Eneida Leal Cunha
UFBA
Apesar de um certo eco de grandiloqüência no título, "Narrar ou morrer" dedica-se a propor algumas aberturas ou vieses para a leitura de narrativas cuja marca mais forte está em outro extremo - na precariedade, na pobreza, na transitividade. O título faz uma óbvia referência às "saudades de Sherazade" - sobre as quais este Seminário pergunta -, e quer estabelecer um nexo com as Mil e Uma Noites: em circunstâncias distantes e distintas, mas não avessas a alguma analogia, as narrativas que constituem o objeto desta minha fala são produzidas igualmente em um lugar frágil, ameaçado, e se fazem como lances contra a morte - ou como apostas em alguma sobrevivência.
Mas a alusão mais forte que o título quer fazer é outra. Provavelmente muitos aqui - certamente, aqueles mais antigos -, lembram do ensaio de Georg Lukács intitulado "Narrar ou descrever",1 datado de 1936, época de grande afinidade entre os seus escritos e a programática soviética de exaltação ao realismo. Apesar das restrições ideológicas que possa merecer, a análise parece-me hoje de uma fertilidade paradoxal, se considerado o intento, claramente exposto, do crítico. Confrontando autores e obras canônicas do "grande realismo" (Balzac, Stendhal, Gorki, Goethe, Ibsen, Scott, Dickens), com o naturalismo de Zola e de Flaubert, faz-se nele o elogio da grandeza humanista do narrar, da grandeza épica - esta é a palavra-chave de Lukács -, contrastando-a com os impasses ou interdições sociopolíticos que conduziram "os modernos" à opção por descrever - porta aberta ao "formalismo" que se seguirá, segundo deplora o crítico.
(Li este ensaio de Lukács pela primeira vez ainda no final dos anos 60, como parte da educação político-literária orientada pelo antigo PCB. Então, significava apenas mais uma voz autorizada em defesa do realismo socialista. Mais tarde, na ambiência universitária, ele retornou como bibliografia de um curso sobre o Realismo-Naturalismo brasileiro. Estava já reduzido à condição de uma competentíssima análise "de dois métodos fundamentais de representação, próprios desses dois períodos" - palavras de Lukács).
Retomo aqui a diferenciação contrastiva entre narrar e descrever com múltiplas intenções. A primeira conecta-se com o propósito deste Seminário, explicitamente dedicado ao presente, à "situação da narrativa no início do século XXI", mas com o providencial cuidado de insinuar, na pergunta ("Saudades de Sherazade?") uma permanência ou a continuidade de uma compulsão. Essa longa duração de um tema, a meu ver, mereceria um trabalho de genealogia, capaz de flagrar os modos ou formas diferidos através dos quais se repete a compulsão de narrar, como um ato contra morte, (ou um ato em favor da vida, como prefere o anúncio da apresentação de Izabel Margato neste Seminário, com suas palavras sempre menos ásperas do que as minhas).
Retomo também o título do ensaio para fazer a declaração telegráfica de um lugar de fala. Lukács, neste aspecto, é indicação do meu interesse pela historicidade das experiências materializadas em formas e, ao mesmo tempo, uma advertência sobre a inevitabilidade do instrumental letrado, acadêmico e disciplinar disponível, a ser ativado para abordar - no presente caso - narrativas que se produzem em atrito com a paisagem literária canônica ou instituída.
Principalmente, retomo o ensaio para, a partir dele e de alguma forma contra ele, contra o valor menor e problemático, poderia dizer até reativo, atribuído por Lukács ao privilégio da descrição naturalista, propor alguma reflexão sobre narrativas às quais está rigorosamente interditada a força épica, que (ele, Lukács) considera própria do narrar. Dito com outras palavras: para lidar com experiências ou vidas que estão privadas de grandeza e exemplaridade; ou com narrativas desprovidas daquela organicidade que Lúkacs julga própria do narrar e, por isso mesmo, não se desenvolvem movidas pela força da necessidade, que articula "uma série de acontecimentos dotados de significação humana" exemplar.2 Ao contrário, como o ensaio diz ser próprio da descrição, apresentam quadros "debilmente ligados ao entrecho", cujos nexos são acidentais, embora rigorosamente cronológicos, e expõem, na sucessão de cenas ou dos quadros que nos apresentam em detalhes, a pobreza e a gratuidade da experiência vivida.
As narrativas que me interessam constituem o nosso mais recente e doméstico boom do mercado de livros, a sucessão de livros que vêm sendo publicados por indivíduos em situação prisional. São narrativas que oscilam, na sua forma de apresentação, entre o explicitamente autobiográfico (como o Diário de um Detento: o Livro, de Jucenir; ou as Memórias de um Sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes), e a alternativa do conto breve (como os publicados na coletânea Letras de Liberdade). Apesar dessa diferenciação formal - tênue, ressalte-se -, é próprio desses relatos a natureza testemunhal: a total aderência ao vivido pelos seus autores e a reivindicação permanente da autoridade do narrador e da autenticidade do narrado.
São duas - e conectadas entre si - as questões principais que me apresentam esses livros exitosos na sua vendagem e repercussão de mídia. Primeiro, como os posso ler, a partir deste lugar nosso, institucional, acadêmico e disciplinar; como lidar com esses textos que articulam a emergência de autores no exterior da comunidade letrada erudita, à potência da interpelação social e política, ao sucesso no mercado editorial. Segundo - quando retornarei a Lukács - o que narram e como narram suas histórias de delinqüência, fora e dentro da prisão.
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Em A Exaustão da Diferença, Alberto Moreiras avalia, com agudos questionamentos e detalhamento erudito, a dimensão do conjunto de textos "exteriores à literatura", os quais, justamente por seu lugar de enunciação imprevisto, adquirem uma importância central no âmbito dos estudos culturais latino-americanos (a localização, neste caso, é o cerne da reflexão que faz em seu livro). O capítulo tem um título que, se não é irônico, é, no mínimo, provocativo: "A aura do testemunho".
As hipóteses interpretativas de Moreiras articulam a perda da centralidade do literário a três argumentos conjunturais: primeiro, afirma que
as condições globais matam a possibilidade de reconstituição daquelas tradições nacionais de acordo com os padrões antigos; [conseqüentemente,] a escrita literária perde [...] a hegemonia cultural e os críticos precisam começar a reconhecer a possibilidade de uma morte atrasada da (alta) literatura
segundo, que
o (suposto) fim das esperanças revolucionárias no mínimo encerra um vasto ciclo literário na América Latina, que não começou realmente com a revolução cubana, mas com as esperanças iluministas de emancipação social e com o surgimento do romance europeu
terceiro, que nas
condições atuais pós-Guerra Fria, a política identitária substituiu a política de classe e até mesmo a política nacionalista como a melhor maneira de lutar pela democratização, mesmo limitada, que o capitalismo financeiro pode fornecer. Do ponto de vista dessas políticas identitárias, os artefatos literários, tais como o romance [...] têm pouco a oferecer, [...] quando não são percebidos em primeiro lugar como parte da estrutura cultural a ser desmantelada.3
A recuperação dos argumentos de Moreiras exige um esclarecimento sobre o que está sendo recoberto, no seu texto, pela categoria "testemunho". Todo o ensaio se desenvolve através da análise das repercussões críticas do relato de Rigoberta Menchú, e a partir dele estão em pauta as narrativas que, nas últimas décadas, emergiram como "forma primária de manifestação cultural para uma grande variedade de movimentos sociais, cuja política é identitária."4 A enunciação periférica ou marginal do testemunho, associada ao "apelo direto a uma dor não-exemplar, [...] além de qualquer possibilidade de representação" que produz a sua dimensão extraliterária, oferece ao leitor "uma possibilidade inesperada de real", "um cerne de experiência", uma "reivindicação política mais premente".5
O capítulo de Moreiras sobre o testemunho me interessa aqui em duplo aspecto. A variedade de análises que cita e discute comprova a sua premissa de que, na crise do literário, o testemunho tornou-se um objeto nobre para os departamentos e os estudiosos da literatura - não só nas universidades americanas, origem da maioria dos textos recuperados pelo crítico, como na América Latina, à qual ele evidentemente se dirige, como também, sabemos, entre nós. Considero mais importante, entretanto, a provocação que nos faz para, a partir de um close em objetos considerados extraliterários ou produzidos no exterior da instituição literária, reavaliarmos paradigmas e valores do campo disciplinar que, bem ou mal instalados, habitamos.
Não há uma cabal afinidade entre os testemunhos a que o crítico se refere e os livros publicados nos últimos meses aqui no Brasil, que narram experiências da prisão e da delinqüência. Ou, melhor dizendo, são as diferenças que me parecem férteis e instigantes, entre o que contemporaneamente está sendo designado como testemunho e livros como Diário de um Detento: o Livro, de Jucenir;6 Memórias de um Sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes;7 Pavilhão 9: Paixão e Morte no Carandiru,8 de Hosmany Ramos - todos publicados neste ano - e ainda, de um ano atrás, Letras de Liberdade, de autores diversos,9 mas apresentado nas estantes das livrarias com uma escandalosa faixa vermelha que informa: "escrito pelos detentos do Carandiru".
A primeira diferença que interessa marcar aqui está no modo de circulação. Os testemunhos são textos que geralmente circularam primeiro entre um grupo social restrito, que compartilha o seu "enredo" - para essas comunidades de vida e interesses, ao contrário do que afirma Moreiras, eles têm, sim, valor de representação e de exemplaridade inegáveis. Geralmente os testemunhos chegam ao grande público com, no mínimo, o aval de estudiosos das ciências humanas e sociais, que os legitimam e publicizam - às vezes se apresentam até como os tendo "descoberto". Os livros aos quais me referi, embora tenham todos eles um patrono ou um intermediário que não compartilha da condição de seus autores,10 estão chegando até nós, estudiosos da literatura e da cultura, em grande parte já consagrados como fenômeno editorial e mercadológico. Estão em todas as prateleiras de livrarias e estiveram em toda a mídia. Se isto acontece, é porque de alguma forma correspondem a uma demanda especial de leitores ou consumidores que também não compartilham - pelo menos não compartilham diretamente, enquanto protagonistas - da experiência narrada.
Uma outra diferenciação está no fato, incontornável e, de certa forma, até desejável, de que os livros saídos recentemente da prisão, embora possam ser lidos enquanto relatos da experiência própria, peculiar, a uma dada classe social; embora, aqui no Brasil, mas não só no Brasil, o lugar social compartilhado pelos seus autores11 ou a experiência social comum esteja intimamente articulada à questão étnico-racial, esses nossos testemunhos não podem ser apropriados por uma "política identitária", não verbalizam exemplarmente uma experiência compartilhada e, principalmente, não investem no abalo de representações estereotipadas do segmento que os escreve. Neste aspecto, aliás, funcionam como uma espécie de confirmação do já dito, do já escrito, o que constitui a sua feição mais paradoxal. Mas esta constatação não arrefece a sua potencialidade enquanto denúncia e enquanto reivindicação político-libertária, ou sua demanda de uma ordem econômica, social e jurídica mais democrática.
A partir desses tópicos de diferenciação, podemos começar a avaliar os desafios interpretativos que se apresentam nos testemunhos sobre as "vivências penitenciárias brasileiras".
Como ler alguma radicalidade "anti-sistêmica" - a palavra é de Moreiras e se refere tanto ao sistema de âmbito menor, literário, quanto ao sistema maior, político-cultural e sócio-histórico, de qualquer sorte, sistemas hegemônicos -, ou como ler a alteridade e um potencial crítico-político emergente, nessas narrativas que encontramos já apropriadas por instâncias em relação às quais, tradicionalmente, guardamos muitas reservas? Quero experimentar fazê-lo explorando a familiaridade entre os atuais relatos da delinqüência e do encarceramento e os meios que os legitimam, divulgam, e distribuem.
Ao veicular esses livros e seus autores, a mídia não está apresentando a seu público um assunto emergente, não abriu as suas pautas para algo novo ou insólito. Há jornais inteiros dedicados cotidianamente ao noticiário do crime e da repressão ao crime; existem páginas policiais em todos os veículos da mídia impressa, são incontáveis as reportagens televisivas diárias que apresentam, ao vivo e em cores, cenas que se assemelham a parte do narrado e agora publicado em livro, por editoras de prestígio. Aliás,
O noticiário policial, junto com a literatura de crimes, vem produzindo há mais de um século uma quantidade enorme de "histórias de crimes" nas quais principalmente a delinqüência aparece como muito familiar, e ao mesmo tempo, totalmente estranha; uma perpétua ameaça cotidiana, mas extremamente longínqua na sua origem, pelo meio em que se move e se mostra.12
O dado presente e excepcional está na coincidência entre a autoria do crime, o sujeito da delinqüência, e a autoria e assinatura do relato. Não podemos deixar de considerar o quanto essa prova de autenticidade pode ser hoje um componente valioso, tanto para a ampliação da audiência quanto para a ampliação da vendagem. Mas este valor de mercadoria não pode obliterar um outro valor, uma outra força que, mesmo em condições precárias, preserva a eficácia política e a resistência crítica dessas narrativas.
Pode-se ler como estruturante no jogo de aproximação e distanciamento, apontado acima por Foucault, o fato de que toda a apresentação insistente da delinqüência, que historicamente a configurou, esteve sempre intermediada por um ponto de vista ou um lugar de enunciação adverso ou adversário da delinqüência - o discurso jurídico, a instituição policial -, quando não se apresenta como sua vítima, caso dos meios de comunicação, enquanto porta-vozes da sociedade civil.
O subtítulo de Vigiar e Punir, de Michel Foucault - "História da violência nas prisões" - pode ser aqui um viés para reavaliar a afinidade relativa entre as histórias de Luiz Alberto Mendes, Jucenir, Hosmany Ramos e os muitos outros que escreveram as Letras de Liberdade, e as matérias da mídia e do senso comum.
As narrativas ou as vidas que lemos nesses livros fluem em inteira consonância com o diagnóstico principal de Foucault sobre o quase consensual fracasso da instituição penitenciária, enquanto destinada a reeducação ou recuperação de criminosos e infratores. A produção da delinqüência - indispensável a uma dada ordem econômica e social - é a função que vem sendo desempenhada com eficácia há pelo menos dois séculos pelo sistema policial-penitenciário. Nesse sentido, as vidas narradas nos livros em questão são de uma redundância que, às vezes, atinge a monotonia, em especial nos relatos com maior vocação autobiográfica, como Memórias de um Sobrevivente e a maioria absoluta dos contos da coletânea Letras de Liberdade. É sempre a mesma - e, a cada relato, uma outra - criança submetida simultaneamente à violência familiar, às restrições da pobreza, às seduções dos espetáculos da sociedade de consumo e, para os autores mais jovens, à exposição diária ao noticiário do autobeneficiamento ilícito e da impunidade, prerrogativas de segmentos sociais aos quais ela não pertence. Contra o senso comum, é preciso ler nesses relatos de jovens delinqüentes que não é a droga o fator que desencadeia a perda do equilíbrio precaríssimo em que convivem tais ingredientes, ou o elemento que rompe as estruturas sociais de contenção - descritas por Foucault como a "aquisição de uma legalidade de base" pelas classes populares: o aprendizado das regras elementares de propriedade e de poupança; o treinamento para a docilidade no trabalho, para a estabilidade da habitação e da família.13 A droga no máximo é uma circunstância adjunta que produz episódios, delitos e infrações cujas conseqüências se irão multiplicar e agravar. Quem ou o que subtrai efetivamente o jovem infrator da possibilidade de continuar a integrar a "pobreza regulada" é o aprisionamento, a sua inclusão num outro regime disciplinar, ele mesmo destinado a produzir a delinqüência. Esse mesmo sistema penitenciário, é preciso não esquecer, tem importância capital para a rede de distribuição e consumo das drogas.
O foco primordial dos relatos detém-se menos na exposição do crime, da infração, da ilegalidade, e muito mais na descrição do processo de brutalização, da aprendizagem resultante das experiências do encarceramento, na apresentação minuciosa do cotidiano de humilhações, arbitrariedades e violências desmedidas, mas em nada gratuitas ou improdutivas, que se exercem dentro das prisões e das instituições destinadas ao confinamento dos "menores infratores".
Se no século XIX, segundo o mesmo Foucault, teve início - em consonância com as teorias de Fourier - uma valorização positiva do crime, como arma contra a ordem social compressiva, ou como "energia de espíritos robustos" a desdenharem as prescrições e interdições sociais, valorização da qual decorre uma certa heroicização dos indivíduos estigmatizados como criminosos e dos encarcerados em geral, o contexto contemporâneo e as histórias narradas são bem outros, e bloqueiam tais projeções. Se ainda são possíveis algumas épicas - falhadas - do "bandido",14 do traficante, do marginal, é de importância fundamental avaliar qual o lugar de produção dessas narrativas. Certamente não saem das prisões.
Estão saindo das prisões palavras que fraturam ou tornam transparentes os muros que sempre isolaram, do olhar público, o cotidiano terrível da ação policial e das instituições penitenciárias, ambas criteriosas em seus requintes de punição; narrativas que produzem, simbolicamente, uma inversão dos três termos que formam um circuito quase nunca interrompido: polícia, prisão, delinqüência. Ao apropriarem-se da voz, do poder de narrar e de ser ouvido, os "delinqüentes" - o último e mais fraco elemento desse conjunto - não têm histórias muito novas ou muito variadas a contar, mas têm uma sensibilidade de corpo e uma vontade que são diametralmente opostos a quase tudo que usualmente nos fala sobre eles.
As narrativas que estão saindo das penitenciárias brasileiras, embora igualmente signifiquem "aquela possibilidade inesperada de real" ou valham principalmente por sua "dimensão extra-literária" (segundo Moreiras), são produzidas num contexto que está todo ele atravessado de literatura, seja enquanto experiência de leitura, seja enquanto estratégias múltiplas de legitimação do literário e de auto-legitimação através do literário. Este é provavelmente o seu aspecto mais instigante - quando está, ou se está, em questão o estatuto atual da narrativa e da própria literatura.
Se os testemunhos puderam ser considerados por Moreiras como antiliteratura ou contra-literatura, as narrativas que nos chegam dos presídios, já nos títulos, afirmam a sua vontade forte de inclusão no sistema literário, através do apelo a formas instituídas - as memórias, o diário, o conto. Mas isto ainda não é tudo, ou sequer o principal.
Sabemos que a palavra escrita não é conquista recente da instituição penitenciária. A "História da violência nas prisões" denuncia a "tecnologia loquaz" ou a "prolixidade", exposta nos projetos, discursos teóricos, testemunhos, biografias compostas diariamente nos registros sobre os prisioneiros e, desde sempre, nas autobiografias. Sabemos também que a nossa própria experiência do literário ou os nossos cânones, brasileiro e ocidental, incluem inúmeras e grandiosas narrativas produzidas no cárcere.
Entre a palavra da instituição penitenciária, que escreve a sua história enquanto delinqüente, e as palavras da literatura, que o escreveram enquanto herói, enquanto classe ou vítima de um sistema social, está o corpo silenciado do detento. Um corpo mudo, ferido, ameaçado de morte, seja pela ação policial externa e interna ao presídio, seja pelas tensões que explodem no interior das celas congestionadas. Os livros recentemente publicados nos exibem esses corpos despedaçados, seu crescimento, desejos, lesões, endurecimento e morte, ou sua sobrevivência, assegurada pela morte de outros.
Mas tais narrativas não se produzem a partir de um "exterior" do sistema literário. Para indivíduos como Luiz Alberto Mendes, autor de Memórias de um Sobrevivente, ou para os autores das Letras de Liberdade, que em sua maioria completaram a escolarização básica na prisão,15 a experiência do literário, conecta-se duplamente com o aspecto disciplinar. Por um lado, é um exemplo - raro - de sucesso no programa de controle institucional e reeducação. Os textos que antecedem os contos de Letras de Liberdade não deixam o leitor esquecer este detalhe; são assinados por um Assessor da Diretoria do Complexo do Carandiru, pelo Diretor da Casa de Detenção de São Paulo, por um padre da Pastoral do Menor, além do Editor. Todos eles preocupados em alardear na publicação da coletânea - resultado de um concurso literário promovido na instituição - as provas da "recuperação" que a atividade literária expõe.
Por outro, pode significar também o resultado de um processo de aprendizagem mais individualizado, que se fez através da leitura - em Memórias de um Sobrevivente, um número significativo de páginas é dedicado a relatar a descoberta da literatura e a informar sobre o acervo literário conhecido. Os sinais dessa imersão no literário são visíveis na construção do relato. Em síntese, estou querendo grifar que, antes de chegar ou para chegar até o livro e até o público, esses indivíduos se submeteram ou foram submetidos à familiaridade com o sistema literário. Esta talvez seja a diferença mais relevante em relação aos testemunhos dos quais nos fala Moreiras.
Na paisagem cultural contemporânea, em que se forma um quase consenso sobre o enfraquecimento do literário - referido como perda da hegemonia ou do capital cultural da literatura -, as narrativas saídas das prisões podem nos confrontar com uma série de desafios - alguns dos quais vou recolher dentre as breves observações que fiz.
Primeiro deles: a interpenetração de esferas com as quais aprendemos a lidar em separado, quando não a partir de relações de contraste ou de oposição. A mídia, o empreendimento editorial, os textos da resistência, a emergência de vozes silenciadas, a reivindicação política contundente, tudo isso nos chega através de paradoxais processos de negociações de interesses. O desafio talvez seja aprender a ler os produtos dessas diferenciadas forças - do estético, do político, do mercadológico -, sem recalcá-las ou hierarquizá-las.
Segundo: ao que tudo indica, paralelamente à reflexão sobre o valor dessas narrativas, talvez não possamos prescindir de uma problematização da espacialidade. Os detentos e as narrativas que escrevem não estão no exterior, nem da ordem social nem do discurso literário. É nesta posição de interioridade residual e recalcada que me interessa pensá-los.
Terceiro: parece inegável o alto e objetivo valor atual da experiência, como mercadoria. O que pode ser um convite para reler ou desler (no sentido do misreading recomendado por Harold Bloom), a afirmativa célebre de Benjamin, que em algum nível partilha a mesma angústia de Lukács. Os soldados que retornaram mudos da guerra, no início do outro século, não podiam transformá-la em narrativa - em experiência exemplar, a ser compartilhada -, pela impossibilidade da atribuição de um sentido ao horror.
Foi bastante um século para que se aprendesse a narrar experiências como a de Sísifo (conforme sugestão de Moreiras), não só condenado a repetir infinitamente uma ação, mas a se dar conta da falta de sentido da ação que repete, como castigo ou como fatalidade; a se dar conta também da impossibilidade de restituí-la ideologicamente, como queria Lukács e - a meu ver - queria Benjamin; a se dar conta, ainda, da impossibilidade de superá-la por um acontecimento libertador. Mas essas narrativas talvez possam produzir, no circuito fechado do horror, alguma interrupção - como Sherazade.
Notas: