Flávia Schlee Eyler
PUC-Rio/UFRJ
O universo vicentino será aqui compreendido como texto artístico literário porque tematiza o imaginário ao invocar o mundo real apenas para retirar-lhe a sua realidade e precipitá-lo nas brumas de uma verdade desfocada. A mímesis vicentina põe em cena algo que não existia antes e concretiza essa inexistência, não no sentido de criar uma ilusão compensatória da presença, e sim no de apontar a ausência de uma estabilidade semântica. Assim, o real penetra no ficcional como seu desdobramento e promove o encontro entre a semelhança e a diferença, como num jogo de espelhos, despragmatizando as convenções que regem os discursos. O texto de Gil Vicente, como espaço artístico, promove a perda das certezas sobre a realidade e sobre a identidade, pois se apresenta e se mescla com o que poderia ter sido , contendo assim os desejos. Ao realizar o imaginário e irrealizar o real, a mímesis literária vicentina motiva no sujeito um processo de autofingida desestruturação. 1
Nesse sentido, a obra de Gil Vicente chama a atenção para a artificialidade dos "protocolos da verdade", desestabilizando os modelos de compreensão do mundo real. Em vez de refletir o mundo, irrealiza este mesmo mundo a partir da tematização de um imaginário que aniquila as expectativas habituais.
No entanto, há competências e mediações estabelecidas sob os efeitos de código de gênero e hábitos de pensamento que devem também ser levados em consideração nos estudos artístico-literários, permitindo, nesse caso, que o texto histórico como representação fechada e estável do mundo se constitua como moldura indispensável de compreensão. Dessa forma, é importante que se explicite a moldura histórica que opera na criação do imaginário vicentino e que também tematiza o imaginário, mas de outra maneira.
A modernidade do século XII 2 , com seu peculiar otimismo e superioridade sobre os antigos, dava lugar nos séculos XIII e XIV a uma reação que impunha rígidas fronteiras ao universo. Santo Tomás, na impossibilidade de uma adoção plena do modelo aristotélico, fazia da teologia uma ciência segura. A tentativa de assentar o dogma cristão a partir do saber aristotélico traduzia-se num plano geral da história a partir do qual os acontecimentos particulares eram ali integrados. Todo e qualquer pensamento a respeito do mundo secular e da ação dos homens manifestava a providência divina. 3 O universal era isolado do processo temporal, não atuava no seu interior, e, sim, sobre ele. O acontecer no mundo real era uma história dirigida por Deus, mas somente como gênero, como coletividade e nunca individualmente. Nesse sentido, História era sinônimo de profecia e estava a serviço da teologia. No entanto, no edifício aristotélico tomista havia a aceitação de um campo de especulação racional o que, em termos gerais, levou à possibilidade de separação entre a Teologia e a Filosofia. A experiência do mundo particular e concreto não precisava mais ser mediatizada pela metafísica das universalidades abstratas.
Esse movimento, associado ao processo de complexificação e diferenciação do mundo medieval, acabou desafiando a idéia de uma história garantida e dirigida por Deus, e que levava em consideração somente as categorias universais. Era preciso considerar os caprichos do acaso e da mudança, da fortuna e do fado. A transcendência divina não mais se manifestava apenas no exterior das ações humanas, e as dominava. Ao ser colocado fora da natureza, o homem perdia a medida que lhe poderia ser imposta pelo reino das necessidades naturais e ficava sob o império sem regras e limites de seus próprios desejos. Para sobreviver coletivamente, devia, portanto, instituir suas próprias leis e submeter-se àquilo que considerasse como um bom governo. Em Portugal, essa questão assume o aspecto da necessidade de uma conciliação entre as três facetas de seu humanismo: o cívico, o das armas e o evangélico. Sob o Império português, o topos "letras" e "armas" devia incorporar o ideal de uma comunidade política superior aos particularismos. As formas de pressão sobre os ideais humanos de realização passam a ser interdependentes de sua veiculação, a fim de fazer conviver valores pessoais, normas sociais e sanções legais.
Nos quadros do Renascimento português, esse novo repertório de questões faz parte da formação e crítica do próprio governo e da sociedade. A revalorização da tradição clássica e cristã desdobrava-se numa racionalidade política. Por outro lado, ela abria a perspectiva de que os próprios homens podiam ser moralmente reformados, a partir de seu interior, através da devotio christiana . 4 Nos caminhos do individualismo, esse humanismo evangélico dirigia-se a toda a comunidade, além de ter um caráter pragmático no sentido de uma reforma efetiva do clero e, principalmente, na moralização das relações políticas.
A idéia do comprometimento cívico, da superioridade do "bem comum" sobre os interesses particulares, da família ou do grupo, não era novidade, vinha da Política de Aristóteles. No entanto, no caso português, essa relação do indivíduo com a coletividade e o Estado assume um caráter inovador. Com Fernão Lopes, o conteúdo semântico dos sintagmas "bem comunal" e "prol do poboo" ganha um sentido mais específico de responsabilidade dos governantes. (César/Cícero.)
No discurso humanista português, o paradigma Sócrates e Jesus aparece alegoricamente ampliado ou subsumido no arquétipo do rústico. Nesse caso, articula-se o ideário cívico com o pensamento social da philosophia Christi. Essa mesma articulação dá lugar ao anelo reformador das instituições existentes e a certas aspirações utópicas. O humanismo cívico apresentava a imagem arquétipa de uma sociedade moralmente sã e justa. Nesse sentido, Gil Vicente busca a conciliação entre os homens pelas virtudes tanto do poder político, quanto do poder religioso. No campo desse humanismo evangélico vicentino, pode-se entender a força da imagem do pastor-selvagem ou suas variantes (rústicos, lavradores etc.), recriadas em inúmeras obras para desempenhar a função de porta-voz irruptivo de uma revelação dos desvios da autoridade. No mundo cada vez mais codificado e ritualizado dos centros políticos, essas figuras tão distantes da corte manifestam uma radicalidade e uma tentativa de retorno aos princípios mais puros do cristianismo.
Gil Vicente sustenta literariamente seus argumentos recorrendo aos mais diversos tipos sociais (pastores, crianças, negros, judeus, ciganas, raparigas, bruxas, alcoviteiras, velhas praguejadoras, juízes, médicos, poetas, padres, santos, patifes, parvos, deuses, demônios e sábios). Porém, ainda que tente ultrapassar as particularidades do mundo com suas alegorias, seu universo aponta a possibilidade de novos pactos que surgem do confronto e do contraste entre homens que podem apreender, também, a sua verdade através de outros homens tão ingênuos, espertos, injustiçados e aventurados quanto eles. À medida que o referente do mundo deixava de ser unicamente sua contraface celeste ou a palavra divina, o cotidiano tornava-se um campo passível de experiências e aprendizados. Gil Vicente mostra como atitudes humanas particulares mereciam, agora, uma reflexão. Afinal, os homem e suas ações já não eram mais tão secundários em relação a Deus, à Igreja ou à Natureza como na Idade Média.
No Auto da Cananéia Gil Vicente aponta uma solução para os problemas de seu tempo através da supremacia da Lei da Graça 5 sobre a Bíblia - o livro de signos - e a Natureza - o livro de imagens. Como durante grande parte da Idade Média a salvação era coletiva e as ações dos homens quase nada contavam para a salvação, a questão da Graça não ocupava o centro das discussões. No entanto, à medida que o mundo e as ações humanas ganhavam relevo, era fundamental uma posição sobre a responsabilidade dos homens. Essa questão, por ser fundamental, ultrapassava as fronteiras dos teólogos e se instalava no século. Nesse sentido, Hebréia, a Lei da Escritura reclama de seu gado pois ele "pasta em mesa alheia" e compara seu rebanho atual com lobos.
Veredina, a Lei da Graça, porta-voz de um novo tempo sabe que deve ter cuidado com Satanás que está sempre atacando. Contudo, Satanás aparece fazendo um auto-exame e reconhece que, apesar de "muita arte e descrição", não havia vencido de todo nem a Cristo, nem a Davi e agora estava com medo de seu chefe Lúcifer. Em outro plano, surge Cananéia implorando para que sua filha endemoniada seja salva por Cristo, mas aparece Belzebu criticando as preces de Cananéia e dizendo aos apóstolos, intermediários de Cristo, o seguinte:
Senhores santos benditos,
I há planetas visíveis
Há i outras envisíveis
Que pertencem aos espritos
e causam cousas terríveis.
Qualquer que nascer sujeito
à maldita conjunção
sem nenhuma apelação
nem estilo de dereito
pertence à nossa prisão.
[...]
(São Pedro insiste que o mundo de Belzebu depende da Trindade mas Belzebu retruca:)
Não dizem que o Spírito Santo
Falava dentro em Davi
E dos profetas assi?
Porque não farei outro tanto
nos que tenho pera mi?
Cananéia continua suplicando a Cristo por sua filha:
Confesso que sou cadela
E de cadela nasci
E sou mais perra que ela.
E porém as cachorrinhas
Com os cães desse teor,
E os gatos, e galinhas,
Se fartam das migalhinhas
da mesa de seu senhor,
Quanto mais os teus manjares
Que és padre das companhas,
Fartas montes e montanhas
E desertos e lugares
Até bichos e aranhas!
Com glória, mui sem trabalho
Fartas os mares e rios,
E as ervas de rocios,
e os lírios de orvalho,
nos lugares mais sombrios
[...]
e, se te esquiva de mi,
que excomungada nasci,
quem outrem pode absolver?
[...]
Se perco por ser mulher,
Por meus errores profundos,
Senhor, deves tu ver
Que nascestes de mulher
Escolhida entre mil mundos! 6
Por outro lado, diante da imprevisibilidade do mundo, muitos homens no Renascimento procuravam orientar-se através da crença em operações mágicas. O sucesso do neoplatonismo, de certa forma, contribuía para que o mundo fosse percebido ao mesmo tempo de forma luminosa e obscura. A superstição e a crença na astrologia ocupavam um lugar significativo. Como homem de seu tempo, Gil Vicente, pela "imaginação" e "fantasia" no Auto da Cananéia , reconhece uma diferença qualitativa entre o passado e o presente. No entanto, a superioridade do passado poderia ser revivida, no presente, através da Lei da Graça. Ela podia redimir a história humana, embora exigisse determinadas atitudes. Entre elas estava a maneira correta de se relacionar com Deus por meio de orações. Acentuando a subjetividade moderna, exigia-se um mergulho na interioridade, um ato de contrição. A sinceridade e o empenho eram fundamentais para o sucesso da oração.
Descobrir como se processavam as relações entre o finito (mundo) e o infinito (Deus), entre a incomensurabilidade divina e o espírito mensurável do homem eram tarefas primordiais. Nesse sentido, temos a Carta a d. João III na qual Gil Vicente proclama a ordem da criação divina dizendo:
O altíssimo e soberano Deus nosso tem dous mundos: o primeiro foi e sempre e pera sempre; que é a sua resplandescente glória, repouso permanente, quieta paz, sossego sem contenda, prazer avondoso, concórdia triunfante; mundo primeiro. Este segundo em que vivemos, a sabedoria imensa o edificou polo contrário, s. todo repouso, sem firmeza certa, sem prazer seguro, sem fausto permanente, todo breve, todo fraco, todo falso, temeroso, avorrecido, cansado, imperfeito; pera que por estes contrários sejam conhecidas as perfeições da glória. [...] e porque não quis que nenhuma cousa tivesse perfeita durança sobre a face da terra, estabeleceu na ordem do mundo, que umas cousas dessem fim às outras, e que todo gênero de cousa tivesse seu contrário. 7
Para aqueles homens, a natureza era pura porque anterior ao pecado. Ela aparecia como a filha de Deus, objeto de adoração e culto por parte dos artistas e moralistas. Entre os três universos: o divino, o humano e o natural havia ressonância. Encontrar a chave do mundo, a estrutura ou a trama ideal que constituía a essência da realidade era fundamental. As relações entre macrocosmo e microcosmo obedeciam ao princípio da "semelhança". Entre o mundo das palavras e o mundo das coisas o saber buscava sua garantia, colocando no mesmo plano magia e erudição. Assim, todos os conhecimentos do século XVI eram uma mistura instável de saber racional, de noções derivadas das práticas da magia e de todo um patrimônio cultural que a redescoberta dos textos antigos multiplicara e que Gil Vicente testemunha.
Gil Vicente responde ao problema renascentista da felicidade; da fruição dos bens terrenos; da instituição de leis e de bons governos por meio de recursos que, certamente, inovam a tradição. Os recursos que ele utiliza na construção de seu universo aparecem de forma bastante peculiar. Eles surgem da integração dos quatro aspectos da tradição ocidental: o paganismo da antiguidade, o cristianismo evangélico, o judaísmo do Antigo Testamento e, fundamentalmente, a cultura popular medieval. Através dos mais diferentes tipos e estilos literários, o homem do universo vicentino vai ganhando seu contorno moderno na tensão que se estabelece entre a responsabilidade por suas ações e a pouca flexibilidade da cosmovisão medieval. A ausência de uma estrutura temporal que incorporasse as mudanças e as escolhas individuais era incompatível com a crescente polifonia do mundo e das experiências. Nesse caso, pode-se ler o Auto dos físicos como a presença de vários sentidos e interpretações acerca desse problema.
O moço de recados de um clérigo apaixonado sabe que sua paixão não é correspondida e aconselha-o a rezar missa. O clérigo insiste em que ele leve sua correspondência e apela para sua autoridade posto que é o senhor do moço. Contudo este retruca-lhe dizendo:
Quem não é senhor de si
Porque o será de ninguém?
Sede vós senhor de vós
Em fazer o que deveis
Então é bem que mandeis. 8
O moço acaba levando a carta do clérigo, mas volta com péssimas notícias e com a carta esmigalhada. O clérigo adoece, e, em torno da doença, desenrolam-se cinco possibilidades.
A indeterminação de sua doença é motivo para o exercício das relações possíveis entre a sintomatologia e seus remédios correspondentes. Porém, não há nada que garanta o acerto entre o diagnóstico e seu remédio. A autoridade que determinava as diferenças entre os médicos era apenas nominal, e Gil Vicente deixa isso muito claro. A questão da doença do corpo revelava-se no corpo da própria linguagem. As práticas médicas, ainda que aproveitassem o saber das tradições populares, introduziam este saber num complexo sistema de analogias e identificações, como se pode perceber pelo diagnóstico do físico Torres que pergunta ao clérigo quando e a que horas começou sua doença. Como há dez dias ele se encontra enfermo e os sintomas começaram na hora das ave-marias, diz o doutor refletindo:
Dez dias de manhan cedo
Estava Saturno em Aries...
Doem-vos as pontas dos pés?
[...]
Bisexto é o ano agora,
Em Piscis estava Jupiter,
Saturno há-de desfazer
Quando natura melhora:
Bem há aqui que guarnecer.
Também em Pisces a lua,
Isso foi em quarta feira;
Mercúrio à hora primeira:
Não vejo causa nenhuma
Pera febre verdadeira
E também deste ajuntamento
Dos planetas desta era...
Não sei... não sei, eu sento...
Não sei que é que era;
Mas há-de-saber quem curar
Os passos que dá uma estrela
E há-de sangrar por ela,
E há-de saber julgar
As águas numa panela.
E há-de saber proporções
No pulso se é ternário
Se altera, se é binário,
E saber quantas lições
Deu Ptolomeu a El-Rei Dário.
E quem isto não souber
Vá-se beber disso mesmo: 9
Era preciso ler, no grande livro da natureza, os signos gravados pela mente divina e encontrar o espelho fiel da harmonia presente no cosmo. Por não mais contar com a garantia de um sentido unívoco entre as palavras e as coisas, era preciso a tudo fazer falar para que se reconstituísse uma verdade metafísica de ordem moral.
É possível, dessa forma, compreender por que o universo vicentino abarca tamanha quantidade e qualidade de vozes; por que Gil Vicente faz falar tantos tipos contemporâneos seus, assim como seres mitológicos da Antigüidade, personagens da bíblia, da tradição teológica e popular. No entanto, seu dizer, ancorado na lei de Deus, não deixava de apontar para a falta de alicerces que ameaçava a ordem humana secularizada e corrompida. Problemas e tensões apareciam à medida que a profunda interdependência entre a linguagem e as coisas se desfazia. Abriam-se, cada vez mais, espaços para uma linguagem sem princípio, sem termo e sem promessa. 10
Pode-se pensar que Gil Vicente, à medida que modifica e substitui os lugares-comuns da tradição, deslocando suas veneráveis citações, cria predominantemente um diálogo agonístico com o passado e, ao mesmo tempo, novos espaços de entendimento e de compreensão do mundo. No diálogo combativo com o passado e presente, Gil Vicente reordena e reinventa a tradição e, ainda, a própria composição narrativa.
Decerto, Gil Vicente contribui para a desarticulação da tradução renascentista da mímesis clássica que, como imitação e submetida à exigência moral da verossimilhança aristotélica, garantia, numa sociedade estamental, a proteção e coesão necessárias ao próprio estamento. Segundo Costa Lima 11 , a legitimação do poético a partir de tais pressupostos devia-se à necessidade de se afirmar o universal sobre o particular. Afinal, na sólida catedral escolática garantida pela transcendência, esse novo olhar do homem e seus desdobramentos não tinham lugar marcado. Porém, a condição indeterminada do homem não pode prescindir da afirmação do universal sobre o particular, sob o risco de nada fazer sentido. Por isso, nos primórdios do Renascimento era fundamental a crença na inalterabilidade do homem e da natureza. Somente assim, ambos poderiam ser governados por leis permanentes, tanto no plano físico quanto no plano moral. Além disso, a idealização da natureza, implícita na imitatio renascentista, impedia a adoção de um rumo imprevisto, porquanto o texto artístico, sob a vigilância do decoro , não escapava da órbita traçada para o uso das figuras (imitação retórica).
A responsabilidade ética era, portanto, a base da inserção lícita das formas de interpretação da realidade. Sua legitimidade repousava na articulação do indivíduo com uma ordem que, concebida substancialmente, ainda apontava para uma providência divina associada ao universo moral
Apesar de obedecer às convenções literárias da comédia e das moralidades, o universo vicentino revelava, através da seleção e reorganização da tradição popular medieval, uma ossatura discursiva que ultrapassava o fito humanista de instruir os homens através dos modelos da Antigüidade. Seus modelos contêm novas verdades e distâncias. Entre elas, destaca-se a distância entre uma verdade do coração e as mentiras da boca. A presença de certos tipos sociais e cosmológicos comuns ao teatro medieval ganha, no teatro de Gil Vicente, novos contornos, contribuindo para que o paradigma "forma/substância", orientado para a produção de presença, característico da Idade Média, fosse substituído pelo paradigma "significado/significante". Ali a individualidade dos atores e a identidade dos personagens não eram problemas. Os atores corporificavam certos tipos sociais e cosmológicos, tornando-os reais e presentes. 1 2
É nesse sentido que se deve entender a resposta da Pastora ao Anjo no Auto da barca do Purgatório sobre seu conhecimento de Deus. Para ela, estava claro que "Deus era redondo e branquinho".
Em suma, a retomada criativa da tradição, principalmente da tradição popular medieval, e a sua apresentação em novos espaços, fazem da obra vicentina um importante caminho para se pensar a história da representação no mundo ocidental.
Notas de Rodapé
1 Sobre a especificidade do ficcional, Cf. Isabela Fernandes Soares Leite, "As marcas da ficção literária" , in: ---, Do mito à ficção : mímesis e alteridade imaginária , tese de doutorado, Departamento de Letras, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 1999 e Wolfgang Iser, "Os atos de fingir, ou o que é fictício no texto ficcional", in: Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes , 2 ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983.
2 Entre as mudanças a que o século XII conduz estão: a decadência da nobreza feudal e o primeiro esboço de monarquias nacionais, reforma monástica, ressurgimento do dualismo maniqueu, movimento das cruzadas, depuração do latim, interesse pelo árabe e pelo grego, retorno ao direito romano, novo impulso da ciência médica, sistematização da filosofia e da teologia, desenvolvimento das escolas, primeiro esboço daquilo que virão a ser as universidades, progresso das línguas e das literaturas nacionais, etc. Cf. Maurice Gandillac, Gêneses da modernidade , 1 ed., Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, p. 40.
3 "A escolástica não se pode recolher sob o signo da tentativa de assimilação da filosofia grega, que culminou na derrota reconhecida de uma ruptura irremediável entre fé e razão [...]. Ela significou, depois de uma brusca ruptura e oposição, a crítica insistente, inexorável, e cada vez mais consciente, isto é, filosófica por parte do cristianismo, da sua própria concepção e das suas próprias razões." Cf. Eugenio Garin, Idade Média e Renascimento , 2 ed., Lisboa, Estampa, 1994, p. 25.
4 Esse movimento surgiu, em Portugal, no século XV e era fruto da crítica laica ao comportamento dos homens da Igreja. Essa devoção pregava a consagração ao trabalho e à oração e reduzia ao mínimo a curiosidade teológica e as formalidades rituais. Centravam-se, como os franciscanos, na adoração de Cristo, na Paixão e na Cruz. Cf. António José Saraiva, O crepúsculo da Idade Média em Portugal , 4 ed., Lisboa, Gradiva, 1995, p. 96-99.
5 No início do cristianismo, segundo a doutrina de Pelágio, o homem não precisava de redenção, pois era essencialmente bom e o pecado original era apenas um mito. O homem nascia nas mesmas condições que Adão e podia adquirir merecimento sem a Graça e, só por suas forças naturais, alcançar a eterna felicidade. Porém, essa doutrina do século V foi condenada como heresia. Contrapondo-se a ela, vigorou a doutrina de santo Agostinho sobre a Graça. Essa doutrina afirmava que o estado primitivo do homem era o estado de inocência. Adão nascera perfeito nos dons da Graça, era livre e amparado pela Graça . Adão podia pecar e pecou, envolvendo todos os seus descendentes. Por isso, no seu estado de decadência, o homem necessita da Graça. Apesar do pecado original, Deus escolhe os bem-aventurados, oferece-lhes sua Graça e leva-os para a salvação. No entanto essa escolha divina pode ser suspensa, pois há o livre-arbítrio. A condenação não é assim obra de Deus, mas escolha do próprio homem. Cf. Francisco de Assis Dantas, "Gil Vicente: Igreja X Roma", Caderno de Letras , Universidade da Paraíba, nº 1, ano 1, dez. 1976. Em Gil Vicente , essa questão está presente também no Auto da história de Deus.
6 Gil Vicente, Obras completas , vol.II, 4 ed., Lisboa, Sá da Costa, 1971, p. 257-258.
7 Gil Vicente, Obras completas , vol. VI, 4 ed., Lisboa, Sá da Costa, 1971, p. 252-254.
8 Gil Vicente, Obras completas , vol. VI, 4 ed., Lisboa, Sá da Costa, 1971, p. 99.
9 Gil Vicente, Obras completas , vol. VI, 4 ed., Lisboa, Sá da Costa, 1971, p. 120-121.
10 A linguagem, após as fissuras renascentistas, vai-se fixar, cada vez mais, em formas estáveis dentro de uma estrutura binária. As coisas e as palavras separam-se. O olho será destinado a ver, e a ver apenas; o ouvido, apenas a ouvir. O discurso terá então por objetivo dizer o que é, mas já não será coisa alguma do que diz. Somente quando esse regime dos signos se tornou binário e quando a significação passou a refletir-se na forma da representação, é que a literatura pôde ser analisada através das relações entre significado e significante. Cf. Michel Foucault, As palavras e as coisas , 1 ed., Lisboa, Portugália, 1966, p. 67-68.
11 Segundo Costa Lima, no Renascimento houve uma alteração na concepção clássica de mímesis pois a mímesis aristotélica supunha uma concepção de physis (por simplicidade, digamos de realidade) que continha duas faces, a natura naturata e a natura naturans , ergon e energeia , o atual e o potencial. A mímesis não dizia respeito senão ao possível, ao capaz de ser criado, à energeia ; seus limites não eram outros senão o do passível de ser concebido. Entre os renascentistas, ao contrário, a posição do possível será ocupada pela categoria do verossímil, que, evidentemente, depende do que já é, do atual, então confundido com o verdadeiro. Cf. Luiz Costa Lima, O controle do imaginário , 2 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 38-40.
12 Para o aprofundamento do paradigma forma/substância Cf. Hans Ulrich Gumbrecht, "A epifania da forma", Rio de Janeiro, Rascunhos de História , nº 10, Departamento de História, PUC-Rio, 1997.
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LEITE, Isabela Fernandes Soares. Do mito à ficção : mímesis e alteridade imaginária . Tese de doutorado, Departamento de Letras, Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1999.
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SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa : Gradiva, 1995.
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