Cleise Mendes
UFBA
Em torno do filme A vida é bela , quando ainda apenas indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, reacendeu-se uma interpelação a que, de tempos em tempos, os comediógrafos são chamados a responder. Do ponto de vista ético, quais os limites da ação cômica? Do que é que não se pode rir ? Ao fazer comédia com o tema do holocausto, Roberto Benigni colocou-se sob o fogo cruzado de críticas que, pró ou contra, colocavam no centro do debate a responsabilidade do comediógrafo.
Para refletir sobre isso, vamos começar admitindo que a comédia seja menos a representação de seres e situações irrisórias, irrelevantes, "baixas", e mais o espaço no qual atua uma força de deslocamento : a produção de uma incongruência com vocação descendente, como um desejo de "puxar para baixo" os seus alvos. Podemos então ser tentados a indagar: para quê? com que objetivo? Quando a obra dramática "fala a sério", em geral produzem-se a seu respeito todo tipo de interpretações filosófico-metafísicas, hermenêutico-religiosas, psicossociológicas e até psicopatológicas, a depender do olhar interessado; mas, ao tratar da comédia, uma vinculação parece impor-se, preferencialmente: o aspecto ético, a compromisso do comediógrafo no trato com os mitos e crenças de seu público, o efeito de suas criações sobre o cotidiano de sua gente, seu empenho como sujeito social, os ecos de sua iconoclastia ou de seu "assujeitamento" a um certo quadro de valores, num dado espaço e tempo.
Nesse filme, Benigni faz a aposta de comover o espectador com a perspectiva de que a vida pode ser bela mesmo nas mais terríveis circunstâncias. E lança mão de várias estratégias cômicas bem conhecidas. Se "bela" aí é sinônimo de livre e divertida, de situação armada como um jogo em que as regras são reversíveis , Benigni faz da experiência no campo de concentração o modelo daquilo que Bergson vê na construção da comédia: um "brinquedo que imita a vida". Em sua liberdade de brincar, que é também uma liberdade "de brinquedo", é claro, essa imitação volta as costas ao relato histórico dos sobreviventes, a "aquilo que aconteceu", para apostar no que "poderia ter acontecido" sob a óptica do princípio do prazer e da vitória do amor e do bom humor. Ou, para usar a feliz expressão de Charles Mauron, trata-se de uma assumida e auto-suficiente "fantasia de triunfo sobre a morte".
E é isso exatamente que desperta a indignação de uma parte considerável dos críticos mais inteligentes, por entenderem que, no contexto real do "mal absoluto", nenhuma vontade cômica de construir suas próprias regras pode triunfar.
Maria Rita Kehl afirma que, ao enfocar o Holocausto pela via cômica, o filme teria ferido um tabu, pois "não se faz comédia sobre situação de tamanha gravidade. Está vetado a qualquer um de nós, ao preço de nossa própria humanidade, nem sequer cogitarmos de rir diante da evocação do maior horror que a civilização ocidental, tal como a conhecemos ainda hoje, foi capaz de produzir". 1 Tal advertência aponta o conflito entre visão cômica e crítica ética: o mal-estar diante de uma fantasia de triunfo nas condições mais improváveis.
Kehl refere-se, com visível simpatia, ao tipo cômico desenvolvido por Benigni em filmes anteriores: nesse homem magro e esquisito temos a figura de um "perdedor" em confronto com os padrões do cinema hollywoodiano. Ele tem a esperteza ingênua daqueles que, perdedores há tanto tempo, nada mais têm a perder, e, por isso mesmo, terminam por "se dar bem" ao fazer suas próprias regras e assim burlar a ordem opressiva. Diz Kehl:
O herói cômico é aquele que não se deixa enganar a respeito da castração; ele se move pelas brechas da ordem fálica, produzindo sentido a partir dos vazios criados pelo esquema defensivo/repressivo dos que estão comprometidos em sustentar que o falo existe, e está do lado deles. O herói cômico sempre soube que ele está tão nu quanto o rei.
Mas esse truque cômico esbarraria em "um sério limite ético ao ser transposto para o contexto do mal absoluto que 'A Vida é Bela' tenta relativizar". O problema maior, diz Kehl, não estaria na quebra da verossimilhança - aliás, velho atributo cômico. Não, diz a autora, o maior problema não é esse, e desvia o foco de sua restrição para outro aspecto da construção do roteiro, interpretando o "otimismo bem-intencionado" do filme como "sintoma do impasse criado pela cultura do individualismo". O filme acabaria fazendo com que nós também participássemos de um jogo meio macabro: emocionados pelas artimanhas amorosas de um pai para impedir que o filho perceba o horror à sua volta, torcemos para que esse pequeno núcleo familiar seja salvo, e isso nos faz esquecer os milhões de prisioneiros mortos, transformados em figuras distantes, massa amorfa, elementos cenográficos.
Ora, o tratamento dado ao roteiro do filme visa precisamente a esse tipo de identificação seletiva , que segue uma dramaturgia centrada em algumas personagens individualizadas e rodeadas por tipos neutros. A dramaturgia do indivíduo atravessa sua crise, desde o início do século XX, pressionada pelo desejo de abrir o foco cênico para conter mais largas parcelas da História, em vez das relações interpessoais de duas ou três personagens. Mas não me lembro de que essa questão tenha sido amiúde levantada a respeito dos milhares de filmes, séries de TV e romances que trataram a temática do nazismo a sério , e empregando o mesmo tipo de caracterização. A questão, parece, não está aí.
O filme aposta na mistura de distância divertida e calorosa empatia que a comédia romântica bem sabe produzir. Isso faz parte das estratégias catárticas desse tipo de dramaturgia. Na elaboração do roteiro, a personagem de Guido é marcada, desde o início , por essa vontade de fazer valer a sua fantasia sobre as limitações da realidade, isso muito antes de que ele, seu tio e o filho Josué sejam presos elevados a um campo de extermínio. Guido conhece sua amada Dora quando esta literalmente lhe cai nos braços , numa cena ao mesmo tempo farsesca e comovente, duplicidade de tom que será mantida daí por diante. Toda a corte amorosa que ele faz a sua principessa tem algo de uma arlequinada, de um conto de fadas encenado num picadeiro de circo. Nada mais coerente que esse palhaço sentimental e habilidoso continue a exercitar sua prestidigitação no campo de prisioneiros, com melhores e mais fortes motivos.
O que realmente incomoda em qualquer ficção que submeta à ótica da comédia um tema de tamanha gravidade é o rebaixamento cômico dos símbolos de opressão. Os soldados nazistas, tratados como peças manipuláveis do jogo encenado por Guido para seu filho, são degradados aos nossos olhos, perdendo sua aura tenebrosa e... sublime. Antes que se estranhe o último termo, lembro que o sublime está tradicionalmente colocado no extremo oposto ao do registro cômico, e justo em razão de sua dependência das representações que engrandecem, que magnificam qualquer objeto, mas especialmente as imagens do horror. Edmund Burke, examinando a origem de nossas idéias acerca do belo e do sublime, insiste nesse ponto inquietante. A experiência do sublime exige assombro, espanto, estupefação, pois sublime é "tudo que é terrível à visão". Sendo o terror "o princípio primordial do sublime", a visão do poder é sublime na medida em que infunde terror. Toda forma de grandiosidade, de magnificência (mesmo a da presença divina) cria o efeito sublime pelo medo que provoca, por sua "terrível majestade". Quanto maior o poder, maior o terror, maior o sublime. 2
Eis aí, parece, a curiosa questão simultaneamente ética e estética da perspectiva cômica e seu efeito catártico. O testemunho histórico busca, com toda razão, em nada minimizar a realidade do horror vivenciado por milhões de seres humanos. O olhar cômico, ao rebaixar os carrascos, retirando-lhes a imagem terrífica, terminaria por degradar também as vítimas, pois ambos os papéis resultariam relativizados pelas artimanhas lúdicas de uma fantasia triunfal. Essa é a razão pela qual os filmes, peças ou romances que falam "a sério" sobre o horror nazista ou qualquer outra experiência limite de dor e violência, mesmo os mais simplórios, parciais e oportunistas, não motivam reações semelhantes de indignação, já que mantêm a amplitude e a altura, a magnificência, enfim, da opressão e do medo.
Através do caso particular desse filme, busquei apenas a disposição dos dados de um dilema que afeta diretamente o sucesso ou fracasso da catarse cômica. De nada vale, por simpatia com a visão cômica, exagerar no sentido oposto ao de Kehl e dizer, como José Arthur Gianotti, que, pela óptica da farsa, o diretor "elabora a denúncia mais devastadora do crime mais brutal que o século mais civilizado da história foi capaz de cometer". 3 Não, não há denúncia, a essa altura das produções e reproduções desse fato histórico, e muito menos "devastadora" no filme de Benigni, e sim uma bem realizada fantasia cômico-romântica de liberdade individual. A entrada do espectador no jogo proposto depende aí sobretudo de uma licença ética para aceitar a inverossimilhança do tratamento e para aderir à crença, constitutiva de toda fantasia cômica, de que, sim, pode-se jogar com tudo, lidar jocosamente mesmo com as imagens do horror e da morte.
Em um sem-número de comédias, de As rãs até os folhetos de cordel do Nordeste brasileiro, há uma alegre descida aos infernos, entre pancadaria, flatos, fezes, e toda sorte de piadas obscenas, seja com Dionisos adentrando a morada sombria de Plutão, seja com o catolicíssimo Lampião enfrentando as artimanhas do Cão "das Profunda". Desde Anchieta vimos o desejo de ridicularizar os demônios, de mostrá-los paradoxalmente como fracos e terríveis , coisa para se ter medo sempre, claro, mas que pode facilmente ser vencida pelo bom cristão. Bakhtin, como se sabe, valoriza essa carnavalização das profundezas amedrontadoras como o impulso de constante renascimento e regeneração do imaginário popular, e Charles Mauron, por outras vias, vem nos falar do cômico como reversão de mitos angustiantes.
Pelas restrições a tantos filmes e peças, vê-se bem que margens estreitas estão traçadas para a crítica ético-social da comédia: se o espetáculo teatral ou filme cômico trata de trivialidades, se é um besteirol, causa "horror" ao crítico exigente; se, ao contrário, fala do horror, brincando com uma experiência-limite, ofende aos espíritos moralmente sensíveis. Pode-se objetar que um fato historicamente documentado em sua terribilidade, como o nazismo, entre muitos outros , é bem diferente de um medo mítico às profundezas infernais. Mas isso não conta para a economia catártica, salvo se as imagens do horror ativam algum ponto sensível na memória do espectador, razão por que não se pode considerar o fenômeno catártico senão conformado à realidade de cada público. Para o espectador minimamente distanciado é o mesmo o desejo de vencer os carrascos históricos ou o gigante Adamastor, seja pelo enfrentamento heróico ou pelas armas da burla. Sabem disso muitos roteiristas norte-americanos, empenhados em providenciar inimigos entre alienígenas de todo tipo, dos marcianos aos iraquianos. Se estes últimos são feios, selvagens e algo ridículos, possuem no entanto "armas terríveis" que é preciso combater e eliminar, e está armada a equação básica de uma angústia a ser superada, e revertida em triunfo.
Unidos e contrapostos, em simbiose de equilíbrio dinâmico, carrascos e vítimas não podem ser exaltados ou minimizados impunemente. Tudo isso tem um preço, e é esse o preço pago pela comédia, ao desconfiar de uns e outros, como de resto de tudo. O que importa, na relação que tento estabelecer, é o vínculo entre o modo de ação do cômico e os juízos éticos, pois estes - relativos, movediços, disponíveis - influem na experiência catártica tanto quanto as teimosas e irremovíveis fantasias inconscientes. Disse um ator do programa televisivo Casseta&Planeta, sobre os limites de seu público: "Podemos fazer piada com o presidente da República, mas temos que tomar cuidado com Jesus Cristo." 4 A depender da verdade partilhada pela maioria dos espectadores - seja o verdadeiro histórico, "o que realmente aconteceu", ou o verdadeiro mítico, "o que não se pode tocar" -, haverá áreas inteiras vedadas à intervenção cômica. E aqui incide o humor cáustico de Emil Cioran:
O diabo parece bem pálido ao lado daquele que dispõe de uma verdade, de sua verdade . Nós somos injustos para com os Neros, os Tibérios: eles não inventaram absolutamente o conceito de herético : eles não foram senão sonhadores degenerados divertindo-se com massacres. Os verdadeiros criminosos são aqueles que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, que distinguem entre o fiel e o cismático. Logo que alguém se recusa a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... 5
O escritor israelense Amós Oz, discutindo as perspectivas de uma política de tolerância para povos cuja memória inclui Hiroshima e Auschwitz, aposta na face libertária da ética do riso, no bom humor como um "antídoto ao fanatismo", pois ao descobrirmos "que somos todos mais ou menos imperfeitos, mais ou menos tolos, mais ou menos engraçados, também seremos capazes de sentir uma paixão tragicômica uns pelos outros". Pois há uma incompatibilidade entre o humor e a adesão irracional às verdades unívocas: "Nunca vi um fanático bem-humorado, nem alguém bem-humorado se tornar fanático." 6
Os estudos sobre o riso conduzidos na área das ciências sociais tendem a valorizar a sua face libertária, contestatória, sua função de fazer uma espécie de leitura crítica dos mecanismos de controle. Mas seria um exercício de ingenuidade acreditar na ação cômica como rebeldia generalizada. Qualquer espectador sabe o quanto, em programas de TV , em peças e filmes , o cômico pode ser mero pretexto para a reiteração de clichês autoritários, para a manutenção de preconceitos e obscurantismos. Pode-se passar facilmente da idéia excitante de uma transgressão do ritual à monotonia de um ritual de transgressão; o teatro cômico não deixa de ser um espaço culturalmente permitido para a "transgressão" dos costumes ( em vez da "correção", como pensou Bergson). Tudo dependerá sempre do modo como comediógrafos, comediantes e espectadores fazem uso desse espaço.
Toda essa ressalva à propalada "subversão pelo riso" parece-me importante para atingir aquele ponto em que, nas produções cômicas, cruzam-se o ético, o estético e o catártico. O único "objetivo" que se pode ver na força cômica, como força, é o de submeter qualquer tipo de alvo aos seus poderes de reversibilidade, deslocamento, contraste, rebaixamento, desestabilização. Como disse no início, o que pode ser visto como subversivo ou libertário na comédia não é "aquilo que se representa", não é qualquer crítica ou mensagem, não é um veredicto ou opinião, mas sim um certo modo de ação , um método.
Esse método consiste em duvidar sistematicamente, ritualisticamente, do real e da verdade. A tragédia mais fantasiosa é mais crível para o espectador que a comédia mais realista. Se o cômico ensina alguma coisa, é que se pode sempre duvidar de que as coisas "tenham que ser assim", o que explica o fato simples e luminoso de que não há comédia inevitável. Esse é o trunfo que o comediógrafo rouba à onipotência mágica da infância. O sério crê piamente que a realidade é o que ele pensa que ela seja, e que a verdade pode ser não só estabelecida como defendida . O cômico não tem pejo em apresentar o mais profundo conceito, o mais catastrófico evento, o mais doloroso sentimento "com as pernas para o ar".
Talvez por intuir na ação cômica essa negação sistemática do real e da verdade, essa recusa tanto da fatalidade quanto da devoção, a avaliação ético-social da comédia sempre pareceu oscilar (embora por vezes invocando razões estéticas) entre o desdém e a proibição, sendo o ofício do comediógrafo ora inócuo, ora pernicioso. Diante disso, os comediógrafos muitas vezes advogaram algum desígnio superior para poder fazer rir, como que estabelecendo um pacto: "Bem, eu lhes darei diversão, prometo diverti-los desde que vocês não me tomem por mero piadista, mas por um filósofo, psicólogo ou sociólogo de um tipo muito especial", ou, como queria Bergson, "um moralista disfarçado em cientista". Essa atitude percorre toda a tradição ocidental da comédia; essa era, como se sabe, uma das funções da parábase , na Comédia antiga, momento em que se suspendia a ação e o autor fazia exortações, críticas e advertências ao espectador sobre assuntos de interesse público. Hoje, quando a comédia já não reúne todas as funções de debate político, literário e filosófico do teatro antigo, pode-se dizer que a autojustificação já é uma "pose" ou "jogo de cena" do autor, mas isso apenas significa que o gesto se repetiu com tal freqüência a ponto de se tornar um topos do discurso cômico: o momento em que o comediógrafo se desculpa.
O receio ao método cômico, ao seu olhar oblíquo, à sua desconfiança sistemática, inspirou Umberto Eco, em O nome da rosa , na criação do cego Jorge, guardião da biblioteca de um mosteiro medieval que esconde o livro II da Poética de Aristóteles, e é capaz de matar e morrer para impedir a difusão dessa obra. O que o obsessivo mas coerente monge teme, acima de tudo, é a validação filosófica do "incentivo à dúvida" contido no cômico. O seu excesso de zelo acaba produzindo uma certa teoria do riso pela ótica de um cristão fanático. Diz Jorge, o guardião da fé:
O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde então ilustres, com que legitimar a inversão. 7
O aldeão pobre e tolo corresponde a um dos quatro tipos de uma larga tradição cômica: o camponês ou rústico, que se opõe diretamente ao bufão, mas também ao fanfarrão e ao ironista. Creio que para nós o melhor nome para o rústico seria parvo , no sentido original de pequeno, limitado, mas também na acepção extensiva de ignorante, tolo. Nós o encontramos em estado quase puro no Auto da barca do Inferno , de Gil Vicente. Ele é um simplório, uma "pomba sem fel". O Anjo permite que ele entre na barca do céu sem hesitação: o seu lugar no reino da bem-aventurança já está garantido. (Este lugar corresponde ao da Criança no Auto da barca do Purgatório , único ser aí cuja salvação também está assegurada.) Quando o Anjo pergunta: "Quem és tu?", o Parvo responde: "Não sou ninguém." 8 Sendo um tolo, o Parvo sabe tudo que há para saber: não é ninguém e é daí mesmo que lhe virá a salvação. Esse parece ser o murmúrio que o comediógrafo capta e redistribui: a voz de todo o mundo e ninguém. Pela comédia, ela se faz ouvir em seus tons e meios-tons de parvoíce e esperteza, tanto angélicos quanto demoníacos.
"Meu nome é Ninguém." A primeira gargalhada da literatura ocidental parece ter sido a de Ulisses, ao escapar de ser devorado pelo ciclope Polifemo, graças à proteção de um jogo de palavras. No canto IX da Odisséia , Ulisses conta que seu coração se pôs a rir, quando o ciclope, com o olho vazado e torturado por terríveis dores, pede inutilmente ajuda a seus irmãos, chamando seu agressor pelo nome que este lhe dera: Ninguém. O herói se enche de júbilo por vencer o gigante monstruoso, o flagelo antropófago usando jocosamente o próprio nome, Odisseu - cuja raiz, Udeis , significa ninguém , e é isso o que o ciclope grita, desesperado: Ninguém me feriu! 9 [Como ainda precisava inventar um meio de escapar da caverna, Ulisses conta que " tramava todos os enganos e ardis, como quem tem a vida em perigo ". 10 ]
Essa passagem em especial, entre outras da narrativa homérica, faz de Ulisses uma espécie de matriz do herói cômico, daquele que tenta esgueirar-se "pelas brechas da ordem fálica", sem ilusões sobre sua nudez e fraqueza, apostando na astúcia para garantir a própria sobrevivência. Dos dois principais modelos de herói criados por Homero, Ulisses é aquele que aposta na engenhosidade e malícia bem humanas, nos golpes imprevisíveis, na dança das palavras, nos disfarces e artimanhas, enquanto Aquiles é a imagem da virilidade, da força, da fúria e violência associadas aos ideais guerreiros. Ulisses não luta pela fama ou pela glória, todos os seus poderes de burla e dissimulação estão a serviço de "baixo" e prosaico objetivo: sobreviver e voltar ao lar conjugal, para lá envelhecer tranqüilamente.
Ulisses não é, como Aquiles, um monumento de força com um sensível ponto fraco, um calcanhar fatal. Ele é inteiramente fraco para os padrões heróicos, e, ao mesmo tempo, quase impossível de derrotar, pois ele escapa, esgueira-se, transmuta-se. Outra passagem cômica da Odisséia é quando Polifemo lembra-se da profecia segundo a qual ele seria ferido por um tal Odisseu. "Eu, porém, sempre imaginei que viria aqui algum varão alto e belo, revestido de grande robustez; ao invés, quem me cegou o olho foi um baixote, ordinário e fraco, que me subjugou pelo vinho." 11
Pelo método cômico e suas estratégias de dilapidação, a ação quase nunca é frontal, raramente se expressa por um confronto declarado. Daí a diferença entre um pobre xingamento e uma sátira inventiva e engenhosa. A maior dificuldade encontrada pelas análises do cômico que operam o levantamento de características mais ou menos constantes - desequilíbrio, degradação, contraste inesperado, etc. - é a de perceber que esses traços podem reaparecer em obras que "falam a sério" sobre seus temas. Os procedimentos isolados só podem servir à comédia na condição de aceitarem seu método - que é também uma ética muito particular - de "puxar o tapete" a qualquer certeza.
Não deixa de ter razão o bibliotecário Jorge: quando olhado de perto, não é nada reconfortante o modo cômico de agir, inimigo que é não apenas do medo, mas de todo mecanismo de controle, de garantia de estabilidade. Quem pode - ao contrário - amar as turbulências cômicas? O que tem pouco ou nada a perder, lançado em alto mar, com sua "pequena razão" por si e os deuses contra, já sem navio, túnica ou sandália, aquele para quem a salvação pode estar na próxima onda, na "virada" da sorte. Ulisses. Ulisses tem a astúcia de "todo o mundo e ninguém", aquela esperteza que Brecht admira nos pequenos-diabos, na vendedora de peixe que rouba no peso, e mesmo no sábio Galileu que diz não respeitar alguém que não tem cabeça para encher a própria barriga.
Mas talvez a razão prática, herdada de Ulisses, não seja a única força em ação na comédia. Os estratagemas da comicidade não funcionariam sem o trânsito, o fluxo contínuo, a energia mercurial. Para sermos justos com a ética da comédia, nem tudo nela é libertação do medo, gargalhada triunfal, vitória sobre a angústia. É preciso considerar um outro lado ambíguo, sinuoso, deslizante. Se Ulisses é o proto-herói cômico, a figura na qual a imaginação ocidental cifra a constituição desse sujeito que diz sim à vida pequena e prosaica, há também a imagem arquetípica de uma energia que abre caminhos, faz ligações, produz as "sinapses" entre os elementos da matriz cômica. Hermes, o mensageiro intrigante, pequeno deus de viajantes, comerciantes e ladrões, dos pequenos favores e pequenas maldades, na mitologia afro-brasileira é associado ao turbulento Exu.
Os diferentes sistemas míticos nos ensinam o modo de ação dessa força. Hermes-Mercúrio-Exu é o mensageiro de quaisquer deuses, o servidor de muitos senhores. Ele sempre tem fome, e precisa ser alimentado, como os parasitas de Plauto, para que os caminhos do mundo não se fechem. Sua expressão dramática mais visível são os enxames de criados da comédia clássica, sempre em movimento, indo e vindo, esses funcionários da dramaturgia cômica, intrigando, tecendo e destecendo tramas, "pregando peças" em proveito dos jovens enamorados e de si mesmos, enquanto os patrões pensam que mantêm o controle, mas tudo que podem fazer é distribuir pancadas, antes de sucumbirem ao embuste final. Hermes, ele próprio um deus-funcionário, rege a atividade do comediógrafo: ele faz circular, tira do lugar, coloca em exposição giratória, numa vitrine profana e burlesca, todos os valores-imagens. Aquilo que é visto primeiro a sério, como notícia - o desvio de verbas, a briga doméstica do prefeito com a mulher, a ovelha clonada - retorna, gira e se espalha como comentário, glosa, e abre caminho para a heterodoxia - a nuvem de opiniões, o eco das vozes, o zumbir das falas divergentes.
O método cômico de introduzir fraturas e divisões em seus objetos pode tornar-se apenas um ritual que reafirma nossas crenças, mantendo uma margem segura para "negociar" a fácil adesão do riso; mas esse modo de ação exige no mínimo uma atitude de flexibilidade e tolerância para que o observador aceite ver determinados valores e comportamentos colocados em jogo, em seu caráter efêmero, precário, contingente. O resultado desse tratamento pode ser libertário ou repressivo, desejo de integração ou exclusão sarcástica; nada impede que a atividade do comediógrafo, como a de qualquer outro artista, tenha fins morais, sejam eles quais forem, que ele deseje, mais ou menos sinceramente ou mais ou menos conscientemente, "consertar" a sociedade em que vive, punindo seus "desvios", sempre segundo seu próprio padrão de julgamento, é claro. A força cômica - deslocamento, reversibilidade, incongruência, etc. - encontra-se à sua disposição, seja qual for a direção em que será exercida.
Daí que teremos, desse ponto de vista, uma galeria de comediógrafos, do mais conservador ao mais anárquico. Teremos o comediógrafo que todos os contemporâneos gostariam de "envenenar" (como na biografia de Molière inventada por Rubem Fonseca), fazendo-o provar um pouco da bílis corrosiva que suas facécias destilaram no corpo social. Mas teremos também o comediógrafo de boulevard , bem-amado por uma larga parcela do público, que reendossa a cada domingo a exibição dos parvos, bufões e fanfarrões já reconhecidos ad nauseam como imagem negativa dos valores partilhados pela média do público ridente.
A dramaturgia cômica do século XX acostumou-nos a um tipo de comediógrafo que "corre ao lado" (faz paroidía ) das certezas e, por conseguinte, também dos desvios. Ele já não cria suas personagens como exceçõe s a uma boa e justa regra social, já não destaca alguns pícaros ou tolos que se colocam à margem da sociedade sensata. Ele inquieta seu público, apresentando uma imagem generalizada da bufonaria e da estupidez. O ridículo que nos apresenta não é mais um apêndice do saudável corpo social, mas um vírus disseminado por todo seu organismo. Esse tratamento cômico-derrisório está presente, entre nós, talvez desde O rei da vela.
Um filme como A vida é bela orienta-se pela ética da comédia, justamente ao não fazer qualquer "denúncia" repetitiva do Holocausto, e sim usar as estratégias lúdico-ulissianas da desconfiança, da artimanha e do deboche para revelar a obtusidade infantil, a lógica "absoluta" presente em todos os fanatismos. Quando Josué pergunta por que na porta de certa loja está escrito "proibida a entrada de cães e de judeus", o pai-palhaço Guido responde que as pessoas são assim, não gostam de certas coisas, e pronto. Você gosta de aranhas? É claro que não. Pois eu não gosto de... visigodos. Então, que tal escrevermos em nossa porta: "proibida a entrada de aranhas e visigodos"? Como se vê, o jogo começou bem antes do confinamento e da ameaça de extermínio. E o jogo se chama: vamos desconfiar de tudo isso, vamos vestir nossa carapuça de pícaro, e vesti-la também nos carrascos. O recurso absurdo ao termo distante - visigodos - faz o espectador perceber a mesma arbitrariedade em odiar borboletas e japoneses, pavões e argentinos.
Dirá, no entanto, o espectador, também esperto e desconfiado: sim, mas é preciso que esse ódio comande um exército para que possa exterminar milhões de aranhas e visigodos. Mas então ele já se terá deslocado para a perspectiva do real e da verdade, interpelando outros jogos que ultrapassam os poderes da comédia.
Notas de Rodapé
1 Maria Rita Kehl, "Um jogo macabro", Mais!, Folha de S. Paulo , 07 de março de 1999, p.5-9.
2 "Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as idéias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime ; isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz." Edmund Burke, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do belo e do sublime , Campinas, Papirus, 1993, p. 48-66.
3 José Arthur Gianotti, "Regras de vida e morte", Mais!, Folha de S. Paulo , 07 de março de 1999, p. 5-9.
4 Casseta & Planeta, "É pura bobagem", Revista Isto É , n. 1623, Editora Abril, 3 de novembro de 2000, entrevista.
5 Emil M. Cioran, "Généalogie du fanatisme", in: Fernando Arrabal, Le Panique, Paris, Union Générale d'Éditions, 1973, p. 184.
6 Amós Oz, "Descobri a cura do fanatismo" e "A literatura não é profecia", Mais! Folha de S. Paulo , 10 de janeiro de 1999, p. 5- 4 a 5-6.
7 Umberto Eco, O nome da rosa , Rio de Janeiro, Record, 1986, p. 531-534.
8 Gil Vicente, O velho da horta/ Auto da barca do Inferno/ A farsa de Inês Pereira , introdução e estabelecimento do texto, Segismundo Spina, São Paulo, Brasiliense, 1965, p. 51-52.
9 "Ciclope, perguntaste meu glorioso nome; eu vou dizer-to; [...] Meu nome é Ninguém. Chamam-me Ninguém minha mãe, meu pai e todos os meus companheiros." Homero, Odisséia , tradução direta do grego, introdução e notas de Jaime Bruna, São Paulo, Cultrix, s.d., p. 108.
10 Homero, op. cit., p. 109.
11 Homero, op. cit, p. 111.