Silvana Garcia
USP
Centro Cultural São Paulo
A tarefa a que me dispus neste encontro é tanto ousada quanto temerária. Primeiro, devo declarar-me, por dever de honestidade, apenas uma leitora atenta de Gil Vicente; jamais me diria uma especialista. Talvez exatamente por esse motivo, entreguei-me a reflexões descabidas, imaginando como conciliar a obra do autor português com meu objeto preferencial de pesquisa, o teatro brasileiro contemporâneo.
Não foi uma busca muito longa. Tenho escrito e falado em diferentes oportunidades sobre o trabalho do grupo Teatro da Vertigem. Ainda há pouco publiquei um ensaio sobre a trilogia bíblica do grupo, do qual ressalto a presença de elementos da teatralidade medieval. 1 Logo, mais do que investigar as encenações contemporâneas de Gil Vicente, preferi trazer à luz a produção desse grupo que, de algum modo, alimenta-se de fonte mítico-religiosa semelhante àquela que inspirou parte da dramaturgia vicentina.
Assim, embora reconheça a impertinência de tecer aproximações, tanto pela distância secular entre eles quanto pelo uso invertido que fazem, um e outro, das mesmas referências, corro o risco de fazê-las porque entendo que uma certa heterodoxia na abordagem do teatro sempre favoreceu a efervescência intelectual criativa.
Escolho como melhor opção de confronto Auto da barca do Inferno e Apocalipse 1,11 . Busco de imediato os elementos de conexão mais diretos: a presença dos elementos de teatralidade medieval, a exploração temática no plano da mitologia cristã com ressonâncias simbólicas no plano do humano, a articulação do mito como fábula, valorizando a dimensão simbólica e alegórica, e, por fim, até mesmo a aspiração de transcendência.
No patamar de uma correspondência mais fantasiosa, imagino que, renascido no Brasil neste início de milênio, Gil Vicente talvez fizesse parte do Teatro da Vertigem e seu auto viesse a se chamar Apocalipse . Seria um autor radicalizado, que, durante o transporte no tempo, teria perdido a inocência e atualizado a malícia, aqui vertida em crítica corrosiva. Se em seu lugar de origem Gil Vicente preservou o apego a valores medievais, aqui, talvez, militasse por uma reforma do pensamento e das estruturas para combater a barbárie. Se, em Auto da barca do Inferno condenou a tirania, a usura, o comércio do sexo, a simonia, aqui os vícios do homem ganhariam novas dimensões: corrupção, preconceito, exploração de classes e assim por diante. Se lá distinguiu claramente o bem e o mal, aqui revelaria o caráter equívoco das relações e vínculos sociais, pondo em xeque o juízo e o entendimento.
Do mesmo modo, suas personagens sofreriam um ajuste, perderiam a saborosa dimensão cômica que as constitui e ganhariam uma tonalidade de grotesco sombrio, como a Brízida Vaz/Babilônia, ou de feroz caricatura, ultrapassando em muito a censura zombeteira, como no caso do Frade/Pastor Alemão. Ainda no centro, personagem privilegiada, estaria o Diabo, mas agora um Anti-Cristo andrógino, desagradável e perturbador.
Que mais em comum? Talvez, essencialmente, o mesmo desejo de propagar verdades sobre a existência humana, a mesma presença do artista como defensor de valores mais altos, movido pelo mesmo desejo megalômano de poder condenar os iníquos. O portador de mensagens. "O que vês, escreve-o num livro e manda-o às sete Igrejas"... reza o Apocalipse , capítulo 1, versículo 11.
A trajetória do grupo
O Teatro da Vertigem existe sob a liderança do diretor Antônio Araújo. Jovem formado pelo Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, Tó Araújo fez uma estréia polêmica em 1992 ao levar para o interior de um templo católico uma encenação inspirada em Paraíso perdido , de Milton. A peça provocou iradas manifestações de crentes radicais que lutaram pela suspensão do espetáculo. Defendido, porém, pela cúpula da Arquidiocese, o elenco conseguiu sobreviver à tumultuada temporada.
Passaram-se três anos até que o grupo novamente veio à cena, desta feita em um hospital desativado no centro de São Paulo, onde apresentou um comovente e acachapante Livro de Jó , retirado em sua essência do episódio bíblico. Novamente o espetáculo levantou protestos devido à força dos desempenhos impressionantes dos atores, na apresentação do martírio do homem que é desafiado por Deus.
Em 2000, o grupo fecha sua trilogia bíblica com Apocalipse 1,11 , agora usando como palco as dependências de um antigo presídio e abrindo o espetáculo para duras remissões à realidade brasileira, a começar pelo título que indica o massacre pela polícia de 111 detentos do Presídio do Carandiru, em 1993, na seqüência de uma rebelião.
Os espetáculos de Antonio Araújo são sempre muito especiais, com um lugar exclusivo no quadro das produções paulistas (e certamente do resto do Brasil). É um dos poucos criadores sobre os quais podemos pensar em termos de obra , ou seja, sua produção corresponde a um projeto artístico que ele conduz sem concessões e com definição estética. Por isso mesmo sua produção é bissexta, cada espetáculo ocupando-lhe dois, às vezes três anos, de um minucioso e sempre exaustivo investimento de criação, envolvendo atores, diretor, equipes técnicas e dramaturgo (este convidado especialmente para cada trabalho). O material bíblico e as outras fontes textuais agregadas são burilados em workshops , realizados com o dramaturgo e outros colaboradores convidados, sempre buscando constituir o específico daquele processo. O resultado, fruto orgânico desse modo de trabalho, só se realiza plenamente no espaço particular que lhe foi destinado desde a origem.
Tó Araújo não faz concessões. Seus espetáculos são produtos burilados artesanalmente, que exigem uma relação íntima com os espectadores. Por esse motivo, suas platéias são também numericamente restritas, admitindo no máximo sessenta espectadores por sessão. Estes constituem um grupo heterogêneo, irmanado na expectativa, sempre satisfeita, de viver uma experiência estética de profundo impacto. No caso de Apocalipse 1,11 , serão testemunhas de um Brasil revelado pelas entranhas.
Uma viagem ao Inferno brasileiro
Apocalipse em grego significa revelação e é com esse sentido que o vemos empregado no Novo Testamento: revelação das verdades contidas no Evangelho e cuja realidade última é a condição de Jesus Cristo como juiz supremo da humanidade. Assim o pretendeu a tradição cristã, e o apóstolo João afirmou-se como autor do mais importante escrito apocalíptico. Foi nele que finalmente foi baseado o texto de Apocalipse 1,11 , em formulação final pelo escritor Fernando Bonassi.
Porém, o espetáculo do Teatro da Vertigem está longe de reproduzir o universo bíblico em seu imaginário grotesco de monstrengos de muitas cabeças e estrelas que despencam dos céus. Essas aberrações e catástrofes não nos assombram, pois vivemos em um mundo no qual a ameaça de fim encontra-se neutralizada pela convivência diária com a violência, a degradação, a perda de referências. As visões do Apocalipse não são mais feias do que a miséria que se avoluma ao nosso lado. É, pois, no plano das abominações da realidade que somos atirados pelo espetáculo. E o fazemos na condição de testemunhas.
Quem conduz os espectadores é João, o apóstolo, aqui destituído de sua função profética e convertido em migrante de aparência nordestina, maleta de couro surrada na mão, olhar perdido, entre ingênuo e sofrido. Ele vem em busca de Nova Jerusalém, a terra prometida, e os espectadores seguem com ele. Será uma viagem em quatro etapas, cada qual ambientada em um diferente segmento do edifício.
A primeira estação, que corresponderia ao prólogo, é o momento das "Revelações". Na primeira cena, pendurada em uma varanda, a vários metros do solo, uma menina de ar distraído rega bucolicamente um vaso de flor. Em seguida, sorriso congelado nos lábios, põe-lhe fogo. É um ritual que pode ser entendido como um batismo de água e fogo, que retira dos espectadores a inocência, ainda que, num primeiro momento, eles não percebam essa destituição, manifestada apenas por uma leve sensação de mal-estar. Logo em seguida, a atenção é capturada pela aparição, num plano ainda mais alto, da figura de um Carteiro. Ele lê a Carta ao anjo da igreja em Éfeso . Seu conteúdo, porém, não é o original bíblico, mas um bem-humorado edito, determinando leis aparentemente absurdas como a concessão de direito à cirurgia plástica para mulheres idosas e a obrigatoriedade de pagamento de impostos para traficantes. Essa mistura de humor e cinismo, poesia e crueldade estará entre os ingredientes privilegiados do espetáculo. É com o espírito assim preparado que os espectadores seguem adiante.
Penetra-se, então, na privacidade de João. Os espectadores acompanham-no até seu quarto, um cubículo miserável como os que podem ser encontrados nas pensões vagabundas que se espalham pelos subúrbios das grandes cidades. Deslocados de testemunhas a voyeurs , os espectadores espreitam a intimidade de João por meio de vãos de janelas e portas, obrigados pela arquitetura da sala a uma visão parcial. Às vezes, apenas se ouve a cena que se desenrola entre João e a Noiva, uma jovem de aparência virginal, flagrada por ele em seu quarto. Ela se oferece a ele, disposta a submeter-se, mas João a despreza, obcecado pela idéia de Nova Jerusalém. Tão logo ela se retira, nua e desesperada, João descobre sob sua cama um outro intruso, o Senhor Morto. Sua figura é a do Cristo coroado de espinhos, decalcado na iconografia religiosa tradicional. Tampouco ele oferece a João qualquer resposta, qualquer alternativa, e também é rejeitado. Por fim, a terceira visita: o Anjo Poderoso, acompanhado por sua pequena tropa de Anjos Rebeldes. João é torturado, drogado e, por fim, recebe do Anjo a missão de sair e dar testemunho da proximidade do fim dos tempos.
O reino das abominações
Inicia-se o primeiro ato: a "Ascensão e queda da Besta". Os espectadores acompanham João em sua peregrinação. Sobem por escadas escuras e tortuosas, ouvidos bombardeados pelo som mix de música techno e hinos religiosos, guiados por desenhos toscos de mulheres despidas, fosforescentes sob a luz negra, que conduzem à "Boate Nova Jerusalém". Entra-se em um salão em penumbra, chuviscado por luzes coloridas que escorrem pelo espaço. O ambiente remete aos "inferninhos" kitsches de beira de estrada em cidadezinhas perdidas no Nordeste brasileiro. Os espectadores são dispostos em torno de uma passarela, lugar privilegiado de onde se assiste ao grande show da noite. Quem o apresenta é a Besta, o Anti-Cristo em pessoa, um exuberante travesti barbado, obsceno e provocador. Como coadjuvante, a atrevida Babilônia, que, nos intervalos das atrações e das cheiradas de cocaína, exibe despudoradamente o sexo, alardeando seu talento de prostituta. Na platéia, confundida com ela, os Adoradores da Besta, beatos devotos que assistem ao show como se a um culto religioso, dando aleluias e agitando nas mãos suas bíblias encardidas.
Aqui se concretiza a metáfora do apocalipse here and now , do apocalipse brasileiro. Nas atrações que se sucedem, é possível reconhecer-se, nas personagens e nas citações, aspectos difundidos do Brasil da violência, do preconceito, da corrupção, expostos de modo inclemente. Não há sutilezas, as referências revelam-se inequívocas. Há, por exemplo, a cena da "Humilhação do negro", no qual, introduzido como um produto nacional autêntico, vangloriado em sua potência e sensualidade, um jovem negro é, em seguida, acusado de roubo e sobre ele recaem todos os clichês racistas que fazem parte da cultura da classe média brasileira. Há também um número de sexo explícito, executado apaticamente por um casal em trajes indígenas, que remete inevitavelmente ao longo processo de degradação a que índios brasileiros encontram-se submetidos. (Os protagonistas desta cena são, de fato, profissionais de shows pornôs e a exibição efetivamente realiza-se no palco, sendo esta uma das situações que mais provocaram protestos indignados de espectadores tradicionalistas.)
Há ainda a exibição da Talidomida do Brasil, uma corpulenta adolescente, retardada e paralítica, presa a uma cadeira de rodas, que, com esforço, recita as primeiras linhas da Constituição brasileira. Em seguida, ela é estuprada pela Besta e a cena se completa com a entrada festiva de um bolo, oferecido em comemoração aos quinhentos anos do Descobrimento do Brasil, ao som de um alegre e comovente Parabéns a você cantado por Babilônia.
A essas cenas sucedem-se outras, de teor semelhante, fazendo desfilar na passarela situações e personagens que evocam o lado podre do país. O tom é paródico, debochado, mas a linguagem é crua, obscena, blasfema. O jogo de tensões, o confronto entre elementos contraditórios, que constitui uma das fontes do grotesco da peça, sustentado pela alta teatralidade dos elementos em cena, retém os espectadores em uma desconfortável zona limítrofe entre o riso e o choque. Na média, nossa disposição interior se manifesta por meios sorrisos. Não podemos confiar plenamente naquelas personagens que, mesmo sob uma aparência infantil, podem subitamente perder o controle e praticar atos da mais torpe violência. Este é o caso, por exemplo, dos dois palhacinhos que oferecem calças jeans , uma dupla clonada de Vladimir e Estragon cujo ponto de saturação já foi há muito ultrapassado, que já perderam a paciência e combinam ao seu pregão de vendedores os queixumes dos pessimistas e as vociferações dos revoltados. E que, em contraste com suas ternas figuras de enfeite de bolo de aniversário, espancam impiedosamente um ator vestido de coelhinho de pelúcia.
A combinação de elementos discrepantes estende-se a todos os componentes da armação dramatúrgica. Domina as falas das personagens, em geral pela justaposição da linguagem parabólica do Evangelho com palavrões e expressões da pior estirpe. Manifesta-se também na mistura do divino com o baixo material.
A ambigüidade manifesta-se já, em primeira instância, na construção das próprias personagens, pois todas elas são referências míticas deformadas em seus traços arquetípicos pelas contaminações que recebem da atualidade. São portanto seres híbridos; contêm sempre dois pólos em tensão. Os Anjos são portadores da palavra do Evangelho, mas vestem-se e comportam-se como policiais ferozes, lembrando as tropas de choque nazistas. Suas preces combinam versos de salmos com obscenidades. Por suas bocas, também, ouvimos os slogans pelos quais se expressam os sentimentos mais reacionários da população, como a reivindicação da pena de morte ou a condenação indistinta de nordestinos e homossexuais. Igualmente duvidamos de nossa compreensão e vacilamos ao rir das diatribes do Pastor Alemão. Apresentado como o "exorcista de plantão" e "mito da religiosidade popular", essa personagem, que já no nome revela burlescamente sua condição híbrida - registre-se ainda que ela é representada pelo ator Luis Miranda, que é negro -, sustenta um extravagante sincretismo religioso, combinando elementos das religiões evangélicas, do candomblé e dos shows religiosos francamente charlatães da televisão. No entanto, é ele quem nomeia os "demônios" que devem ser exorcizados de nosso convívio - todos nomes de instituições, figuras públicas e políticos brasileiros.
É sempre no interior desse jogo de afirmação/negação entre elementos opósitos que se constituem os sentidos das cenas.
No âmbito do conjunto, é também um jogo de contrapontos que lhe determina o ritmo e o encadeamento. Se a natureza épica do espetáculo não comporta um evolver dramático, a tensão se faz artificialmente pela teatralidade e pela aceleração/desaceleração do pulsar rítmico. Para tanto contribui a sonoplastia e os procedimentos de montagem, com cortes e intromissões súbitas de elementos inesperados.
O Juízo Final
O desfile de abominações da "Boate Nova Jerusalém" é abruptamente interrompido pela entrada do Anjo poderoso e seus soldados, em clima de violenta blitz policial, ameaçando as personagens que agora jazem desnudas, mãos à nuca, sobre a passarela.
Daí em diante, os espectadores são carregados para um espaço de pesadelo que inevitavelmente remete aos porões da ditadura militar durante os piores anos da repressão (ou, no plano mais imediato, ao massacre do Carandiru). Quase no escuro, atormentado por uma sonoplastia que mistura vozes e gritos a estampidos de armas de fogo, eles são introduzidos em um longo corredor e dispostos pelas paredes, ombro a ombro, formando uma espécie de "corredor polonês". Pressentem-se, mais do que se vêem, corpos nus que passam carregados agressivamente pelos anjos-policiais. Portas de aço fecham-se com estrondos, sem que se situem as fontes dos impactos. Como na História, os espectadores testemunham, protegidos pela penumbra, assustados mas seguros, o martírio dos que são arbitrariamente submetidos à mais abominável violência.
Aqui o espaço do cárcere começa a ganhar sua plena significação. Este é o lugar que a sociedade escolheu para o confinamento daqueles que representam o desvio da norma, os transgressores, as anomalias sociais. É o lugar da exclusão, a caverna profunda que não se comunica com o exterior e que veda ao exterior a visão dos rejeitados. É o lugar da punição, da perda da liberdade, da submissão humilhante, da prevalência da força sobre a vontade. Percebe-se melhor agora a concretude material das paredes úmidas, o cheiro de pólvora que contamina levemente o ar, a topografia labiríntica de escadas e corredores que desembocam no imponente e tenebroso espaço do último ato. Deslocados mais uma vez, os espectadores encontram-se finalmente em um pátio interno de pé direito alto, cercado por dois andares de celas, as do segundo plano alinhadas junto a um corredor suspenso. Em um dos extremos, uma porta de ferro gigantesca; no outro, uma escada também de ferro, unindo os dois pavimentos. Aqui transcorre o Julgamento Final.
Um a um, retirados de suas celas, desfilam diante do juiz os protagonistas da devassa Nova Jerusalém. Por um breve momento, único no espetáculo, a platéia é incitada a participar. Para o julgamento da Talidomida do Brasil, alguns ovos são distribuídos para que os espectadores, seguindo o exemplo do Juiz, atirem na personagem que, acuada e descaída, balbucia ainda a Constituição brasileira.
Se em Gil Vicente vemos o embarque das personagens e apenas imaginamos um Inferno de opereta, aqui vemos a terrível execução das sentenças. A cada réu a sua, e elas são executadas prontamente, sem recursos. A Noiva tem o fim das mártires virgens: a fogueira que a redime e a eleva aos Céus. Babilônia, delirante sob o efeito da cocaína, sujeita por uma camisa de força, é humilhada pelo Juiz, que urina sobre ela, e termina estrangulada pela Besta. Esta por pouco não logra seduzir o Juiz, mas acaba sendo torturada, castrada e queimada na cruz pelos Anjos. Ao final de um debate no qual se desafiam mutuamente com citações bíblicas, o Anjo Poderoso foge, e o Juiz enforca-se, premido pela consciência de que não há salvação.
Como o Parvo de Gil Vicente, apenas a personagem João é poupada. Por fim liberado de sua obsessão, redimido, perde o medo, e, depois de partilhar um cigarro com o Senhor Morto, sentados ambos displicentemente no chão do pátio, desfaz-se de seus pertences, abre a pesada porta de ferro e sai. Pela última vez os espectadores o seguem.
O Apocalipse 1,11 do Teatro da Vertigem realiza a constituição de múltiplos níveis semânticos pela sobreposição de planos de realidade e construções simbólicas, operada por colagem. Da combinação de relato bíblico, espaço semanticamente forte e remissões à atualidade política e social, o grupo retira um espetáculo de alta teatralidade e impacto ideológico. A combinação de elementos contrastantes - ficção/não-ficção; realismo/alegoria; divino/baixo corporal; código culto/obscenidades; citações bíblicas/blasfêmias - é fonte de resoluções de intenso teor grotesco, obrigando o espectador a um constante movimento de ajuste de seu discernimento. Não há conforto. Nesse espetáculo não há riso que acomoda.
Há, antes, uma recusa de conciliação. O mundo que se configura antes e depois desse Apocalipse é um mundo em convulsão, ambíguo, caótico, dolorosamente fragmentado. Tampouco há solução no plano mítico religioso; este "fim-dos-tempos" que, no plano fabular, elimina nossas Brízida Vaz e até mesmo o Anti-Cristo, confina o espectador a um eterno presente de iniqüidades. Resta-lhe a indignação ou a impotência. Ou ambas, combinadas. Não há como solucionar esse mal-estar no plano da ficção. Nesta, não há exemplaridade possível.
O que talvez seja mais interessante ressaltar é que, para alguns de nós, esse espetáculo, como os anteriores da companhia, instiga-nos a pensar sobre o lugar do teatro , sua inserção na topografia - real e simbólica - da cidade, e no lugar que nós ocupamos nele. Porque inevitável não ler no mandamento do capítulo 1, parágrafo 11 do Apocalipse um comando que, metaforicamente, define o papel do artista e constitui, ao mesmo tempo, uma declaração de fé no poder da arte. Nisto, tenho absoluta convicção, acreditava também Gil Vicente. 2
Notas de Rodapé
1 Silvana Garcia, "Do sagrado ao profano: o percurso do Teatro da Vertigem", in: Arthur Nestrovski, Teatro da Vertigem : Trilogia Bíblica, São Paulo, 2002, p. 31-34.
2 O segmento de texto que descreve o espetáculo coincide em parte com o ensaio Apocalipse 1,11 : a redenção pelo teatro, publicado pela revista Teatro al Sur (Buenos Aires, no. 16/17, octubre 2000).