Roberto Corrêa dos Santos
PUC-Rio/UFRJ
As postulações a serem apresentadas com vistas a firmarem um território de sentido para a figura histórica e irradiante de Erasmo de Rotterdam, com ênfase em sua obra mais célebre, Elogio da loucura , integram-se às ramificações das pesquisas que vêm sendo por mim desenvolvidas já há algum tempo, e que visam, por meio da escolha de objetos adequados, a descrever e a compreender a maneira de funcionar, de existir e de preservar-se daquilo que, em registros outros, venho denominando de Cérebro-Ocidente . Não se trata de uma retomada das generalidades especulativas sobre a metafísica ocidental, que por diversos filósofos e artistas tem sido desenhada e/ou desconstruída: de Platão a Derrida e, entre essa linha-dobra, Espinosa, Kant, Descartes, Nietzsche, Wittgenstein, Foucault, Deleuze. Incluindo-se ainda aí Freud e Lacan. E os não menos elevados Mann, Kafka, Woolf, Joyce, Musil, Beckett. E, bem antes, Shakespeare, Sófocles, Homero. De fato, as questões estruturantes referentes a tal Cérebro bem se expõem nesses lugares de matéria, letra e mente iluminadas. Contudo, os exames críticos acerca dos feitos desses e de outros criadores derivam das novas percepções científicas expostas por estudos de ordem - para usar uma palavra imprópria mas englobante - cognitivista: o Cérebro-Ocidente funciona com os mesmos modelos gerais de organização de que se constitui o cérebro, o nosso, o cérebro ele mesmo, único e particular, a envolver campos, memórias, substâncias químicas, impulsionadores físicos. A maneira de tal organismo, o Cérebro , atingir seu principal propósito - viver - comporta a criação de fórmulas culturais (estéticas, filosóficas, assim como toda espécie de experimentos e atos cotidianos) que lhe dêem a consistência necessária para que se ajuste, em perfeita relação (ou seja, em elo orgânico) ao que se passa em cada cérebro humano do Ocidente - isto é, em cada um de nós. Processo a permitir-lhe conceber-se e tornar-se qual o reconhecemos. O cérebro, sua construção e sua dependência quanto ao monumento admirável e terrível daquele - o Cérebro - aceita que este cerque nossos valores e compreensões. Tal monumento é simultaneamente condição para que criemos e nos mantenhamos sob regras, consensos, crenças, ideologias, sendo tudo proposto de modo extremamente sólido, a ponto de produzir tantos regimes de inteligência duráveis e identificadores de sua História de Longa Duração. Vários elementos sustentam sua armadura sociofilosófica, entre eles, e em especial, a idéia (química) de haver o outro , de forma rígida e irremovível. O outro como regente, diretor, possibilidade exclusiva de existência social, eixo de controle, instrumento de medida de sins e de nãos. O outro , o formulante de princípios fundantes, de norteadores sensórios e perceptivos. O outro : potência criadora, e cárcere. Portanto será nessa clave, a da que nasce em virtude do Cérebro-Ocidente , havendo em seu cerne a figura de o outro em papel construtor e restritivo, que se elabora a força- Erasmo com sua escrita afiada e fabulosa. Força advinda, por um lado, da tão firme episteme de que faz parte, um campo de saber que Erasmo reforça e corrói por meio da imensa capacidade de fazer-se, ativo e rápido, lâmina crítica, empunhando sua espada verbal sobre os costumes, virtudes e vícios que foram montando o referido Cérebro . Erasmo não está só. A seu modo, Gil Vicente cavou a mesma parede dura do Cérebro , propondo-lhe novos vazamentos para que nele se infiltrasse humor, e, por intermédio desse recurso, o Cérebro fosse capaz de - atacado - restaurar-se alegre. Isso, em aparente paradoxo, acabará também por fazer com que o Cérebro seja atingido fortemente naquelas zonas celulares por demais gastas: as expressões de uso nesse período empregadas pelo Cérebro já não mais de maneira impune se sustentam. Quase todas haviam sido listadas, difundidas, repetidas e massificadas pelos agentes mais rigorosos da manutenção da vitalidade do Cérebro-Ocidente . Destacam-se, entre as diferentes fontes, aquelas mensagens poderosas e fatais (para o Cérebro , por grande tempo inatacáveis) das Grandes Bíblias - a cristã, a judaica. Elas próprias, a matéria mais contundente - entregues aos olhos e às mãos - de modelagem dos sistemas cognitivos, envolvendo afeto, pensamento, atitude: os que nos emolduram e nos fazem supor ser quem somos. O Cérebro escreve o que se entende por Clássico , e assim realimenta-se. Daí o vasto interesse da pesquisa pelas modalidades estruturais necessárias à feitura das ditas obras baixas em contraste com as assinaladas obras altas. Em ambas, por graus próprios, movem-se os eixos reguladores do Cérebro . Para examiná-los, a necessidade de propor uma espécie de socioleitura (que sendo sociobiológica) talvez permita dirigir um foco para o modo como se monta o Humanismo, no caso, em uma de suas mais belas feições, a da Renascença, presente na astúcia cosmopolita e crítica de Erasmo, bem como na habilidade risonha e ácida das peças plásticas de Gil Vicente. Embora não se queira realizar nada próximo às literaturas comparadas (Erasmo e Gil correm em seus próprios leitos especiais e históricos), não há como não grifar a atitude curativa - pois o Cérebro encontra-se então doente - que ambos demonstram ao reunir sobriedade e bufonaria. A perspectiva sobre o começo da Modernidade, com Erasmo e Gil, muito francamente já se manifesta aí em seu caráter forte, a ser reatualizada nos séculos seguintes: a liberdade, a escrita, o livre dizer, o bombardeio do conhecimento das organizações nascentes - o furor (êmulo constituinte dos criadores renascentistas) contra a falsa razão (histórica, filosófica, religiosa, política). Como a escolha recai aqui sobre Elogio da loucura (livro dedicado a Thomas Morus, outro dos parceiros dessa desmontagem que se propõe a dar ao Ocidente um rumo menos incerto, retirá-lo da debilidade, dos sentidos depravados, reerguê-lo, salvando-o da evidente decadência perceptiva e ética), é bom encará-lo como sendo, em seu modo de fazer, uma partitura dramática , uma encenação técnica e fictícia sob a indecisa natureza do gênero presente nesse período de poderosas ações estéticas: comédia e tese; carta e conselho; e o próprio espírito do gênero Elogio , então construído, por desordens e às avessas, com lanças para todos os lados. Enaltecer e tombar. Ter em mira, e atingir. Portanto vale-se Erasmo, discutindo-as, das regras da Retórica e da Argumentação, invadindo, desfazendo e utilizando seus usuais modelos, seus recursos de hábito. As técnicas discursivas presentes em partes várias da vida social, dando enorme ênfase às da fala dos religiosos e dos regentes, vêem-se desmontadas no desfilar da série de figuras de linguagem, bem como de toda rede de 'bons sentimentos' que encobrem canalhices e incontáveis fantasias de poder. O mundo dos axiomas fixos, das crendices rígidas, das gesticulações estéreis vem acompanhado dos variados casos, das histórias intercaladas e dos comentários imprescindíveis como reforços exemplares: um mundo a ver-se e, bem visto, aberto à gargalhada da escrita. Com outra natureza de inteligência e recorrendo a técnicas artísticas próprias, o mesmo realiza Gil Vicente. A Erasmo nada escapa, já que a vida se deixa filtrar pela língua da Loucura - que, no texto, é quem enuncia, sendo e declarando-se Mulher . Sob tal máscara sorridente e livre, rasga-se a graça das crianças, descrevem-se os meios pelos quais os jovens mudam inteiramente de caráter logo que principiam a se tomarem por homens, orientando-se então pelas lições e experiências mundanas que lhes acenam para a prisão aceita do julgar-se no ilusório reino da... sabedoria. Quanto aos jovens, vislumbrando o desvanecimento imediato da beleza, Erasmo destaca que, já cedo, se percebe ' a vivacidade diminuir, desaparecendo aquela simplicidade e candura antes apreciadas, acabando por findar neles o natural vigor '. Diz a Loucura ser capaz de ' tornar os velhos de novo meninos ', e que ' envelhecer significa ser duas vezes criança '. Nada é indiferente à energia abaladora da excepcional mulher, a Loucura , sendo a religião cristã católica seu grande alvo; sob o tiroteio de uma ferina e audaciosa língua encontram-se os oradores, os oráculos, os baixos fabulantes, os que se prendem aos duros estereótipos tomados como nacionais, os que acolhem o conhecimento como carreira (o que, para a Loucura , citando Sócrates, consistirá no absoluto veneno da existência). Entre todos esses, sob o esgrimir de Erasmo, estarão os advogados, assim como a enorme e hierárquica família dos simplesmente executores da cristandade (monges, teólogos, padres, frades, bispos. E o próprio papa). Todos envolvidos no não-cumprimento de seus destinos: o bispo (cuja ação se torna dissonante do termo que o designa, ou seja, ' trabalho , zelo , defesa da força da transcendência '), e o papa que, embora representante da figura e da palavra Pai, desconsidera seus afazeres por obrigação nobres, acolhendo interesses políticos distantes da incumbência de manter as formas elevadas de manifestação da vida em Deus. Sob as rasuras da intérprete Loucura , encontrar-se-ão os afetos que se modelam sob sua égide. Daí ter tantas perguntas históricas e radicais: ' Um menino que falasse e agisse como um adulto não seria um pequeno monstro? ' Vibrante navalha traz na boca a Loucura : cortante, dirá, indagando - ' Quem poderia ter relações com um velho, se este aliasse a uma longa experiência todo o vigor de espírito e a força do discernimento? ' E refletirá sobre o fato de, vivendo a mulher com o homem, se saberá ela com sua natural loucura temperar do companheiro o humor áspero e triste. Isso, após definir, com ironia - e exaltada - a potência existente nas ditas inépcia e ignorância femininas. Com esses materiais críticos, volta-se para afirmar-se a si mesma como vulcânica e sagaz, apta a, no escuro, ' ver de olhos bem abertos '. Afinal, proclama, ' também sou mulher e sou a Loucura '. Por tais virtudes, ser Mulher , ser Loucura , é capaz de perceber o valor e a importância do hilariante para o estar existindo, pois ' são coisas ridículas que formam os principais laços da sociedade e que, mais que tudo, contribuem para a alegria '. A necessária e abrangente festa, em lentes da Loucura , será reconhecer que ' a vida humana sem alegria sequer merece o nome de vida '. Assim é que, cabe a ela sublinhar uma de suas grandes teses: ' Bobagens expulsam da mesa o silêncio e a melancolia '. Convocar, pois, a bobagem, a arte polifacetada dos bobos, dos palhaços, dos saltos circenses: o bobo a fazer-se de consciência dos príncipes, ultrapassá-los e também ser uma das inúmeras metamorfoses dos deuses. Por tal força múltipla, atua como conselheiro: analítico, dançarino, implacável, desordenante. Elogio da Loucura consiste no elogio que a Loucura, a personagem, faz a seres e coisas e, ainda, no elogio erguido pelo autor implícito à Loucura e a seus assemelhados. Está o leitor face a uma sofisticada e invertida ode à Loucura, ode por ela produzida e encenada. Assim encontra-se rigoroso texto a cruzar distintos processos de construção discursiva. Afirma a Loucura, de modo exato: ' Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à ação '. Com a soberania crítica sobre os impedimentos oriundos da vergonha e do medo, oferece sua terapêutica infalível - o riso. Pois, indaga, ' o que é a vida humana? ' Resposta: ' comédia '. Por meio dessa medicina do riso, há de se quebrar a rigidez daquelas figuras sempre demasiadamente ' sérias' , aprisionadas a caracteres fixos, a leis imutáveis, a crenças de verdade, a servilismos congelantes: sentimentos parasitas. Tais seres - fracos - no livro, nomeiam-se: estóicos , alquimistas , gramáticos , pedantes . E mais: os pesados eruditos , os obtusos oradores . Acrescem-se aí aqueles cegos por acreditarem na ' supremacia de suas nacionalidades ' idealizadas a que se deixaram acorrentar: isto é, aos essencialismos da idéia mítica de nações - franceses, italianos, alemães. Combater, propõe a Loucura, imobilidades de qualquer ordem. Incluindo-se aquela proveniente da terrível e rude fantasia de falsos deuses: ' Dever-se-ia fazer com esses deuses o que se costuma praticar com as pessoas intratáveis: cortar toda correspondência ' - palavra, imagem e firmeza tão nietzschianas. Bons signos para o bem-viver. Que se eleve o estado máximo da percepção, do exame e da consciência, para constituir, como propõe a Loucura, uma nova arte, a da ' generosidade sem a mácula dos vis interesses '. Sou , diz a Loucura, ' a que não exige votos ou ofertas '. Isso para, livre, poder ampliar-se, ' deixando-se arrastar ao sabor das paixões '. Efetivo é também seu senso de gratuidade, qual se pode provar pela observação quanto ' aos votos de reconhecimento de cura' nas igrejas. Há votos sobre tudo, porém ' jamais - declara - se viu pendurado um único que seja ligado à cura milagrosa da Loucura '. Será por meio de discursos afirmativos e existenciais que ela, a Loucura, tal Mulher, ensinará, sob a luz da arte renascentista de Erasmo, ' que não nos devemos achar estranhos ao que diz respeito à humanidade '. (' Nada que é humano me é estranho ': Pessoa, Nietzsche, Machado?) Sábia, exclamará ' quanto a seus bons e fiéis súditos: têm eles uma filosofia especial que os faz distinguir muito bem os males imaginários dos males reais '. Esta, a esplêndida ciência - olhar-nos e vermo-nos de fora. Como se escultores. Dando forma. Modelando a plástica vida dos afetos, ser forte o suficiente para atingir o grau alto do entendimento.
Deixar a carne exposta. Entregar-se à feliz compaixão, bem afastada da autopiedade. Tal permitirá, entre as estratégias da Loucura, o uso do conceito: ' Loucos não são enganados pela vã esperança de futuros bens '. Ou: ' Para os loucos os dias não são envenenados pela infinita série de cuidados a que está sujeita a vida '. Pois, se dessa maneira for, a vida enfraquece, fica para sempre postergada. Vida exageradamente sob sustos e temores. Sem a argúcia de serena mirar o tempo. Pôr-se face a ele, invocando-o para o agora, deslizante frente sua tola ameaça de devoração. Ensina a Loucura não apenas o facear-se a Cronos, como também à Verdade. Como se cantasse, entonará esta deliciosa frase melódica e rara sobre o fato de alguém somente defender-se ' da verdade quando por ela é atingido '. Erasmo recorre à mitologia de Júpiter a fim de diagnosticar aquilo que se chama de razão. Aquele ente divino, Júpiter, ' uniu à razão duas fortíssimas paixões, dois impetuosos tiranos: a cólera e a concupiscência '. Em tudo, aprendizagem. Desde que atuem coração e víscera. Assim, a arte vibra. Vê-se em Erasmo, em sua letra, pulsante corpo. Este, o corpo, reconhece as matérias nocivas e as restauradoras. Ambas em fluxos e redes. Para retratá-las, aproximando-as à ciência dos deuses, a direta Deusa Loucura dobra frases antigas, por diversos meios. A citar, marque-se: ' Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado '. Para a Loucura, no entanto, ' o não estar enganado é o maior de todos os males '. Na assertiva, abala-se a idealização bloqueante, pois - prossegue -, afirmando o que também diria Nietzsche, ' tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não nos podemos certificar de nenhuma verdade '. Para reforçar o esquema geral de entendimento, amplia a complexidade dos valores com a narrativa hipotética: ' Se um esfomeado come carne podre cujo fedor obrigaria um outro a tapar o nariz, se ele a come com tanto gosto como se se tratasse de alimento mais fino, eu vos pergunto se por isso deva ser considerado menos feliz. Ao contrário, se um enfastiado comesse excelentes iguarias e, em lugar de seu gosto, sentisse náuseas, onde estaria, nesse caso, a felicidade? ' Eis a fórmula da desordem do consabido, sua variação pragmática, os ilusionismos, a instabilidade daqueles sentidos rígidos tomados, sem análise, por únicos e certos. No desconstruir - selecionando um entre exemplos tantos -, está o supor não haver de todo ' diferença entre o amor-próprio e a adulação '. E se fosse, pergunta a Loucura em voz alta, o ' amor-próprio um adular-se a si mesmo? ' De suposto em suposto, dissecam-se os valores, o valor dos valores, os pensamentos prontos, atacando-os para que se disseminem sempre diferidos e sob a espiral da dúvida crítica (' Em relação ao outro, chamamos de adulação; quando em relação a si, de amor-próprio '). Misturam-se, nas palavras, o baixo, o alto, o profano, o sagrado, o rasteiro. E o sublime. A vida a rodar sua surpreendente roleta de termos e de sentimentos é o que bem revela esse Elogio de Erasmo. Às maravilhosas gargalhadas, sutis mas sonoras, poderá o Elogio prosseguir, de dobra em dobra, mostrando a profusão de ritmos morais em que homens e mulheres se encontram e se atropelam, sob as ordens da 'racionalidade'. ' A loucura tem uma força maior que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma chacota .' Impiedosa e aberta, rasga-se a tela da vida sócio-afetiva. Para além do rir, a fonte do perceber. A Loucura - seu Elogio - formula-se para dar-se ao palco. O teatro é um de seus territórios. Nele, vários índices e personagens (secretários, banqueiros, rufiões). E rubricas (' Silêncio neste ponto. É preciso respeitar os ouvidos castos '). Ou o gracioso ato de a Loucura (tal ser) dirigir-se, bem comicamente, a seu criador, a seu 'autor'. A ele - Erasmo. E por diversas vezes (' O meu caro Erasmo que freqüentemente cito '). Constituindo-se e desmontando-se - livro de fraturas, de jogo, de ângulos. Uma escritura-móvel dedicada às miudezas constituintes das Histórias de Longa Duração, um desenho magistral das Moralidades, a atingir o âmago de suas táticas e efeitos. Um dos Mestres de Erasmo, talvez o maior, será Menipo, que ensina o bom uso da máquina-de-guerra-da-sátira-menipéia. A ela recorrendo, destroem-se as redutoras e humilhantes leituras da Bíblia, acusando-se as então existentes e convencionais análises estilísticas artificiosas, bem como todo o processo das (hiper) reinterpretações - em sua maioria, distantes das inteligências teologais. A vida dos Saberes, o coração das Humanidades, examina-os Erasmo, procurando outras formulações, a fim de pôr à luz esse momento histórico especial de tantos desregramentos (e também de várias vontades de reabitação) do Cérebro-Ocidente . Um Livro; nele: um Tempo. Artistas empenham-se em corrigi-lo. Cabe retomar o reto. Elevá-lo. E acompanhar as curvas. Redefinir as relações graves entre corpo e alma. Com sua medicina filosófica procurará Erasmo inaugurar uma nova e arguta defesa do que chama de Jesus. Potência inteira e estrategicamente revisitada por seu livro guerreiro: preparo, estudo, detalhes, criação de mapas de estados afetivos e culturais. Nesse empenho, aceita o fato de que ' muitas vezes o homem louco fala judiciosamente ', bem como o axioma de que é preciso para altear-se - recorre Erasmo a Platão - ' medir a grandeza do furor '. E será o furor um dos traços fortes das artes clássicas, tal seu uso intenso nesse período (o furor cria, gasta energia, exige emergir). O furor exaure. Por furor , criam-se os vazamentos nas artes renascentistas e, conseqüentemente, uma outra de suas imprescindíveis e energizantes singularidades: a fadiga . Modo pelo qual grande parte das obras de gênios como Da Vinci e Michelângelo cedeu à radical beleza do i.n.c.o.n.c.l.u.s.o . E ainda, entre outros temas do Humanismo na Renascença, acentua-se na Obra de Erasmo a presença do poder criador do vazio, ao lado do emprego da energia desafiante de inventar o próprio-projeto-de-vida, nele integrando, sem ansiedade, angústia ou medo, Natureza e História. (Há Cronos sobre nós.) Ressalte-se a palavra - antes de fecharem as cortinas - em sua eletricidade teatral: ' Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter na memória todos esses fatos. Em lugar de epílogo, ofereço-vos duas sentenças. ' A primeira: ' Jamais desejaria beber com um homem que se lembrasse de tudo. ' A segunda: ' Para que serve o ouvinte de memória fiel demais? ' Acrescente-se - ' tornai-vos sãos, aplaudi, vivei, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da Loucura! ' E, por fim, encerra-se a página - esta - com o ' Nunca se deveria esquecer a lei que os gregos estabeleceram para seus banquetes: Bebei. E ide-vos embora '. Hora de parar. Ao silêncio seu tempo, ao silêncio seu tempo, ao silêncio seu tempo. Que possamos dormir - talvez afirmasse Gil Vicente. Que possamos dormir! 1
Notas de Rodapé
1 As citações provêm de Elogio da loucura , de Erasmo de Rotterdam. Tradução e notas de Paulo M. Oliveira. São Paulo: Nova Cultural, 4 ed. (Col. Os Pensadores), 1988.