A situação da narrativa no início do século XXI.

A narrativa em Lukács e em Benjamin

Leandro Konder
PUC-Rio

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Em meados dos anos 30 do século XX, dois pensadores de inspiração marxista, filósofos e críticos literários de notória competência, expoentes da cultura de língua alemã, escreveram sobre a narrativa.
Georg Lukács, nascido em Budapest, estava na época exilado em Moscou, na União Soviética. Walter Benjamin, nascido em Berlim, estava na época exilado em Paris. Hitler havia assumido o poder na Alemanha e a repressão desencadeada pelos nazistas forçou cerca de sessenta mil pessoas a saírem do país em 1933.

Lukács escreveu o ensaio "Narrar ou descrever?", cuja tradução brasileira pode ser lida no volume Ensaios sobre Literatura, lançado pela editora Civilização Brasileira em 1964.
Benjamin escreveu o ensaio "O narrador", que tem duas traduções brasileiras: uma no volume da série Os Pensadores dedicado a Habermas, Adorno, Horkheimer e Benjamin; e outra no livro Obras Escolhidas de Walter Benjamin, volume 1, lançado pela editora Brasiliense.

Nenhum dos dois ensaístas tomou, na ocasião em que os textos tiveram sua publicação original, conhecimento do trabalho do outro.

As afinidades entre ambos eram evidentes. Lukács era comunista militante; Benjamin, simpatizante do comunismo. Os dois provinham de famílias judias relativamente prósperas. No entanto, o que chama a nossa atenção é a diferença de ângulo das reflexões que cada um deles desenvolve.

Na abordagem do tema, Lukács contrapõe o predomínio da postura narrativa ao predomínio da postura meramente descritiva nos autores de livros de ficção, especialmente nos romancistas. Para ele, o escritor que privilegia a descrição de certo modo se acumplicia com o existente, legitimando-o, "eternizando-o", fazendo crer que a realidade é e será sempre aquilo que ela está sendo no momento em que é descrita, já que ficam enfraquecidas a percepção e a representação do que está mudando, do processo pelo qual a realidade está sempre se tornando aquilo que ela ainda não é.

Segundo Lukács, a perspectiva do narrador, ao contrário, independentemente das convicções particulares do escritor, estimula a compreensão da realidade como um processo de transformação incessante, isto é, como um movimento que está permanentemente engendrando o novo.
Entre os exemplos lembrados pelo crítico húngaro para esclarecer seu pensamento, o ensaio aponta uma comparação entre uma cena de corrida de cavalos, tal como aparece em Naná, de Emile Zola, e em Ana Karenina, de Liev Tolstoi.

Em Naná, apesar do brilho de Zola na descrição do hipódromo e da corrida, a conexão da cena com a trama narrativa é muito frágil: a vitória de uma égua sintomaticamente chamada Naná na disputa pelo grande prêmio sublinha a ascensão social da personagem-título.

Em Ana Karenina, a cena tem um peso bem maior na trajetória da protagonista. Ana está no hipódromo, constrangida, ao lado do marido e vê a égua Fru-Fru cair durante a corrida, num acidente espetacular, em conseqüência de um movimento infeliz do conde Wronski, que a montava. Assustada, Ana decide romper o casamento e assumir sua ligação amorosa com o acidentado Wronski (o que a leva à sua irreversível desgraça pessoal).

Tolstoi, para Lukács, é um mestre narrador. Seu método lhe permite inserir, com grande eficiência, o quadro do hipódromo na dinâmica da práxis de sujeitos que agem sobre o mundo fazendo escolhas, tomando decisões, assumindo riscos, optando por prioridades, por hierarquizações.

O procedimento no qual predomina a descrição nivela todas as coisas e abre caminho para a proliferação insensata dos pormenores. A supremacia da narrativa estimula a imaginação em outra direção, desafia o escritor a se defrontar com aquilo que ele mesmo e seus personagens podem vir a se tornar.
Lukács relaciona a contraposição narrar ou descrever à contraposição entre a atitude de quem vive os acontecimentos e a atitude de quem se limita a observar contemplativamente as situações.

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Walter Benjamin aborda o tema de modo bastante diferente. Para Benjamin, a narrativa tem origens remotas e corresponde a um tipo de experiência que só se realiza com dificuldade no mundo atual. Sua perspectiva não é, como a de Lukács, a da cobrança (política?) de uma revalorização da narrativa no interior do romance. De fato, o nascimento do romance moderno, como gênero, coincide com o declínio da narrativa, independentemente da postura assumida pelos escritores, romancistas.

O romance se desenvolve a partir de uma situação na qual indivíduos isolados estão postos em condições de uma escassa partilha de valores comunitários e lêem livros, silenciosamente. "A origem do romance", escreve Benjamin, "é o indivíduo isolado, que não pode mais exemplarmente falar de suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los" (Benjamin).
A narrativa (cujo primeiro modelo seria o conto de fadas) é algo muito distinto: é a expressão de um trabalho artesanal que se realiza sobre a matéria-prima da experiência.

Os primeiros narradores teriam sido os marinheiros que viajavam e contavam o que tinham visto e os camponeses que traduziam em relatos a sabedoria prática que haviam acumulado. Depois, vieram os artesãos, que aprimoraram a arte de narrar.

Com os artesãos, o poder de contar mobilizava o contador de histórias por inteiro. "Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito."

Na narrativa se encontra certa exemplaridade, certa sabedoria peculiar, que não tem como se expressar adequadamente no romance. Mnemosine, a deusa grega da reminiscência, era a mãe das artes; tornava-se, entretanto, diversa quando gerava a narrativa ou o romance: no primeiro caso, ela era a memória; no segundo, a rememoração.

Tudo indica que, segundo Benjamin, a rememoração se empenha em buscar o que a memória costumava encontrar. Há, então, ganhos e perdas na passagem de um nível para o outro. E o crítico não pode deixar de sublinhar os riscos de uma subestimação das perdas. Na realidade, é toda a história da sociedade classista que aparece questionada nas observações benjaminianas a respeito do declínio da narrativa.

Kátia Muricy escreveu:

Se o mundo moderno é, por um lado, o mundo da revolução tecnológica e o da liquidação das formas tradicionais da cultura, é também, por outro lado, o mundo do desencontro fatal entre esse desenvolvimento da técnica e uma ordem social que não se renova (Muricy, p. 188).

Enquanto vêem em volta coisas que perduram, os seres humanos podem confiar na memória. Quando tudo parece volatilizar-se, a realidade que escapa ao efêmero é a da morte.

Pela reminiscência, os seres humanos procuram saber algo sobre a morte, entender o enigma de sermos criaturas finitas que no entanto somos capazes de perceber o infinito. Era a morte - a universalidade da finitude - que legitimava o relato dos narradores, permitia-lhes darem lições de vida. Jeanne-Marie Gagnebin sublinha isso: "Como os viajantes que voltam de longe, os agonizantes são aureolados por uma suprema autoridade que a última viagem lhes confere"(Gagnebin, p. 66). A morte era a referência que fazia do narrador "a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo" (Benjamin).

Essa referência se dilui na trama complexa do romance. O romance nos põe diante da questão do "sentido da vida"; a narrativa nos leva à "moral da história".

O romance corresponde à mudança do mundo, uma mudança que se explicita com uma clareza ainda maior na substituição das velhas histórias sempre surpreendentes e renováveis por notícias e informações que só são capazes de suscitar interesse enquanto são novas.

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A que conclusão hipotética poderíamos chegar, quando comparamos as concepções de narrativa desenvolvidas por Georg Lukács e Walter Benjamin?

Talvez caiba aqui uma especulação assumidamente subjetiva. Lukács era um crítico marxista simultaneamente preocupado em atacar o lado perverso da cultura das sociedades hegemonizadas pela burguesia e em salvar o lado bom, humanista, da cultura burguesa. Por este caminho, ele combateu as tendências mais sectárias dos marxistas e defendeu uma atitude de respeito em relação a autores que, apesar de traços conservadores, deveriam ser reconhecidos como importantes e assimilados pela cultura socialista (como, por exemplo, Thomas Mann).

Esse procedimento, que teve o mérito de defender uma linha de política cultural menos problemática do que aquela que foi adotada pelos comunistas nos anos 30, se abstinha, contudo, de considerar a possibilidade de que a cultura burguesa necessitasse de um questionamento teórico mais global, quer dizer, que a burguesia no poder tivesse criado condições nas quais a vida cultural como um todo estivesse sendo submetida a deformações mais profundas e mais daninhas do que os revolucionários supunham.

Coube a Benjamin, mais romanticamente solitário do que seu contemporâneo húngaro, menos diretamente envolvido na ação política coletiva, formular a respeito da situação da cultura burguesa do seu tempo o juízo drástico - que funciona até hoje como uma advertência - segundo o qual mesmo os revolucionários que se insurgem contra o capitalismo são atingidos pelos efeitos deformadores da sua dinâmica e não conseguem resgatar tudo que está sendo dilapidado.

Benjamin, então, talvez possa ser considerado mais pessimista do que Lukács. Em certo sentido, também seria possível vê-lo como mais "radical", no plano de uma política cultural que se baseasse em sua análise. Entretanto, essa "radicalidade" permanece um tanto vaga, na medida em que o pensador alemão não explicitou as conseqüências do seu pensamento no plano específico da política cultural e suas posições políticas não chegaram a ser abertamente expostas, em termos comparáveis às do seu companheiro húngaro.

Bibliografia:

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1: Magia e técnica, arte e política.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em W. Benjamin. Campinas, SP: São Paulo: Perspectiva / FAPESP / UNICAMP, 1994.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
MURICY, Kátia. Benjamin, alegorias da dialética. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.