, era dominado por uma estrutura teatral conservadora resistente à transformação de seus procedimentos. Trata-se de um tipo de teatro que se pode qualificar como antagônico ao teatro moderno - precisamente o teatro do primeiro ator histriônico, adepto das convenções e das hierarquias de cena, comandado pelo ponto e avesso até à simples hipótese que fosse de trabalhar com o encenador. A história registrou inúmeros fatos reais que, hoje, parecem anedotas, mas que revelam com nitidez as dimensões deste abismo.
Houve desde a resistência cega de Procópio Ferreira e Jaime Costa, primeiros atores cômicos líderes de geração, observando-se em especial as diversas tentativas de Jaime Costa de reduzir ao ridículo a nova função dos diretores, até o caso específico de Leopoldo Fróes, ator que se profissionalizou contra os interesses de sua família e que, para tanto, precisou começar a carreira em Portugal. Leopoldo Fróes , certa feita, conseguiu entrar em cena sem sequer ter lido o texto da peça que sua companhia estreava e que ele estrelava; para conseguir acompanhar o ponto, recorreu ao artifício de se fazer de gago; sua desenvoltura em cena foi de tamanha dimensão que no dia seguinte um crítico escreveu protestando contra as hesitações da companhia, que a seu ver não estava à altura do grande Leopoldo Fróes, este sim um ator seguro de sua função.
Esse velho teatro, de forte colorido português, era uma máquina acelerada de montagens e de reação contra o novo. O seu ritmo fazia com que o movimento de renovação fosse por demais circunscrito, localizado, reduzido mesmo a um movimento de estudantes e intelectuais, logo amadores. Tais condições fizeram com que o teatro carioca levasse um longo tempo para se transformar, seguindo um andamento muito lento e dependendo da formação de uma nova classe teatral, egressa dos teatros dos estudantes e amadores de classe média e afinal profissionalizada em São Paulo.
Em tais condições, a rigor, o movimento moderno teria sido iniciado em 1938 no Rio de Janeiro, teria persistido como prática amadora até 1948, pois os comediantes de Vestido de noiva eram amadores. Em 1948, surgiu no Rio de Janeiro o embrião daquela que acabou tornando-se a primeira companhia profissional brasileira de teatro moderno, o Teatro Popular de Arte, futura Companhia Maria Della Costa. Mas a empresa não conseguiu continuidade de trabalho no Rio, tão adversas eram as condições de trabalho na cena carioca para os que pretendiam um palco renovado; em 1949, ela se transferiu para São Paulo, cidade que se tornará, a partir de então, a capital do teatro moderno. O teatro do Rio de Janeiro tornou-se moderno muito lentamente, ao longo dos anos 50.
O movimento de mudança, portanto, iniciado em 1938, não estava restrito ao Rio, como já observamos. Em São Paulo , a inquietude injetada por Paschoal Carlos Magno encontrou eco, funcionou como estímulo para a expansão de um interesse local por teatro que já começara a agitar a elite paulista desde a terceira década do século XX, sob a liderança de Alfredo Mesquita. São Paulo não possuía um teatro profissional consistente; na verdade, a cidade costumava receber as produções e as companhias do Rio de Janeiro; as produções locais, quando não eram derivadas do teatro carioca, eram em sua maior parte manifestações de um teatro popularesco e um tanto caipira, cujo maior representante era Nino Nello. Havia uma demanda por teatro por parte da burguesia em ascensão e por parte da aristocracia cafeicultora, demanda em parte atendida pelos jovens amadores liderados por Alfredo Mesquita e logo diretamente contemplada pela turbulência amadora e estudantil derivada do gesto de Paschoal Carlos Magno. À diferença do Rio de Janeiro, em São Paulo existia um clima político a favor de uma nova realidade teatral.
Um outro nome se projetou como líder nesse movimento - Décio de Almeida Prado. Ao lado dele, destacou-se Lourival Gomes Machado. Primeiro eles apoiaram a iniciativa do professor George Raeders, diretor do Liceu Franco-Brasileiro, que fundara um grupo teatral de estudantes, em 1939, do qual participou a professora Cleonice Berardinelli. O apoio se deu através do grêmio da Faculdade de Filosofia, que Lourival Gomes Machado presidia. A seguir, decidiram criar um grupo de teatro na universidade. A deixa para a fundação do grupo, que recebeu o nome de Grupo Universitário de Teatro - GUT - foi a criação dos Fundos Universitários de Pesquisa pelo reitor Jorge Americano, em 1942, com a entrada do Brasil na guerra contra o Eixo, para estimular os esforços de guerra. Os espetáculos seriam financiados pelos Fundos de Pesquisa; as suas apresentações em diferentes cidades paulistas seriam acompanhadas por professores que, nos intervalos, divulgariam a idéia dos Fundos de Pesquisa e buscariam obter novos apoios financeiros.
Ainda que o grupo contasse com a figura do ponto em suas fichas técnicas, o conjunto representava a proposição de um conceito novo de teatro, associável ao teatro moderno a que Décio de Almeida Prado se referiu no texto citado, um teatro que era uma realidade forte no debate artístico europeu. O projeto primeiro da equipe - quer dizer, a proposta de seu diretor, Décio de Almeida Prado - era contribuir para a construção de um teatro nacional com a encenação de autores nacionais, clássicos e atuais, bem na linha de uma transposição do pensamento de Copeau. Era preciso, portanto, construir os clássicos , prática a que o teatro nacional até então não se dedicara.
Um texto bastante iluminador da história do teatro brasileiro, de autoria de Antônio Alcântara Machado, dá conta da dimensão do problema. Trata-se de um texto de 1932 dedicado ao ator Leopoldo Fróes, que acabara de falecer. Alcântara Machado faz um necrológio que é uma espécie de enterro crítico do ator, no seu entender bastante responsável pela indigência que, para os seus olhos, campeava no teatro brasileiro. O seu juízo rigoroso derivava da conivência que existiria entre o ator e a mediocridade do teatro brasileiro de então, entregue ao riso escancarado, às facilidades e às apelações de toda ordem. Alcântara Machado observou em seu texto que, apesar de sua excelente formação cultural, Leopoldo Fróes nunca se preocupou em tentar mudar o quadro bisonho constituído pela cena, usando a pobreza reinante para exercer o seu poder com mais facilidade e menos esforço. Para Alcântara Machado, o problema viera do século XIX, pois no Brasil surgira primeiro o ator - e um ator de excepcional talento, João Caetano - sem que tivesse surgido uma dramaturgia densa. O teatro brasileiro seria um teatro sem tradição de dramaturgia e próspero em talentos histriônico-interpretativos, propensos a cultivar esse gosto no público.
Foi a esse desafio que o teatro universitário de Décio de Almeida Prado tentou responder, ainda que não sejam conhecidos textos teóricos dessa época assinados pelo diretor para explicar as suas escolhas, em especial sua opção pela dramaturgia nacional. De todo modo, as peças montadas para a primeira temporada, em 1943, são expressivas; era um espetáculo com três peças em um ato - Auto da barca do Inferno , de Gil Vicente, Os irmãos das almas , de Martins Pena, e Pequenos serviços em casa de casal , de Mário Neme.
A escolha de Gil Vicente - que voltará à cena do GUT outras quatro vezes - é o nosso principal interesse nesta análise. De acordo com as diversas fontes disponíveis, o espetáculo provocou sensação, foi um sucesso. Como o empreendimento era apoiado pelos integrantes da revista Clima , recentemente criada, a sua repercussão extrapolou a dimensão do simples evento universitário para angariar verbas. Os cenários e figurinos foram criados por Clóvis Graciano, com toques medievais, em especial nos trajes, mas com alguns traços e elementos modernos. Afirma-se que a cena adquiriu um fascínio todo especial, graças ao jogo de luzes criado por Lourival Machado, e o impacto teria sido de tal ordem que, ao se abrirem as cortinas, mostrando o cenário, com as barcas, o anjo e o diabo, o pintor Lasar Segall, na platéia, teria aplaudido a cena com entusiasmo.
O deslumbramento tomou conta também do poeta Oswald de Andrade, que apelidara os animadores da revista Clima de chato - boys , eliminando portanto as mulheres da equipe, mas que escreveu um artigo afirmando que eles talvez tivessem achado a sua paixão vocacional, que seria o teatro, graças à "justeza grandiosa que souberam imprimir ao Auto da barca ". O tom do texto de Oswald de Andrade é celebratório, uma autêntica louvação ao grupo. Há uma única nota de restrição: a escolha do autor contemporâneo, Mário Neme, um estreante, que aos seus olhos fora uma escolha indefensável. O parecer do poeta foi taxativo, bombástico e um tanto injusto, ao menos com Martins Pena - o nome era indefensável "junto ao de Martins Pena, este justificado apenas pela tradição, com seu cheiro de barata e seu velho armário mágico". Os comentaristas da época não hesitaram em afirmar que Oswald de Andrade queria na verdade que os seus textos fossem montados pelo grupo, mas que eles não passariam na censura do Estado Novo. Hoje, é possível afirmar que havia um conceito de teatro em discussão que não poderia absorver as radicalidades de Oswald de Andrade - o GUT estava-se movendo no interior de uma concepção do teatro como identidade histórico-cultural. Em termos imediatos, tratava-se muito mais de um exercício de atualização do que de ruptura; não estava em pauta a opção por uma visão crítica do país.
Este sentido de atualização pode ser inferido a partir da análise de outros documentos. A crítica publicada no jornal O Estado de S. Paulo , por exemplo, foi amplamente favorável ao grupo, defendendo a idéia de que a equipe possuía identidade própria e se apresentara com "coesão, cuidado de direção e de atuação, equilíbrio de valores e harmonia de elementos". Ou seja, em boa parte a demonstração daquilo que o teatro moderno poderia ser como encenação , em contraposição ao teatro do primeiro ator.
A montagem seguinte, em 1945, manteve a filosofia da estréia - reuniu novamente três textos: Farsa de Inês Pereira , de Gil Vicente, à qual se fundira o pequeno texto Quem tem farelos? ou Farsa do escudeiro , do mesmo autor, e o original Amapá , de Carlos Lacerda. No programa, o diretor comentou em um rápido texto a adaptação que fizera, juntando os dois textos de Gil Vicente em um só, em virtude de sua proximidade temática e semelhança de tipos, e resumindo a trama do original vicentino. À diferença da primeira montagem de Gil Vicente, aqui o espetáculo foi apresentado no singelo programa como adaptação de Décio de Almeida Prado; foram feitos vários cortes nos dois textos, houve atualização de ortografia, palavras e expressões, com o objetivo claro de ampliar a comunicabilidade do espetáculo.
Já o texto do programa de sala dedicado a Amapá explicava as condições de redação do original - o jornalista Carlos Lacerda fora correspondente de guerra nas bases americanas implantadas no norte do Brasil - e discorria rapidamente sobre a concepção dramatúrgica do texto, reconhecendo-o como uma peça de atmosfera em que o enredo cedia lugar a um clima psicológico, "coisa rara em nosso meio". Começava a surgir aqui uma inclinação clara para um certo tipo de teatro.
Diante desse segundo espetáculo, a crítica se dividiu; houve tanto quem reconhecesse em Gil Vicente uma força teatral avassaladora, como aqueles que afirmaram que os autos vicentinos eram enfadonhos, superados e chocantes.
Décio de Almeida Prado dirigiu ainda mais dois textos de Gil Vicente, para o Teatro das Segundas-Feiras, em 1946, no Teatro Boa Vista, que os dois grupos amadores, o GTE de Alfredo Mesquita e o GUT, decidiram organizar. Dessa feita, foram escolhidos os textos Todo o mundo e ninguém e o Auto de Mofina Mendes , com a autoria plenamente atribuída a Gil Vicente, sem que haja qualquer menção de adaptação dos textos. Neste último, sob pseudônimo, atuaram como dois pastores Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, que, apesar de suas disponibilidades para o teatro e para o grupo, não tiveram coragem bastante para subir ao palco com seus próprios nomes familiares - era uma outra época, e pessoas de família até podiam envolver-se com o palco, desde que fossem amadores e figurassem em funções nobres, tais como diretores, autores, críticos. Tornar-se ator era uma outra questão: era preciso esconder-se sob um nome artístico.
Em resumo, essa foi a experiência moderna do autor Gil Vicente no teatro moderno brasileiro. O próprio grupo não teria vida por muito mais tempo. O último espetáculo apresentado pela equipe registrou uma mudança considerável no conceito de teatro moderno trabalhado pelo conjunto - a peça escolhida foi O baile dos ladrões , de Jean Anouilh, e não mais um exemplar de autor nacional. Teria sido sugerida a Décio de Almeida Prado por Waldemar Wey em virtude de seu humor paródico, que guardaria semelhança com as escolhas anteriores. A montagem de 1948 fez parte do processo de inauguração de um novo edifício teatral, o Teatro Brasileiro de Comédia - o TBC construído para ser a casa dos amadores, mas que logo passaria a abrigar, no ano seguinte, uma companhia profissional estável e contribuiria para mudar o perfil do teatro paulista e do teatro brasileiro. Entrava em cena um outro cálculo, o cálculo da atualização estética junto à dramaturgia moderna francesa e a inclinação ao psicológico, sinalizando o fim de uma época a que poderíamos chamar de ciclo de proposição do moderno, que se iniciara em 1938. A partir de 1947, Décio de Almeida Prado aceitara a função de crítico de teatro de O Estado de S. Paulo e abriria mão de seguir carreira como diretor.
O teatro moderno brasileiro tomaria outra feição, diferente da que foi perseguida nesse primeiro momento amador - apesar das iniciativas do GUT, Gil Vicente não se tornou um clássico para o nosso palco; o teatro moderno brasileiro abandonou o projeto de construção de clássicos nacionais, abdicou da idéia de construir um repertório brasileiro. Assim, Gil Vicente não foi celebrado enquanto tal pela necessidade de produzir referências textuais densas, que fora por um curto tempo um valor prioritário do teatro moderno aqui professado. Na verdade, Gil Vicente foi banido da aventura moderna, ficou fora do repertório dos modernos. Quando muito, tornou-se um autor caro às lides escolares e amadoras. Expulso da história de nosso palco moderno, ele se tornou um autor de papel, alijado da cena.
Já se fizeram paralelos entre o teatro narrativo, simbólico, de tipos sociais que seria característico de Gil Vicente e o teatro brechtiano - o seu principal artífice foi o estudioso António José Saraiva. Já se comentou a oposição visceral existente entre o teatro vicentino e os valores do neoclassicismo, imediatamente posteriores, que fizeram com que muitos observadores não hesitassem em chamar Gil Vicente de Shakespeare português. Vale tentar pensar por quê, contando com iniciativas como a do GUT, o autor não se popularizou em nosso país; em que medida a forte influência francesa que marcou nossa cena desde o século XIX, até mesmo via Portugal, e que só começou a se diluir por volta dos anos 60 no século XX, é parte importante desse processo? Em que medida o texto vicentino, português, criava algum desconforto para os atores modernos que pretenderam exatamente liquidar os últimos vestígios da influência portuguesa que dominara a nossa cena na primeira metade do século XX, já que o nosso teatro de convenções tinha considerável extração lisboeta, até em sua prosódia?
Segundo depoimento da pesquisadora Maria Thereza Vargas, uma parte importante do sucesso das montagens de Gil Vicente realizadas pelo GUT foi fruto da presença em cena de dois atores bastante intensos em algumas montagens - a atriz Cacilda Becker, que defendeu os papéis de Brízida Vaz e de Inês Pereira, que não era universitária e começava a tentar pensar em sua profissionalização, e o ator Caio Caiuby (Aparício, Diabo), que era um estudante universitário dotado de notável talento para o palco, mas que foi impedido por sua família de seguir a carreira da cena. Como já se observou, não era fácil enveredar pela carreira de ator quando se pertencia a uma família de bem em São Paulo. Maria Thereza Vargas assistiu a todas as montagens realizadas; a seu ver, um dos grandes problemas existentes para a popularização do autor em nosso teatro é a dificuldade do texto histórico, quebra-língua para a maioria dos atores.
Não há dúvida de que essa foi a razão principal que levou Décio de Almeida Prado a optar pela adaptação dos originais, procedimento que aproximaria o autor do idioma de nosso tempo e permitiria maior clareza de exposição da trama. Não adiantou - o teatro moderno brasileiro enveredou pelo realismo, pela peça dialógica convencional, pelos coloridos psicológicos. Havia um afã de luta pelo texto, contra os excessos cometidos pelos primeiros atores, mas a defesa do texto não chegou a viabilizar a construção da idéia de clássico com abrangência suficiente para abarcar a produção vicentina. O Teatro Brasileiro de Comédia montou Gonçalves Dias, mas nunca se aventurou nas tramas quinhentistas. Fala-se inclusive - ainda que este possa ser um ponto de vista bastante controvertido - em uma resistência contra o épico no teatro brasileiro dos anos 50, que teria sido fortemente derivada do pensamento teatral de Décio de Almeida Prado, interpretação que tem sido sustentada em especial pela professora Iná Camargo Costa 3 .
É curioso destacar que Gil Vicente acabou sendo excluído da história do teatro brasileiro pelo próprio Décio de Almeida Prado. Após se afastar da crítica, em 1968, Décio de Almeida Prado se dedicou com maior intensidade ao ensino e à pesquisa. A partir de então, escreveu alguns textos basilares de nossa historiografia. Em todos eles, no entanto, Gil Vicente é personalidade excluída, autor que não se considera. O historiador procede como se a sua antiga pulsação a favor da construção da idéia de clássicos nacionais não tivesse mais significado, tivesse sido uma quimera de estudante. Quer dizer, além de ser expulso da cena, Gil Vicente foi também banido da história.
Vale ficar com uma última pergunta, à guisa de provocação: em que medida o poder do ator, tão forte no Brasil, contribuiu para fazer com que a associação entre Gil Vicente e o teatro moderno brasileiro não possa ser outra coisa a não ser um paradoxo? Teria sido o poder do ator o instrumento que teria determinado a limitação da noção de texto clássico no teatro brasileiro?
Notas de Rodapé
1 Décio de Almeida de Prado, O teatro brasileiro moderno , São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 40.
2 Paul Norman, "L'apport de Copeau", in: Aux sources de la verité au théâtre moderne - Actes du Colloque de London (Canada), 1972, Paris, Lettres Modernes, 1974.
3 A hora do teatro épico no Brasil , São Paulo, Paz e Terra, 1996.
Bibliografia
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FARIA, João Roberto. (org.) Décio de Almeida Prado : um homem de teatro. São Paulo: FAPESP/EDUSP, 1997.
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---. Programa de sala, Teatro das Segundas-Feiras, Teatro Boa Vista. Auto da barca do Inferno , de Gil Vicente, Mofina Mendes , de Gil Vicente, Os irmãos das almas , de Martins Pena. São Paulo, 1946.
---. Programa de sala, Teatro Municipal. Farsa de Inês Pereira e do escudeiro , de Gil Vicente, adaptação de Décio de Almeida Prado, Amapá , de Carlos Lacerda. São Paulo: 1945.
---. Programa de sala. Farsa de Inês Pereira e do escudeiro . São Paulo, 1946.
L eite , Miriam Lifchitz Moreira. 50 anos do Grupo Universitário de Teatro. Revista da USP , 18. São Paulo.
MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 2000.
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SOCIEDADE DOS ARTISTAS AMADORES DE SÃO PAULO e GRUPO UNIVERSITÁRIO DE TEATRO. Programa de sala, Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Todo o mundo ; Auto da barca do Inferno , de Gil Vicente. Programa especial da Semana Santa, São Paulo, 1946.
VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente . Introdução e estudo crítico pela professora Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Grifo Edições/ Instituto Nacional do Livro, 1971.
---. Farsa de Inês Pereira e do escudeiro . Adaptação de Décio de Almeida Prado. Exemplar copiado do original datilografado.