Gil Vicente em cena: 1998-2002

As radicais experiências do teatro de Oswald de Andrade: entre o estético e o ideológico

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio/ CNPq
Cátedra Padre António Vieira

Motivado pelo "espantoso afresco Guernica", de Picasso, exposto no Pavilhão da Espanha, inaugurado em 12 de julho de 1936, na Exposição de Paris, "obra significativa, sob o aspecto que assume de combate ao fascismo", Oswald de Andrade toma posição "em defesa da expansão da cultura humana, ameaçada pelo fascismo no mundo". Assim, expressa ele na revista Problemas , em 1937, quando escreve, especialmente para esse periódico, uma pequena cena teatral, na verdade uma minifarsa, que põe a nu o discurso fascistóide que ganhava corpo no Brasil, através do Integralismo de Plínio Salgado e de atitudes de Getúlio Vargas, ambos nomeados nesse esquete, construído com a dicção sarcástica e satírica de seu autor.

Toma-se aqui esse texto, como epígrafe, que serve de ponto de partida para mostrar tensões entre o estético e o ideológico, que marcaram o Modernismo brasileiro, em geral, e a obra de Oswald de Andrade em particular, sobretudo o seu teatro, escrito (mas não encenado) nos anos 30, na mesma época que publicou o Panorama do Fascismo . Talvez não fosse ocioso ler a pequena peça, até pela curiosidade de ser um texto raro, praticamente desconhecido ainda hoje.

PANORAMA DO FASCISMO

(Especial para "Problemas") Oswald de Andrade

Ante a multidão encapelada e comprimida numa praça, o Chefe surge num estrado alto e embandeirado. Cercam-no o Burro, o Pirilampo, a Forca, o Urubu, setenta capangas, uma banda de música, cinco microfones, trinta e dois refletores duplos e centúrias de fotógrafos e operadores de cinema.

 

A multidão (desesperada) - Viva! Vivooooooooooooo! Ooooooo ooooooo!

O Chefe - Em 1931...

A multidão (desvairada) - Bravo! Muito bem! Bravíssimooooooo oooo!

O Chefe - Enganei-me... em 1913!

A multidão - Bravíssimo! Muito bem!

O Chefe - O céu azul...

A multidão (desvairada) - Muito bem! Muito bem! Tem toda razão! Tem sempre razão! Ooooooooooooo!

O Chefe - Azul cor de laranja!

O Burro - Hi! On! Hi! On!

O Chefe - Obrigado!

Uma voz - Até a natureza se manifesta!

A multidão - Bravíssimo! Muito bem! Muito bem! Ooooooooo oo! Aaaaaaaaaaaa!

O Chefe - Abóbora com farofa!

A multidão - Brrrrrrrrrrrrravo! Brrrravíssimo! Muito bem!

O pirilampo pousa no nariz do Chefe e acende e apaga, acende e apaga.

A multidão (em êxtase) - Milagre! Milagre! O bichinho de Nosso Senhor deu o sinal!

O corvo grasna ao microfone.

A multidão (pensando que é o Chefe) - Muito bem! Vivoooooo oo! Que elegância de estilo! Que profundidade! Colossoooooooo! Aaaaaaaaa!

O Chefe - Toalhinha... espiriteira!

A multidão - Brrrrrrrrrravíssimo! Como fala! Que clareza! Vivoooooooooooo!

O Chefe - Cambada de idiotas!

A multidão (delirante) - Muito bem! Muito bem! Brrravo! Oooooooooo!

O Chefe - Vamos matar todos os nossos desafetos!

A Forca sorri.

A multidão (urrando) - Vamooooooos! Vamoooooos! Abaixo os desafetos! Abaixoooooo!

O Chefe - Os indiferentes também!

A multidão - Vamoooooos! Abaixo os indiferentes! Matamos todos!

O Chefe - Vamos dizer que são todos comunistas!

A multidão - Vamoooooooos!

O Burro - Eu sou fascista! Da primeira hora!

A multidão - Sabemos! Vivoooooooooo!

O Burro - Fascista histórico. Hi! On!

O Chefe (num acesso de oratória) - Pinhão! Sacudidela! Tornozelo! Barraca! Prato-fundo! Almofada! Marmelada! Oceano Atlântico!

 

 

A multidão (fora de si) - Brrravíssimo! Vivooooo! Ooooooo! Aaaaaaaaa!

A banda de música - Fron-fron-frin! Tá-rá-rará! Tchin! Tchin! Tará-ra-rá! Bum!

O Chefe (terminando a frase) - Cadeira de balanço de bigode!

A multidão (boquiaberta) - Aaaaaaaaa! Ooooooooo! Que imagem! Brrrravíssimoooooooooooooo!

A forca - Estou com fome!

O Urubu - Eu também!

O Chefe - É preciso dar de comer aos que têm fome! Abaixo os judeus!

A multidão (enfurecida) - Abaixoooooo!

O Chefe - Os judeus pobres!

A multidão (enfurecida) - Abaixooooooo!

O Chefe - Vamos tirar tudo dos judeus pobres!

A multidão - Vaaaaamos! Vaaaaaamos! Oooooooo!

O Chefe - Quando eles não tiverem mais nada, tiraremos a vida!

A multidão (sanguinária) - Sim! A vida! Vaaaaaaaamos! Ooooooo oo!

O Chefe - Não há nenhum perigo! Deus está conosco! A polícia também! Papai-grande garante!

O ruído da guerra estronda de repente. Choros convulsos de mulheres, de homens, de crianças. Manchas de sangue espalham-se nas casas desarmadas, nas prisões e nas ruas. Países desprevenidos tornam-se escravos. Cidades livres são algemadas. O luto toma conta da Terra, entre soluços de mães, de noivas, de irmãs e de filhos apavorados.

Como se percebe de imediato, Panorama do fascismo é uma cena alegórica em que o Chefe, personagem emblemática, discursa ante uma multidão, que, levada por um automatismo mecânico e rígido (a rigidez mecânica que, segundo Bergson, caracterizaria o cômico), apóia e exalta esse suposto condutor das massas. O discurso do Chefe, entretanto, praticamente nada diz; é constituído de palavras e expressões soltas, sem uma lógica racional que o articule. Mas, aos poucos, vão-se revelando a prepotência, a arbitrariedade e a repressão. Como é indicado na rubrica cênica, é bastante sintomática quanto ao alvo da sátira, que se completa com a ilustração [não se consegue ler a assinatura], que a revista oferece, em forma de caricatura. Destaca-se aí o "Sigma", símbolo do Integralismo de Plínio Salgado, que desempenha o papel de Chefe, a quem cabe a palavra final: "Não há nenhum perigo! Deus está conosco! A polícia também! Papai-grande garante!" Com esta alusão a Getúlio Vargas, através da paródia ao slogan "Deus-Pátria-Família" dos integralistas, por sua vez, já parodiado na peça O homem e o cavalo (1934), encerra-se a pequena cena que ganha ainda uma rubrica (bem pouco teatral, diga-se) em forma narrativa. Indica os efeitos do fascismo, que ameaça a expansão da cultura humana, propósito que permite ao autor articular Guernica e a pecinha que a revista Problemas publica. Oswald quer denunciar o fascismo em sua forma nacional, mas atrelado a um contexto internacional. Com suas intuições e seu sarcasmo, esse texto de 1937 pode se alinhar com o motivo recorrente da obra oswaldiana, que é pensar o Brasil, em sucessivas descobertas, conjugadas à idéia de historicidade, à idéia de nação enquanto "compulsão cultural" (para usar a formulação de Hommi Bhabha), ou seja, à reincidência de narrativas que permanentemente estão reconstruindo a nação, movidas pelo desejo de uma potência simbólica que nunca se esgota, porque nunca se dá plenamente. A obra de Oswald parece estar revestida dessa compulsão, que se faz através das tensões entre o estético e o ideológico, que se agudizam desde o início dos anos 30.

O prefácio datado de fevereiro de 1933, escrito para a edição de Serafim Ponte Grande , romance concluído em 1928, tem um caráter de autocrítica e balanço da produção anterior de Oswald de Andrade. Mesclando crítica social, histórica e literária a interpretações de fatos de sua trajetória pessoal e artística, essa apresentação quer significar a ruptura do autor com seu passado, motivada pelas posições ideológicas que assumira a partir de sua filiação ao Partido Comunista, em 1931, quando edita com Patrícia Galvão, a Pagu, o jor­nal panfletário O Homem do Povo . Na autocrítica, reconhece o des­compasso entre o anarquismo de sua formação, até então experimentado, e a "situação 'revolucionária' desta bosta mental sul-americana" (p. 131), que o levara o transformar-se em boêmio, naquele contexto, o contrário do burguês. Apesar disso, declara: "continuei na burguesia, de que, mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético" (p. 132). Desempenhando o papel de palhaço da burguesia, servindo a ela sem nela crer, conservava, entretanto, o sarcasmo, a fonte sadia que jorrava de seu fundamental anarquismo, que, contudo, ignorava o Manifesto Comunista (em sua primeira viagem à Europa em 1912, conhece o Manifesto Futurista mas passa despercebido o Manisfesto de Marx e Engels, dirá ele depois).

Esse mesmo sarcasmo fecunda, ainda, a linguagem virulenta do prefácio, ao renegar o passado que se fecha com aquele romance, "necrológio da burguesia" e "epitáfio do que fui". Com esta morte anunciada do palhaço da burguesia, reivindica "ser pelo menos casaca de ferro da Revolução proletária" (p. 133), única verdade que possui naquele momento, para acertar-se com o relógio da História em sua marcha inexorável para o futuro.

Se, em 1924, com os poemas de Pau-Brasil, Oswald desejava acertar o passo com as revoluções culturais do progresso ocidental 1 , via arte de vanguarda, quer, nos anos 30, conjugar o estético com o ideológico e acertar o passo com a revolução, reivindicando a procura e a justificativa de um sentido histórico-social da atividade artística.

Essa guinada ideológica, de que o prefácio de Serafim Ponte Grande funciona como manifesto, orienta a produção mais engajada do escritor na década de 30, quando se empenha por uma mudança radical da sociedade brasileira e renega a poesia e o romance experimentais, para dedicar-se ao romance social, como a série de A revolução melancólica , e ao teatro de tese, a exemplo de O homem e o cavalo (1934), O rei da vela e A morta (ambas editadas em 1937), ao lado do poema dramático O santeiro do Mangue e alguns esquetes ainda hoje pouco conhecidos, a exemplo do Panorama do Fascismo .

Construídas com a palavra ferina do sarcasmo oswaldiano a que mescla o registro didático e militante, essas obras inscrevem-se no projeto da Modernidade e no Modernismo brasileiro da segunda fase, com a proposta de colonizar o futuro - para usar a expressão de Octavio Paz ( Os filhos do barro ) -, negando o passado e afirmando a crença na História e na Utopia. Disse Oswald pela boca do Poeta, na peça A morta : "Toda minha produção há de ser protesto e embelezamento enquanto não puder despejar sobre as brutalidades coletivas a potência dos meus sonhos." Nessa óptica, propõe a "linguagem da metralha", requer a própria ruptura em ação e elege a mudança como fundamento, encarando o agora como signo do futuro que se anunciava como certeza.

Gostaria, aqui, de me ater a O santeiro do Mangue , peça ainda pouco estudada, a par de uma montagem de José Celso Martinez Correia. As outras três peças já foram bem analisadas, a partir da montagem do Teatro Oficina que recebeu a assinatura desse diretor. Atenho-me antes à dramaturgia que à realidade de palco.

O santeiro do Mangue : mistério gozoso em forma de ópera traz marcas contundentes dessa época, relacionadas com as questões ideo­lógicas e a pauta da problemática nacional, sem desprezar, contudo, as inovações formais do Modernismo praticadas pelo escritor na década precedente. Obra em progresso, esse poema-bufo, esse canto herói-cômico, como o classificou Mário da Silva Brito 2 , foi submetido a um longo processo de escrita, retomado inúmeras vezes entre 1936 e 1950, período turbulento para o mundo e o Brasil, que compreende desde a fase de maior participação político-partidária de Oswald, passando pelo segundo pós-guerra e pela redemocratização do país, com a queda do Estado Novo de Getúlio Vargas, quando o escritor rompe com o Partido Comunista (1946), até a retomada das idéias da Antropofagia de 1928 pelas teses sobre a crise da filosofia messiânica e sobre as utopias. Esses fatos, de uma forma ou de outra, deixam marcas neste texto iconoclasta e, provavelmente, motivaram a sua não publicação em vida do autor, que havia mudado as posições radicais professadas na década de 30.

Para captar o Mangue Tentacular (a imagem é do poema), Oswald inventa uma estrutura também tentacular, que é agenciada por um projeto sintático-semântico numa dicção da poesia e do teatro de vanguarda. Como um grande polvo, as partes são apêndices móveis, sem ligaduras entre si, gerando uma estrutura descontínua que superpõe poemas de fatura modernista, diálogos, cenas, rubricas cênicas, paródias de orações, de ladainhas, esquetes que se sucedem à maneira de oratório sacro, de teatro de revista ou de espetáculo de circo, ou trazendo algo de semelhante a um mistério medie­val.

A forma teatral adotada pelo texto esgarça o princípio de causalidade, base do enredo linear, que pressupõe um rigoroso enca­deamento lógico de motivos e situações. Resulta dessa recusa uma estrutura polimórfica, fragmentada, antiilusionista, "espécie de teatro sintético, feito por um processo de montagem de eventos, num estilo descontínuo" 3 .

Esta estrutura metonímica estampa um mundo às avessas, por via carnavalesca, que encena dramatizações sociais, para pôr em questão relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus que determinam o sistema e a ordem do mundo oficial e de suas instituições.

A fatura desse "mistério gozoso" dá-se no embate entre convenção e invenção e realoca fragmentos de contextos díspares, obedecendo a uma nova "escala" que aprofunda a vocação dialógica e antropofágica de Oswald, que, agora, entra em tensão com as intenções ideológicas, a fim de articular o seu texto com a sociedade e a História. O próprio processo de elaboração a que o escritor submeteu o texto, em inúmeras versões de 1936 a 1950, atestam sua ruptura com a tradição. Aponta para esse tópico a flutuação na tentativa de classificar o poema teatral: foi "poema para fonola e desenho animado", como consta na versão do caderno Anjo da Guarda , de 1936; assim também anunciava a Revista Acadêmica que publicou o fragmento-poema "O navio do marinheiro atraca no Mangue", no n o 27, maio 1937; depois, em 1944, recebe o título Rosário do Mangue : uma pantomima religiosa em trinta mistérios, um intermezzo e um epitáfio, e finalmente a classificação das últimas versões de 1950, a dos manuscritos de Mário Chamie e de Silva Brito: mistério gozoso em forma de ópera.

A adoção do mistério coaduna-se com o traço estilístico predominante na estética modernista, a elipse, uma vez que permite subverter a unidade de ação substituída por uma seqüência solta de cenas apresentando episódios de certo modo independentes. Não são os diálogos dos personagens e a causalidade intrínseca das ocorrências que, elo por elo, impelem a ação: esta se dá aos saltos, ganhando traços épicos, desenvolvendo-se em estações, como no teatro medie­val, ou em Claudel, em Brecht ou Maiakovski. O fio da ação descontínua esgarça o possível enredo, que se estende do "Prólogo no Corcovado" até o "Epílogo sobre o oceano Atlântico", ou seja, da cena de sedução de Eduléia que, desvirginada, parte para o Mangue, o bordel do baixo meretrício carioca, até a fala do estudante marxista que discursa a mensagem ideológica, condenando o Mangue como esgoto sexual da burguesia, discurso-ponte para a Oração do Mangue, a voz coletiva que pede e espera o advento de uma nova sociedade, via revolução. Esse "enredo" é, entretanto, construído sem ligaduras explícitas, resultando um texto organizado por cenas e poemas elípticos, cujos nexos cabe ao leitor estabelecer.

O mistério, forma do teatro religioso medieval, mescla-se com a ópera, forma dramatúrgica burguesa, ambos submetidos aos processos de inversão da paródia, a fim de revelar um mundo às avessas, com objetivos ideológicas nítidos.

É pela força da paródia que Oswald se apossa do mistério medieval e seus ecos no teatro jesuítico da catequese, para carnavalizar esse gênero nobre, destronando a seriedade da ordem burguesa e capitalista e os comportamentos sociais e procedimentos estéticos consagrados. Trata-se de produzir um texto onde à recusa da norma social vigente se soma a rejeição da linguagem ideológica que a sustenta.

O substrato religioso remete de imediato ao teatro religioso medieval e ao teatro jesuítico, mais especificamente aos mistérios, gênero submetido ao tratamento paródico: torna-se mistério bufo, mistério gozoso. O aspecto religioso passa pelo crivo da gozação, da zombaria, a fim de revelar um mundo às avessas. Por outro lado esse componente religioso não é absolutamente anulado; faz vir à cena o sentido dos Mistérios do Catolicismo rezados com o Santo Rosário.

O mundo às avessas cenarizado no espaço público do Mangue dimensiona-se como uma festa cujos ritos e símbolos religiosos são transpostos para o plano material e corporal 4 , dramatizados sob o comando da obscenidade. O discurso transgressor parodia o discurso religioso que é profanado com a literatura de bas-fonds , com a poesia pornográfica, com a linguagem chula do bordel. Nesse misto de sagrado e de burlesco, de cômico e de solene, destacam-se as paródias de textos sagrados, sentenças e situações bíblicas.

O poema teatral inaugura-se sob esta óptica com o "Prólogo no Corcovado", cena da sedução e desvirginamento de Eduléia, que parte para o Mangue; é o triunfo de Satã, que "ganha a parada". Cena que remete à tentação de Eva e se inicia com fala de Jesus das Comidas ("No começo era a Cantata ..."), paródia óbvia da abertura do Evangelho segundo São João, e a reenvia ao início da criação.

Anuncia-se em seguida o "Noturno do Mangue", a imagem da rua cheia, apelo sedutor que se projeta no poema "Comício", tornando-se "a estrela de todos os pastores". Capta-se o coletivo, depois pormenorizado em closes , visualizando o Mangue por detalhes em mosaico e preparando o cenário para o "Solo de Eduléia" que é entronizada na cena em que oferece seu corpo aos fregueses. O solo é secundado pelo coro das mulheres de Jerusalém, as prostitutas que vendem sexo, porque têm fome e imploram a compra do que prometem.

Esta mescla de sexo e religião é referendada pelo negócio, que Oswald chama de "imoralidade fecunda"(cf. A crise da filosofia messiânica , p. 108) e associa ao Patriarcado, à moral do escravo (de que fala Nietzsche), à moral da Obediência, ligada ao capitalismo e à burguesia. A este negócio o escritor opõe o ócio, que se relaciona, em suas teses sobre o messianismo e as utopias, com o Matriarcado, característico da cultura antropofágica, de índole orgiástica ou dionisíaca, em que não ocorre a repressão dos impulsos agressivos: o Totem contra o Tabu, como já consignava no Manifesto Antropófago. Desse modo, a prostituição, uma das muletas do casamento monogâmico na sociedade patriarcal e burguesa (como Oswald vê, seguindo as lições de Engels), é lida em O santeiro do Mangue como negócio, que impera no bordel.

O rosário do Mangue, assim, vai sendo rezado com esta perturbadora mistura. E como Jesus das Comidas por ora se ausenta da cena, surge o santo grotesco de dois metros - São Tesão, seu Olavo, o pobre diabo que carrega mancheias de milagres para vender no Mangue, o único lugar onde ainda se compra santo.

Nesse espaço, as mulheres exploradas, espancadas e solitárias aguardam passivamente os milagres dos santos, das imagens. Enquanto esperam "o suave milagre" (poema em que Oswald parodia o conto homônimo de Eça de Queirós), trabalham sob a proteção da Santa Ceia, reprodução da de Leonardo da Vinci, que todas têm na parede do quartinho miserável, e são tementes a Deus.

A pantomima religiosa vai gradativamente cedendo espaço à voz monológica da ideologia. O mistério oswaldiano dimensiona-se como dança macabra, o poema da comunidade que morre, contra um passado mortificador e um futuro adiado num 'tempo e eternidade' imóveis e a-históricos, como sugere Mário Chamie (p. 15).

O caráter pedagógico-didático marca o mistério medieval, dentro dos propósitos com que pretende apelar à Justiça e à Misericórdia para exercício da moralidade respaldada na visão teocêntrica e hierarquizada do mundo cristão. O santeiro do Mangue renega esta concepção, guardando dela o componente didático, agora com outra direção: a denúncia da prostituição sob a perspectiva ideológica do marxismo que, aqui, resvala para o panfletário.

Oswald faz do estudante marxista, personagem que discursa no "Epílogo sobre o Oceano Atlântico", o seu porta-voz, títere que tem a função didática de explicar as intenções do autor. A palavra de ordem tem nitidamente um efeito de provocação. Não há apelo à Misericórdia e à Justiça divinas: o sacrifício de Eduléia, que se suicida, não é resgatado pela Redenção. Como num tempo circular, o seu lugar no Mangue é logo ocupado por Deolinda, a esposa do santeiro que, no morro, dera à luz uma criança (a peça também parodia, no fundo, um auto de natividade). Com o epílogo, Oswald pretende atacar as instituições que apóiam e resguardam a divisão de classes e preservam, sem mudança, esse estado de coisa. Como diz o estudante marxista:

 

O que existe é a classe. O indivíduo não existe. Eduléia e Deolinda são a mesma pessoa que se sucedem num quartinho do Mangue. Para uma criancinha viver. Mas o que importa a uma sociedade organizada é possuir e manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa do Mangue.

 

A voz da ideologia explicitada aí vem das alturas, topologicamente situada acima do que representa a divindade: o estudante profere a sua mensagem "trepado nos ombros do Cristo do Corcovado", como informa a rubrica cênica. Essa voz quer predominar sobre a prisão religiosa das massas, comandada pelo Cristo petrificado. Nessa óptica oswaldiana, o Mangue representa uma ordem petrificada, que repete circularmente o "mesmo" e não contempla as diferenças, emperrando as engrenagens da História.

O direcionamento monológico do sistema social e político, que o texto condena, é, todavia, combatido por outra forma ideológica igualmente monológica, através do discurso do estudante marxista que interpreta a prostituição sob a luz das teses de Engels ( A origem da família, da propriedade e do Estado ), pensador definido por Oswald como "o contemporâneo do futuro" ( Dicionário de bolso , p. 70). Essa fala é completada pelo poema "Anda depressa Timoschenko", que constitui a "Oração do Mangue", espécie de epílogo-apêndice em relação ao conjunto da obra. Funciona como um libelo acusatório contra o patriarcalismo, simbolizado pelos comendadores do Mangue, que criam e preservam as "senzalas atlânticas", de que o bordel é símbolo e exemplo.

O desejo de condenação e desforra contra esse mundo bur­guês da acumulação dá-se sob o patrocínio da pedagogia: o mistério torna-se parábola. Contudo não é mais solicitado o consentimento místico e sentimental buscado pela pedagogia religiosa. Em O santeiro do Mangue , o processo educativo não se dá mais a partir do interior, mas do exterior, do mundo dos "outros", cuja evidência se quer desvendar e compreender, para transformar, processo análogo ao que persegue Brecht. Como o dramaturgo alemão, Oswald de Andrade fala em nome dos prejudicados, dos excluídos por uma ordem so­cial injusta, que ambos vêem como histórica e, por isso, transformável.

A construção desse ideal, caminho para a utopia, está endossada no poema final. A voz do bordel, espécie de coro, assume o nós, marca do sujeito plural, de todo poema abertamente político, e apela para Timoschenko, o marechal soviético que participara na defesa de Stalingrado contra as tropas nazistas. Pautado pela utopia, valor moderno, Oswald espera a redenção social e política do homem que pede pressa a Timoschenko para anunciar a boa nova, naquele momento atrelada no Brasil ao Cavaleiro da Esperança, cuja evocação fecha O santeiro do Mangue : "Vem / Estamos prestes a lutar / Prestes."

Depois da argumentação que procura negar o presente, o poema requer a aceleração do futuro. Do lodaçal, da noite hetaira e pressaga do Mangue, surgirão as searas, um novo mundo fecundado por outra luz: o dia da ressurreição / revolução, o futuro que se apresenta como certeza. Palavras de Oswald!

O escritor antropófago, nesse momento, crê numa sociedade igualitária, produto de uma história modernizadora sem romper o seu continuum . Identifica a mudança com o progresso e este com o futuro, o tempo eleito como Terra Prometida. O poema, entretanto, não chega a trabalhar as tensões entre a história que vem de fora e as condições locais que a ela nem sempre se ajustam. A confiança na ação do tempo linear se traduz como progressão para uma meta, que daria sentido ao todo; Oswald está, nos anos 30, numa linha hegeliana, movido por um princípio teleológico: a forma de devir vai em direção a um sentido. Como demonstra O santeiro do Mangue , há necessidade de renunciar ao passado próprio impeditivo da realização do futuro, que lhe era alheio, mas desejado.

É, neste sentido, afirma Vera Follain de Figueiredo 5 , em Da profecia ao labirinto , quando discute a formulação de Leopoldo Zea, que a América Latina sonha sempre com um futuro que não tinha apoio na realidade, prendendo-se a um presente expectante, a uma história sem sentido, porque a mudança esperada viria como um milagre, sem relação com o que vinha acontecendo. O homem latino-americano é aquele que espera, permanentemente preparado para o que vai chegar, para o qual tudo é possível e que caminha aos saltos, não por uma evolução passo a passo.

Nos anos 30, Oswald rompe com suas idéias dos anos 20, como se viu no prefácio de Serafim Ponte Grande ; renega as idéias que propunham a união do primitivismo com a tecnologia, o descarte do raciocínio evolutivo e a aceitação da multiplicidade temporal característica de nossa cultura. Essas formulações descartadas em seu teatro de tese, a que se pode atrelar O santeiro do Mangue , voltarão à cena de suas idéias no final da vida com os ensaios de A marcha das utopias 6 , de 1953.

Nos anos 30, dentro dos princípios do realismo socialista de feição stalinista, vê como função incontornável do romance, do teatro e das artes em geral, o projeto pedagógico. Condenando o Abstracionismo e o Dadaísmo como "dois aspectos do mesmo vácuo, o vácuo a que chegou a burguesia" - diz um personagem do romance Chão , de 1944 (de A revolução melancólica ) - , propõe uma arte que volte à parábola, que passe a moralizar como um evangelho (são palavras desse romance).

Essas mesmas intenções viu Oswald no teatro de Gil Vicente, em artigo de 1943 ("Diante de Gil Vicente", em Ponta de lança ), quando da representação, em São Paulo , do Auto da barca do Inferno , montagem do teatro universitário comandada por Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Clóvis Graciano, que tentavam, através de uma peça antiga, contribuir para instaurar um teatro moderno no Brasil. Viu ele a coragem dos "chato-boys" (como ele chamava pejorativamente o grupo da revista Clima e sua sociologia, formado por Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado entre outros), que tiveram "a audaciosa invenção de restaurar no palco um trecho do Shakespeare lusitano, com os elementos nativos que possuíam" (p. 65). Nesta montagem, leu Oswald "a virilidade satírica e mística", "o valor pedagógico e persuasivo do teatro, quando o teatro é teatro, é criação e execução, é compostura e ação! Estes meninos puseram-me diante dos olhos a presença silenciosa e mágica de Portugal. Que fartura de lições nos traz essa página clássica, onde não é só a pátria lusa que se restaura no seu vigor oceânico, mas onde o próprio cristianismo retoma a sua ética fundamental, dantesca e terrível!"

Essa avaliação retórica reflete o entusiasmo de Oswald, levando-o a analisar a perda do sentido político de um povo que saíra "dessa maravilhosa virilidade satírica e mística do Auto da barca ". E o leva a crer nos destinos brasílicos. Seu otimismo tira essa lição e o conduz à pergunta final: "Afinal, naqueles tempos fortes e decisivos do Auto da barca , que significava morrer pelo Cristo senão morrer pela sociedade?", questão que ele articula ao presente da década de 40:

 

Morrem hoje pela sociedade milhões de homens. Por trás do seu sacrifício, a usura acumula os seus últimos montes de dólares, a injustiça movimenta seus laços, a corrupção impera. E de novo o Auto da barca arma, numa realidade mais que teatral, sua presença primitiva e solene. O anjo impassível espera, para conduzi-los à imortalidade, os defensores de Stalingrado [...] os que sabem dar vida, posição e futuro pela luta tutelar dos direitos do homem. Para os outros, para os últimos donos da acumulação, para os aproveitadores cínicos da vida, está armada a prancha, a prancha das condenações sem apelo e sem glória.

 

A sua crítica abre mão de comentar a encenação em seus aspectos propriamente teatrais para ater-se aos aspectos ideológicos mais ligados aos compromissos com o tempo presente, tempos de homens partidos (para usar a imagem de Drummond, em "Nosso tempo", em que o espião junta conosco, tempo de "fezes e maus poemas").

Como na pequena farsa que serve aqui de epígrafe, é esse tempo dramatizado no teatro de Oswald de Andrade, que, em sua radicalidade, busca costurar os procedimentos e recursos estéticos que as van­guar­das propunham e as tomadas de posição ideológicas que a vanguarda política desse tempo radical requeria. Para dramatizar conteúdos revolucionários, lança mão de linguagem, de uma forma também revolucionária, como formulou Maiakovski. A forma do teatro de Oswald exigia ousadia aos encenadores que ainda não dispunham, no Brasil, de uma estética teatral capaz de traduzir para o palco o que seus textos dramatúrgicos ofereciam.

As certezas messiânicas, que endossaram parte da produção de Oswald de Andrade, foram colocadas por ele no mínimo sob suspeita, no final de sua vida. Acreditava, porém, na utopia, corroída que fora pela ortodoxia stalinista; pulsava ainda nele o desejo de protesto e de embelezamento. A inscrição de sua letra confiava na História, mas revia o projeto da Modernidade pautado pela razão nem sempre libertadora. Via que a América Latina contribuiu para a concepção de uma utopia como lugar da alteridade e da tolerância étnica, relativizando a visão eurocêntrica, que se fecha em relação ao outro; para ele "aqui foi o sul que venceu", como advogava num ensaio com este título dos anos 40 (cf. Ponta de lança , p. 48-54), abrindo-se para o diálogo com o que lhe era exterior. 7

Os mistérios do Mangue são também mistérios de um país que continuam ainda em pauta. Ironicamente , o centenário do nascimento de Oswald, em 1990, foi comemorado num clima que determinava o fim da história e das grandes narrativas legitimadoras, em que ele acreditara. Será que O santeiro do Mangue , quando se enfolha em livro, editado mais de cinqüenta anos depois do início de sua gestação, já se tornou "a morta", uma obra do "país da gramática", do "país da anestesia", do "país do invivíduo", infiel aos arrebóis do futuro, como ele denunciava na peça de 1937 ( A morta )?

 

Notas de Rodapé

1 Silvano Santiago, "Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica", in: ANAIS 2º CONGRESSO ABRALIC, Belo Horizonte, ABRALIC, 1991, p. 67-77.

2 M . S. Brito, Cartola de mágico , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. O ensaio foi republicado em Oswald de Andrade, O santeiro do Mangue e outros poemas , São Paulo, Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 9-15.

3 H. de Campos, "Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana", in: C. F. Moreno (coord.), América Latina em sua literatura , São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 289.

4 M . Bakthin, La cultura popular en la Edad Media y Renacimiento , Barcelona, Barral, 1971, p. 24-25.

5 V. L. F. de Figueiredo, Da profecia ao labirinto : imagens da história na ficção latino-americana contemporânea, Rio de Janeiro, Imago, UERJ, 1994, p. 160.

6 Cf. o ensaio "Na ilha da Utopia", que faz uma releitura de A marcha das utopias , in ---, Da profecia ao labirinto , p. 15-36.

7 Cf. S. Santiago, "Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica", op. cit.

 

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