Gil Vicente em cena: 1998-2002

De clérigos, cônegos e frades

Cleonice Berardinelli
PUC-Rio/UFRJ
Cátedra Padre António Vieira

Participando da organização de um seminário em que Gil Vicente é o ponto de convergência das atenções, não me furtei a acrescer a esta função bastante onerosa o gosto de ser um dos que terão a palavra para transmitir algo de sua admiração pelo autor que inaugurou em Portugal o teatro em que palavra, música e gesto se unem para criar autos cujo texto é, pela primeira vez, fundamental. Aqui se falará de seus textos - eternos, podemo-lo afirmar depois de meio milênio - e de suas encenações, inúmeras e várias, até este século XXI que vamos estreando.

Pedi aos nossos convidados um título, e busquei um para mim. Veio-me à mente este, breve e irritante: "De clérigos, cônegos e frades". A proposta que continha, embora eu já a tivesse cumprido parcialmente em textos vários e variados, nunca a tinha abordado em conjunto, numa tentativa de abranger mais centradamente a sátira de Gil Vicente ao clero, a classe social mais visada e mais abertamente censurada por esse católico sincero, cuja fé se autodefine por três afirmações; 1 a "Fé é crer o que não vemos , / pela glória que esperamos ; / amar o que não comprendemos , / nem vimos, nem conhecemos , / pera que salvos sejamos ." A fé não é, pois, apreensível pelos sentidos ("não vemos, nem vimos") ou pela inteligência ("não comprendemos, nem conhecemos") mas pela esperança da glória, da salvação futura; 2 a "Fé é amar a Deus, só por Ele, / quanto se poder amar, / por ser Ele singular , / não por interesse d'Ele :" Deus é único, especial e por isso deve ser amado, não interesseiramente; 3 a "e, se mais querês saber, / crer na Madre Igreja Santa, / e cantar o que ela canta, / e querer o que ela quer. " Esse Deus e, conseqüentemente, essa fé se encontram na Igreja Católica. Aí está: crer é, em suma, um ato de fé, mas também de obediência, e obediência à Madre Igreja Santa . Que postura haveria mais católica que esta?

Como se explicará, então, que esse homem do Renascimento, que confessa publicamente a sua fé, não somente em Deus, mas na Santa Madre Igreja, se encarnice no ataque ao clero de um modo geral, e mais repetidamente aos clérigos, cônegos e frades? A pergunta será facilmente respondida por qualquer leitor ou espectador do Auto da Feira , a feira da Virgem, armada em dia de Natal e apresentada muito ironicamente por Mercúrio, "senhor / de muitas sabedorias, / e das moedas reitor, / e deus das mercadorias:", que institui o Tempo por mercador-mor, para que nela se troquem (não se vendam) "todas virtudes que houverem mister, / [...] / a troco de cousas que hão de trazer." Nelas se acharão "conselhos maduros de sãs calidades", "justiça e verdade, a paz desejada", "as chaves dos Céus, / mui bem guarnecidas em cordões dourados". O mercador, porém, receoso da má qualidade dos compradores, implora a Deus: "memoria o teu Anjo que ande comigo, / Senhor". Um Serafim, doce, mas enérgico, é enviado por Deus e convoca todos à feira, numa fala cheia de lirismo religioso, mas à qual não falta a censura bastante severa no apelo que faz aos "Papas adormidos", concitando-os a que venham "feira[r] o carão que traz[em] dourado", "muda[r] os vestidos", busca[r] "as samarras dos outros primeiros, / os antecessores", a que se lembrem "dos santos pastores / do tempo passado." Nesse momento, Mercúrio anuncia a primeira compradora: Roma, e o Diabo percebe que deve estar preparado, pois que "lhe s[abe] a maneira / de seu vender e comprar." Dar-lhe-á bom recado. Mas que quer ela, desta vez? E ouve esta resposta pasmosa: "Eu venho à feira dereita / comprar paz, verdade e fé." O Diabo não tem verdade, que não serve para nada, mas

mentiras vinta três mil,

todas de nova maneira,

cada ~ua tão sotil

que não vivais em canseira;

e especifica:

mentiras pera senhores,

mentiras pera senhoras,

mentiras pera os amores,

mentiras, que a todas horas

vos naçam delas favores.

Ela as recusa, porque, diz-lhe, e de novo pasmamos:

Tudo isso tu vendias,

e tudo isso feirei

tanto, que inda venderei;

e outras sujas mercancias,

que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor

de Deus, te comprei mentira,

e a troco do temor

que tinha da Sua ira,

me deste o Seu desamor:

[...]

e quantas virtudes tinha

te troquei polas maldades.

 

Consciente, pois, de que errou, e está arrependida, Roma dirige-se à outra tenda, onde só apresenta, para trocar pelas mercadorias espirituais que busca, as estações, os perdões, os jubileus, benefícios eclesiásticos que o poeta se recusa a aceitar, tal como Erasmo ou mesmo um frade de santa vida, como frei Pablo de Leon.

É esta Roma, pois, em que se resume um número considerável de eclesiásticos, que Gil Vicente condena, sem meias palavras, quando põe em cena, como personagens, esses clérigos, cônegos ou frades, ou padres, algumas poucas freiras e um abade, que pretendo trazer a julgamento, através da palavra percuciente do dramaturgo que os ataca zombeteiro, irônico, mas também direto, impiedoso. Encontramo-los, em referências de personagens ou personagens eles mesmos, em um número considerável de autos, 28, mais de metade dos 42 que compõem a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente , e na Carta escrita pelo autor ao rei d. João III, em que lhe transmite a fala aos frades de Santarém, em janeiro de 1531.

Num levantamento exaustivo, tornado possível graças à bastante recente edição em CD-ROM da obra completa de Gil Vicente que, apesar dos senões que apresenta, significa um avanço considerável na possibilidade que nos abre para a pesquisa do extenso material posto à disposição do pesquisador, selecionei, basicamente, os vocábulos clérigo , cônego , frade e seus sinônimos ou nomes da mesma área semântica e verifiquei numericamente o que intuía desde muito: tais vocábulos ocupam uma área considerável dos textos da Copilaçam , apontando para uma quase obsessiva preocupação do autor com essa classe social, ainda tão poderosa àquele tempo, mas em lamentável decadência moral.

Encontrados em cerca de 67% do total, tais membros do clero estão presentes em 17 autos como personagens (num total de 21, pois são dois no Auto dos físicos e quatro na Barca da Glória ), alguns dos quais, de grande importância no desenvolvimento da peça; nos restantes autos são apenas citados, com maior ou menor destaque. Em todos são julgados com severa imparcialidade pela crítica vicentina. Dos 21 personagens, dois não se definem nitidamente como bons ou maus, chamei-lhes, à falta de melhor, neutros (c. 10%); 15 são o contrário do que deles se espera, chamei-lhes negativos (c. 71%); apenas quatro amam a Deus e aos homens limpamente, chamei-lhes positivos (c. 19%). Entre estes últimos, um apenas é Frade (também chamado Padre); três são ermitães (não propriamente membros do clero, mas que incluí neste levantamento por estarem na mesma área semântica). Se os excluísse, a razão seria ainda mais impressionante: num universo de 21 membros do clero, apenas c. 5% de bons clérigos, c. 85% de maus e c. 10% de neutros . Dos não personagens, as citações são feitas num plural indefinido, havendo citações cômicas, hipoteticamente exatas, a 27 frades "que vêm de furtar melões" (no APP ), e a sete mil (na FrA ), o que torna muito mais amplo o campo abrangido pela sátira; são todos, sem exclusão, negativos .

Somados os resultados parciais, chega-se a um total mais espan­toso do que se esperava: em c. 67% dos autos vicentinos (incluí­da a Carta a d. João III) há presença de membros do clero, personagens ou não. Os personagens são 21; os não personagens, que ocorrem por vezes nos mesmos, mais freqüentemente em outros autos, são muito mais numerosos, como há pouco ficou dito. Se fosse possível contá-los, chegar-se-ia a um total que mais vale nem imaginar.

Até agora quase só lhes apresentei números. Intencionalmente, para transmitir-lhes o impacto que me provocou a comprovação de uma atitude do dramaturgo, de que tenho consciência desde que comecei a lê-lo e estudá-lo, sem, todavia, medir-lhe a extensão. Aproximemo-nos, agora, do texto vicentino e vejamos como nele procede o nosso autor.

Seria agora o momento de explicitar o que entendo por positivo e negativo nesta caracterização dos personagens aqui trazidos como para a frente de um tribunal, em que o promotor é Gil Vicente, com juízos coincidentes com os de Erasmo ou de Alfonso de Valdés - e chamo positivos àqueles que seguem as leis da Igreja, não as daquela Roma que está precisando mirar-se no espelho "que foi da Virgem sagrada", para com ele se toucar, "porque viv[e] mal toucada, / e não sint[e] como est[á]". É Mercúrio quem lhe dá o conselho, na longa fala a que atrás me referi, e que assim conclui:

 

A l~ua tem este jeito:

vê que clérigos e frades

já não têm ao Céu respeito;

minga-lhes as santidades,

e crece-lhes o proveito.

 

É isto que o nosso autor condena nos que deveriam portar-se como filhos da Igreja, daquela que é "a pousada / verdadeira e mui segura / a quem quer vida", a quem a Alma pede agasalho, aquela que é trazida à cena rodeada por seus doutores, seus "pilares", na alta dignidade da sua condição. Gil Vicente condena-os por não terem seguido os seus ensinamentos e preceitos. Por isso, chamo-lhes negativos . São clérigos, cônegos, frades e freiras e, uma vez tragicamente reunido na tentativa de entrar na Barca da Glória , todo o clero, metonimicamente representado por seus mais altos dignatários - o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa - que, acusados pelo Anjo e pelo Diabo, confessam que não seguiram os preceitos divinos. Estes serão castigados pelo riso irônico ou sarcástico do autor através de seus outros personagens, especialmente dos espertíssimos e sempre bem informados diabos que, com a onisciência do mais íntimo de cada ser humano, desvendam-lhe os segredos mais ocultos e despem-no em público, sem dó nem piedade. Acreditando na ação corretiva do riso, usa o ridículo como arma infalível.

À maneira de Gil Vicente, fá-los-ei aqui desfilar. Pelos cônegos começarei, citados não muitas vezes, mas com grande malícia, e situados num mesmo espaço: os cônegos da Sé. Brízida Vaz, a alcoviteira da Barca do Inferno , tentando valorizar-se aos olhos do Anjo, que a repele, apresenta-se-lhe, com grande cinismo.

 

Eu sô aquela preciosa,

que dava as moças a molhos.

A que criava as meninas

pera os cônegos da Sé...

 

Também nas Cortes de Júpiter há uma saborosa menção a eles, apontando para o mesmo pecado cometido. No auto, escrito para festejar o casamento da infanta d. Beatriz com o duque de Sabóia, Gil Vicente põe em cena Júpiter , reunindo cortes para decidir a melhor maneira de homenagear a princesa que deveria partir por mar ao encontro do noivo. Decide que toda a gente de Lisboa será transformada em peixes, os mais variados, que acompanharão o barco até longe. Os peixes são escolhidos ad hoc , a captar, em seus nomes, as qualidades e defeitos de muitos. Vão robalos, tubarões, ruivos e, entre esses, as toninhas, peixes vorazes nos quais a malícia vicentina vai metamorfosear os cônegos da Sé:

 

Os conegos da Sé embora

em figura de toninhas,

irão com esta senhora

até bem de foz em fora

por essas ondas marinhas.

 

Malícia? Onde? Esperem. Também as regateiras, jovens vendedoras de peixe e verduras, serão metamorfoseadas:

 

Sairão as regateiras

em cardume de sardinhas,

nadando muito ligeiras,

desviadas das carreiras,

por não topar co' as toninhas.

 

As meninas criadas pela Brízida Vaz ou as regateiras de Lisboa são o encanto dos senhores cônegos da Sé, marcados assim pela sensualidade e pela licença.

Não há distinção nítida entre cônegos e clérigos, como se pode ver nesta passagem da Comédia de Rubena : esta, preñada por um clérigo moço, está em trabalho de parto e a parteira, que sabe quem é o pai da criança, estimula o nascituro a vir ao mundo, dizendo-lhe: "Saia cá o cordeirinho, / o coneguinho da Sé." Clérigo é o termo genérico, podendo substituir cônego ; mas, nos três autos em que é este trazido ao seu texto, Gil Vicente o situa, cônego ou coneguinho , na Sé.

A forma diminutiva coneguinho tem sua equivalente, clerigozinhos , na Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra , no prólogo feito por um Peregrino. Nessa fala de composição mista, entre elogiosa e satírica, o personagem introdutório, depois de engrandecer a cidade por ter sido o berço de reis e rainhas, diz que o autor ordena que seja representada essa comédia, onde se justificará o nome da cidade e sua divisa, continuando:

 

Outrossi as causas por que aqui têm

os clérigos todos mui largas pousadas,

e mantêm as regras das vidas casadas.

Desta antigüidade procedem também,

sem serem culpados,

porque são leis dos antigos fados,

cousa na terra já determinada,

que os sacerdotes que não têm ninhada

de clerigozinhos , são excomungados.

 

É o único momento, salvo erro, em que o censor do clero abranda ou finge abrandar a sua crítica: os clérigos erram, sim, mas por determinação do fado, ou, por outro lado, a situação é tão normal, tão instituída, que os que seguem as regras são banidos.

Não apenas citado, mas personagem, e personagem-título, o Clérigo da Beira é o exemplar mais completo da sua espécie: tem mulher e um filho, já adulto, que não lhe obedece às ordens. Irritado, diz-lhe o pai: "Filho de clérigo és, / nunca bô feito farás", ao que o rapaz responde:

 

Peores são os de Frei Mendo,

e os do Beneficiado,

que vão tomar o bocado

que seu pae está comendo.

 

O Clérigo é caçador e vai à caça com o rapaz, fazendo-o acompanhá-lo na reza das matinas em latim, alternando-as com comentários em português sobre a vida quotidiana dos dois. O Clérigo manda recados à mulher para que prepare tudo para a missa. As referências a ela, as incumbências que lhe dá, tudo revela uma vida familiar organizada e tranqüila, sem sombra de pecado na consciência. Assim é porque assim deve ser e assim será: esta a filosofia de vida deste e de muitos outros clérigos àquele tempo. No mesmo auto, há um personagem negro, Furunando, que, em longa enumeração de 23 versos, dos quais só dois não terminam na palavra canseira , encaminha-se para a conclusão de que, na vida deste mundo, tudo, tudo é canseira. Também ele entra no coro da crítica ao clérigo:

 

Vai missa, canseira;

pregação longo, canseira;

crérigo não tem muiere, canseira;

crérigo tem muiere, canseira,

grande canseira:

[...]

 

Bem menos confortável que a do Clérigo é a situação do personagem central do Auto dos físicos , "no qual se tratam uns graciosos amores de um Clérigo". Este está loucamente apaixonado por uma Blanca Denisa que não quer saber dele, muito menos do seu amor e a quem envia recados pelo criado. A resposta não tarda: ela chama-lhe clérigo excomungado e rasga-lhe a carta em bocados. Lamenta-se o infeliz:

 

Cúbreseme el corazon,

y la sangre se me yela;

y pues no hay quien se duela

de mi triste perdicion,

moço, venga la candela.

 

Quer morrer...

Brásia, a governanta da casa, tenta curá-lo com suas mezinhas, depois chama três físicos que, com suas diferentes linhas de diagnosticar e seus tiques de linguagem, exibem um saber duvidoso e prescrevem tratamentos diversos, sem nenhum resultado; o que lhes dificulta o êxito é a falta de informação dada pelo paciente, que se lamenta: "Ay mesquino, que no puedo / decir mi mal de que es!" Talvez um frade possa ajudá-lo, absolvê-lo da culpa, ouvir-lhe o desabafo da mágoa que o punge tão fundo. Trazem-no:

 

padre, padre, confesion;

porque me voy de pasion,

de aqui á poco moriré

de dolor del coraçon.

 

E continua, num curioso jogo verbal:

 

Porque el humor radical

de humor volviose amor,

de amor grave dolor,

de dolor, estoy mortal,

de mortal, vivo amador.

 

Seria este o momento de se resgatar o clero pelo contraponto deste infrator da norma com um frade que a seguisse, rigoroso; não, nosso autor é impiedoso: o Frade confessa-se vítima do mesmo mal, há muito mais tempo e com maior intensidade. Critica o outro por queixar-se tão cedo: que são dois anos perto dos sete, mais sete, que serviu Jacó, dos 15 em que ele mesmo arde em fogo, sem ser correspondido? Absolve-o ("No mereces penitencia / por ser namorado, no"); culpado seria ele se nunca tivesse amado. Põe-lhe as mãos sobre a cabeça, a simular uma cura: "como dice el evangelio / y haced cuenta que sois sano." E vai fechando o auto com o anúncio de uma ensalada que trará da horta de amores e foi feita por Gil Vicente. A ensalada, de texto compósito, feito de bocados de outros, não tem um nexo perfeito, mas fala de amor e nesse espaço textual há um frade a quem se dirige uma Teresica del Robledo:

 

Frei João, Frei João,

estai quedo co'a mão.

[...]

Frei João,

estareis vós quedo, mas estai vós quedo,

mas estai vós quedo co'a mão.

 

Com este fecho, o auto englobou em sua crítica dois de seus personagens e mais um não personagem - um clérigo e dois frades, todos infratores de uma regra fundamental da Igreja: a castidade.

Uma das razões de serem maus religiosos estaria em não escolherem seu caminho por vocação, mas por conveniência ou por outra qualquer circunstância. Depois, vinha o arrependimento. Foi o que aconteceu a Frei Rodrigo, que buscou a mágica Frágua de Amor - a forja onde todos poderiam ser transformados a seu bel-prazer - para submeter-se a uma calda, ou mais, se necessário fosse, e sair outro. Cupido, o ferreiro, pergunta-lhe o que pretende:

 

Queria-me desfazer

e tornásseis-me a fazer

muito leigo, se podeis,

que leigo tornasse a ser.

 

e indaga-lhe a razão do pedido:

 

Porque meu saber não erra:

somos mais frades cà terra,

sem conto, na Cristandade,

sem servirmos nunca em guerra.

 

Exigindo-lhe o ferreiro a licença do superior do convento, volta depois, trazendo um saco de carvão - só mais tarde o espectador / leitor descobrirá para que o traz.

Em trinta e poucos versos, o Frade faz uma espécie de arrenego, em que enumera tudo que lhe aborrece no convento. Nada escapa. Em seguida, diz o que gostaria de fazer: bailar, foliar, ir a romarias, jogar e, rematando tudo:

 

parece-me bem dizer:

- Vai chamar minha molher

que me faça de jantar.

Isto, eramá, é viver.

 

Desta vez traz a licença exigida, alargada "pera mi e sete mil, / que virão daqui avante." Por isso era preciso tanto carvão.

No Auto das fadas , a Feiticeira, que abre o auto, apresenta-se ao rei, à rainha, aos príncipes e às damas, como quem nunca fez mal a ninguém. Sempre se esforçou por proteger os amadores, "chamando frades e freiras / que morreram por amores", tentando fazer das malmaridadas bem maridadas. Fazendo feitiçarias em cena - longas e divertidas - ordena aos Diabos que lhe tragam duas fadas. Estes lhe trazem dois frades infernais: um tange gaita, o outro foi pregador e faz um sermão sobre Amor vincit omnia de Virgílio. Nesta jocosa peça, o Frade analisa os efeitos do amor, dizendo que vem "por tres accidentes": um, por "vuestro mirar," o segundo "son los engaños del dulce decir", o terceiro, "dulces meneos". Com tais acidentes, " dedit Deus potestatem / a las damas que nos maten / y nos que las adoremos."

Nenhum frade, porém, será mais posto em ridículo que o da Barca do Inferno . É o único que traz consigo o objeto do seu pecado, aproximando-se das barcas com "~ua Moça pela mão", o que é estranho, e mais, vem dançando. O próprio Diabo se espanta; pergunta-lhe: "E não vos punham lá grosa / no vosso convento santo?" ouvindo em resposta: "E eles fazem outro tanto!" Ao convite / ordem do Diabo para que entre na barca, o frade contrapõe seus argumentos:

 

Como? Por ser namorado

e folgar com ~ua molher

se há um frade de perder,

com tanto salmo rezado?

 

E o Diabo, zombeteiro: "Devoto padre marido, / havês de ser cá pingado..." O frade, que tinha dançado, agora esgrime com o Diabo, para, afinal, entrar, ele e a sua senhora Florença, na barca do Inferno.

O personagem totalmente positivo é o Frade ou Padre da Comédia do viúvo , em sua pequena participação na peça, apenas 89 versos em uma cena também bastante breve. Uma rubrica o anuncia: Vem um Frade a consolar o Viúvo e logo, sem preâmbulos, o bom sacerdote entra em ação, a ação piedosa de consolar um homem que, tendo sido o mais feliz dos maridos, se vê só e quer morrer:

 

Áquel Dios que la llevó

pido yo

muerte luego por vitoria;

pues la vida de mi gloria

ya pasó.

 

Com tato e delicadeza de quem bem conhece a alma humana, o Frade não tenta estacar o pranto tão justificado, e lança sobre o Viúvo a bênção divina:

 

La gloria y consolacion

daquel que es padre eternal

sea em vuestro corazón,

porque teneis gran razón

de llorardes vuestro mal.

 

O Viúvo torna a lamentar-se e ele acode: "Quién perdió tal compañera / que llore, digo que sí.", mas procura fazê-lo ver que todos "unos tarde, otros temprano, / nacimos para acabar"; e que o luto não agrada a Deus. E por que pôr luto por aqueles que morrem contritos e confessados, como sua mulher? O que ele deve fazer é dar graças a Deus e consolar suas filhas: "Vuestras hijas consolad / con gracia muy amorosa" e a elas diz: "vos, hermanas, descansad; / á Dios os encomendad / y á la Virgen gloriosa." O Viúvo lhe responde: "Padre, quedo consolado." Paula, uma das filhas, comenta: "Oh qué padre tan honrado!" O auto continua, as moças encontram pretendentes e chega a hora do casamento. Quem o oficia é o Frade. É apenas este o seu papel, mas nele não há discrepância. Sua ação benéfica na família, ele a exerce naturalmente, voltado para o homem, com os olhos postos em Deus. Para Gil Vicente, em seu tempo, seria um verdadeiro ápax, como a provar, por sua existência singular, a possibilidade de haver clérigos assim, abrindo um espaço de esperança, diante da quase total impossibilidade de encontrá-los pelo mundo.

Esta impossibilidade se agrava no Auto da barca da Glória , quando vemos que o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa não entram na barca do Anjo, embora este se apiede deles, dizendo ao Cardeal e ao Papa que rezem à Virgem e a Jesus. Surpreende o leitor / espectador que ainda seja possível implorar piedade quem já transpôs o limite da vida, pois aí foi levado pela Morte, personagem que não figura nos outros autos das Barcas . Diversamente das outras almas que destas se aproximam, os representantes das mais altas classes sociais da época não se justificam, apenas reconhecem suas faltas, lamentam-se e clamam por misericórdia. O arrependimento veio-lhes tarde, depois do fim. Agora, diante do crucifixo pintado na vela da barca da Glória, cada um dos oito lhe dirige a sua oração. A misericórdia também lhes chegará, mas depois de encerrado o auto, no paratexto final em que Cristo , repartindo com eles os remos de suas chagas, os levará consigo.

Por isso eu disse há pouco que a impossibilidade de haver clérigos santos se agravara. Nesse auto, de 1519, a meio caminho da obra dramatúrgica de Gil Vicente, este monta uma estratégia dramática que talvez não lhe satisfizesse, como não satisfez a grande número de seus críticos, mas que ao menos entreabriu a porta à esperança numa misericórdia divina que, para exercer-se, rompe os próprios limites.