A situação da narrativa no início do século XXI.

Ficção brasileira hoje: a multiplicidade como sintoma

Beatriz Resende
UNIRIO/ PACC-UFRJ/CNPq

Para falar da literatura brasileira contemporânea, partiria aqui de um sintoma que venho identificando da produção recentíssima: a multiplicidade.

Como um caso exemplar desta heterogeneidade em convívio, não excludente - e por isso prefiro falar em multiplicidade - citaria, para começar, o livro Geração 90: Manuscritos de Computador - Os Melhores Contistas Brasileiros Surgidos no Final do Século XX, organizada por Nelson de Oliveira e publicada pela Boitempo Editorial, em 2001.

O título, ou pretexto, encontrado por Nelson de Oliveira para reunir em livro 17 contistas que vêm publicando nos últimos anos, não podia ser melhor: "Geração 90: manuscritos de computador".

De saída propõe uma questão teórica seguida de forte provocação. A primeira é evidente, mas tem dado assunto a bastante reflexão: ainda faz sentido falar em "geração" quando tratamos de produção artística recente? A segunda dá forma, provocativamente, à freqüente acusação de que a escrita, mais rápida, porque feita em computador - que substituiu a máquina de escrever que substituiu a caneta que substitui a pena - torna a literatura produzida na era da informática menos trabalhada, automatizada (o que é bem diferente de escrita automática, como a praticada pelos surrealistas), descuidada ou sujeita a modelos de softwares criados para facilitar a redação. À volta, aparece, é inevitável, o questionamento sobre como anda a literatura contemporânea e a avaliação dos autores recentes.

Terminada a leitura, a primeira conclusão é que se confirma, nesta seleção, a afirmativa de Ítalo Moriconi no ensaio introdutório ao livro por ele organizado, Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século: "A arte do gênero não cessa de melhorar em nossa literatura, por mais que muitas vezes se divulgue a idéia de estarmos vivendo tempos iletrados". Como vários dos autores escolhidos são também romancistas, pode-se arriscar a dizer (pessoalmente estou convencida disto) que a literatura brasileira vive um de seus bons momentos.

Venho observando que, nos anos 90, não apenas surgiram novos autores praticando uma literatura capaz de despertar grande interesse, como autores que já tinham estrada produziram, no período, obras de especial qualidade. Por alguma estranha alquimia, aponto mesmo o ano de 1994 - dez anos de abertura, marco de um luto cumprido - como um ano de virada.

Em Manuscritos de Computador, diversos autores comparecem com três, quatro contos, ou mesmo mais, quando se trata das narrativas muito curtas. Com isso, nos vemos diante de uma amostragem realmente rica, capaz de fornecer material para uma avaliação que vá além do episódico, do acaso ou da coincidência.

De saída, pode-se constatar que os manuscritos da era da informática poderiam, muitas vezes, ser chamados de caligrafias de computador, às vezes até de bordados de computador. Em praticamente todos os contos a escrita é extremamente cuidadosa e as rupturas com a sintaxe, com o nexo, só acontecem quando buscadas, intencionalmente provocadas.

Cai rapidamente por terra qualquer temor diante dos efeitos perversos do computador. Bem ao contrário, com as costas doendo menos e a correção imediata, nosso escritores estão escrevendo tão rápido quanto bem. Que alívio!

Na inteligente apresentação que Nelson de Oliveira faz de seus "irmãos de sangue e de ringue", o organizador procura mapear, ainda que rapidamente, o elenco escolhido e, a partir da constatação de que apenas uma mulher está presente, identifica "a predominância no panorama do conto brasileiro do homem branco de classe média, heterossexual e europeizado", concluindo, mais adiante, que ou os excêntricos (a mulher, o negro, o índio, o favelado, o homossexual) "nada têm a dizer com a literatura - preferindo, antes, a música, o cinema, o teatro e as artes plásticas - ou a literatura não é tão democrática como imaginamos".

No início de seu texto, Nelson de Oliveira, que também é escritor, já apontara que pouco se vendeu dos jovens autores dos anos 90 e quase nada foi editado em outros países. Talvez aí esteja a resposta à ausência de parte destes "excêntricos". Quanto às mulheres, tendo, tristemente, a concordar. Parece que elas andam mesmo ocupadas dirigindo empresas, freqüentando o fórum ou os canteiros de obra.

Diferentemente da poesia, na prosa de ficção são poucas as autoras mulheres que têm surgido. Colocar apenas uma, porém, nesta coleção, talvez seja exagero, já que o próprio organizador menciona dentre os contistas dos anos 90 que merecem ser citados o nome bastante festejado de Cláudia Lage e outros mais.

Qualquer seleção, porém, é, inevitavelmente, pessoal. Aí está mesmo parte da graça de uma "antologia". Quando o organizador é um crítico sagaz, há sempre uma proposta autoral que deve ser respeitada.
Diante da seleção escalada por Nelson, coloca-se, portanto, ainda uma vez, o perigo das escolhas, a questão da formação do cânone e a problemática do gosto. Heloisa Buarque de Hollanda, em seu livro Esses Poetas, deixa explícito o propósito de conferir como se dá a desestabilização do valor estético "em função das interpelações sobre sua legitimidade ética e literária promovida pelos grupos off cânone", reafirmando o caráter autoral de sua escolha. Apesar de sua já longa carreira como estudiosa da poesia brasileira moderna e contemporânea, capaz de legitimá-la como possível enunciadora de cânones, Heloisa Buarque prefere dizer que sua antologia expõe "apenas algumas afinidades eletivas".

Na apresentação, Nelson de Oliveira afirma, em tom dogmático, ser a sua uma antologia "dos melhores contistas surgidos na década de 90". Não precisa fazer afirmação tão dogmática. O trabalho é tão bem realizado, a garimpagem, tão extensa, que o antologista só teria a ganhar se reconhecesse que estes são os melhores contistas que estrearam nos 90, em sua opinião. Já na minha opinião de leitora interessada, Bernardo Carvalho não poderia faltar. Aberração me parece ser um dos mais importantes livros de contos surgidos na década de 1990. Ítalo Moriconi partilha desta escolha e vai mais além, colocando dentre os cem melhores do século "Estão apenas ensaiando", que Bernardo Carvalho publicou em 1999. Mas passemos ao tema da geração, bastante em voga.

Dos 17 contistas do livro, 16 têm entre 34 e 45 anos. Só Altair Martins escapa desta faixa com 26 anos. São originários de diferentes partes do país: São Paulo (a maioria), Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Ceará, o que não quer dizer que todos vivam em seus estados de origem, ainda que mantenham com eles relações sobretudo editoriais. Todos já foram publicados em livro e continuam sendo editados. A grande maioria recebeu alguns dos mais importantes prêmios do Brasil, alguns foram premiados no exterior.

À primeira vista, portanto, poderia parecer que estamos diante de um conjunto homogêneo, de uma literatura com marcas em comum. Ousaríamos suspeitar que um "estilo de época" se manifestasse no grupo. Quem sabe uma espécie de continuidade entre eles, ou, ao menos, a expressão de alguns "movimentos". Mas não, a principal marca desta amostragem de nossa literatura contemporânea pode ser identificada como a heterogeneidade na realização do texto. Diferem, e em muito, as propostas, as intenções e, principalmente, o formato.

A busca de novos formatos dentro do modelo em princípio limitante da short story é dominante. Poucos são os contos longos como "Céu Negro", o mais extenso, de Rubens Figueiredo, e ainda os de Altair Martins, os dois de Cíntia Moscovich e o João Batista Melo (41).

João Carrascoza experimenta, em "Duas tardes" o modelo dramático, criando um texto em tudo semelhante aos que se destinam a ser encenados, com apenas indicações de cena, e rubricas como: "Antônio se sentou no tamborete" ou "De pé, o cozinheiro olhou furtivamente para o irmão" entremeando os diálogos, sem que, nem por isso, o conto sofra aquela desagradável contaminação que os roteiros de TV espalham por aí. Não é uma transposição do abominável modelo roteiro, é uma formatação intencionalmente dramática.

O conto curtíssimo veio mesmo para ficar. Fernando Bonassi faz da sucessão de textos curtos sua marca, permitindo-se, com este recurso multiplicar marcas autorais, suspeitar dos "pontos de vista", brincar com tempo e espaço. Junto com a micronarrativa, exercita a frase curta, curtíssima, propõe um atrito feliz entre texto e título e torna qualquer flagrante do cotidiano impactante. Vale a pena reparar que, curiosamente, é neste autor tão pós-moderno que aparecem mais freqüentemente referências religiosas.

Também são curtos ou micro os contos de Cadão Volpato com seus personagens ao mesmo tempo moderninhos e tão comuns, restaurando uma continuidade entre as narrativas. Em Jorge Pieiro, quanto menor, melhor.

Se a busca por modificações no formato é bastante presente, o experimentalismo na linguagem deixou de ser uma obsessão.

Que o Marcelo Mirisola é um desbocado, já sabemos, não dá nem para mostrar neste texto o quanto. Mas a irreverência do autor serve ao humor, raro no livro, como no feliz "Bilac não voa de asa delta" e dá certo em interpelações que evocam os ídolos de uma geração no cinema, na TV, na literatura, como quando o personagem diz: "Me chama de Hemingway", "pedi pra ela me chamar Brando, Marlon Brando em 1972" (não é preciso dar detalhes sobre o contexto do diálogo para os que lembram do filme Último Tango em Paris). Curiosamente, Mirisola lida bem com a linguagem desabusada e a narrativa atravessada por uma sexualidade até excessiva, mas resulta mal nas referências à da violência demasiada.
Enquanto isso, os contos de Cíntia Moscovich, bem escritérrimos, primam pela linguagem cuidadosa, erudita sem ser pedante em imagens expressivas: "Os dentes postiços mastigavam pesados, a boca aberta, a liga pastosa de pão e queijo em revolução", mexendo-se, por vezes, na lâmina do espelho entre o sensível e o piegas sem escorregar nunca:

Notei que os pés procuravam os pedais: tocou a primeira nota com redobrada plangência, e o arpejo saiu-lhe como uma bordadura impetuosa. A dor tão reconhecível se ampliava em mim, mas para suportar a dor fomos feitos, até que, num momento de mágica, ela desaparece.

Escritura despudoradamente de mulher e capacidade de usar requintes de estilo como a vírgula antes do e como agradava tanto a Machado de Assis.

Tal diversidade de textos não poderia, evidentemente, deixar de ter também pontos, ou antes, temas, em comum. E também um problema: a dificuldade de vários deles em criar personagens, o que não é nada fácil no conto, mas é o forte, por exemplo, em Rubem Fonseca. A referência à própria literatura e ao processo criador é um desses temas em comum, como em "Carta", de Marçal Aquino e no comovente "A primeira semana depois do fim", do competente Mauro Pinheiro, conto dedicado a João Antônio e à solidão de sua morte.

Creio poder afirmar que é aí que está o mais contundente nesses contistas de fim de século: o medo da morte e da violência, a constatação da solidão inevitável, da impossibilidade da família, do consolo impossível de ser encontrado.

Numa sociedade em que talvez apenas Luiz Ruffato e Rubens Figueiredo, dentre os contemporaníssimos, lançam mão de um olhar onde haja marcas políticas, o individualismo agrava a certeza da impossibilidade das relações humanas e a cidade é sobretudo ameaça, mesmo quando olhada do alto da janela que provoca (várias vezes) desejos de um salto no espaço. Em "Imagens urbanas", Carlos Ribeiro sintetiza bem "a cidade que pesa no seu espírito", e afirma: "só agora tem a consciência de que ela nunca fora realmente sua. O homem anda pelas ruas desertas do seu apartamento, porque já não pode andar pelas ruas desertas".

Na ilusão de encontrar alívio para a tristeza que atravessa a grande maioria dos relatos, talvez o leitor corra para o autor mais jovem. "Sol na chuva à noite", de Altair Martins, é um belo conto, bem trabalhado, com um exercício de pluralidade da voz narrativa capaz de revelar toda a habilidade do contista sobretudo quando este assume a voz baixinha da mulher. Se o leitor, porém, morar em andar alto, é bom trancar a janela antes de começar a ler.

Um dos raros momentos de esperança no destino humano, na possibilidade de se encontrar algum conforto ao lado de alguém, aparece onde menos se espera: na narrativa que Rubens Figueiredo constrói a partir, mais uma vez, em sua produção literária, do olhar do excluído. No seu conto, um pedreiro envelhecido, em meio às dificuldades para levar uma vida de conforto mínimo e dignidade possível, busca alívio para sua solidão na companhia de jovens mulheres miseráveis, mães solteiras, para quem um liqüidificador é quase um tesouro. Com sua linguagem contida e seca, "No ônibus cheio, cada esbarrão que um passageiro lhe dava era o cumprimento de um amigo. Uma prova de que ele estava mesmo ali", Rubens Figueiredo mostra que no percurso desde a favela cercada de mangue à casinha no topo da ladeira, "não só os fatos mas também as vontades das pessoas andavam atadas umas às outras".

Se restava ainda alguma dúvida sobre os perigos do computador para a literatura, aí está "Céu Negro" para dissolvê-la de vez. Cada parágrafo de Rubens Figueiredo parece escrito a pena, não por qualquer resquício de estilo antiquado ou de alguma linguagem saudosa do parnasianismo, como às vezes aparece em alguns autores contemporâneos, geralmente poetas, mas porque nos deixa a impressão de que cada palavra foi antecedida do tempo que a pluma levava para ser molhada no tinteiro, dando ao escritor tempo para pesar a importância do risco que vai traçar. Lembro aqui o diz Italo Calvino: "A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório".

Talvez nesta dialética entre o soft e o hard que o uso do computador provoca esteja, sim, uma possibilidade de novos usos da velha língua. É mais uma luta onde escritor pode sucumbir, mas pode também, na vã luta com as palavras, sair vencedor.

Identificar ou não uma nova geração deixa, portanto, de ser importante, vale mais reencontrar, como em tantos momentos do livro, a boa e velha história curta, ou o conto, como dizemos por aqui.

Extrapolando esta análise que toma o conto como parâmetro da narrativa, não gostaria de deixar passar a oportunidade de registro e balanço de publicações de 2001 sem destacar o que considero um dos maiores romances dos últimos tempos: Barco a Seco, romance de maturidade de Rubens Figueiredo (São Paulo, Companhia das Letras, 2001).

Considerar Barco a Seco, de Rubens Figueiredo, um romance da maturidade é descobrir na sua última obra qualidades que não diminuem em nada os excelentes trabalhos anteriores, mas reconhecem uma continuidade autoral feita de somas e exigências redobradas.

A trajetória de Rubens Figueiredo tem sido feita de desafios corajosos, todos bem recebidos pela crítica. Em três romances, O Mistério da Samambaia Bailarina (1986), Essa Maldita Farinha (1987), A Festa do Milênio (1990) e dois livros de contos, O Livro dos Lobos (1994) e As Palavras Secretas, premiado pela Biblioteca Nacional como melhor livro de contos de 1998, o autor passou por narrativas experimentais e aproximou-se, por vezes, do fantástico e do absurdo, práticas pouco comuns na literatura brasileira. Em um país onde o conto tem espaço garantido, ser um contista de primeira ordem não é mérito fácil, mas, convenhamos, um romance é um romance.

O que nos permite falar em literatura da maturidade num autor nascido em 1956 é a linha de continuidade traçada desde o livro anterior, de contos, As Palavras Secretas, sobretudo do último conto: "Ilha do caranguejo", em direção ao romance, Barco a Seco.

Podemos destacar a força do tema da exclusão como presença dominante nos contos do livro anterior: na solidão do eremita, na perda de identidade da personagem que "troca de pele", no estranhamento dos coveiros tentando impedir que suas sombras sejam puxadas para dentro das covas e, especialmente, nos segregados personagens da miserável ilha dos caranguejos, perdidos em sua condição insular, entre tempestades, vendavais, o mar "profundo e bravio" empurrando as ondas e sacudindo os barcos "no impulso do caos que se agita no findo" e "caranguejos que não têm escrúpulos".

É este mar imenso, sedutor, perigoso, traiçoeiro que traça o limite, a "marca invisível", "uma fronteira, um litoral" que separa e une uma obra a outra e abre o romance em capítulo antológico:

Só um louco pode supor que o céu tem o tamanho dos seus olhos. Só uma criança pode acreditar que o mundo inteiro cabe no prato da sua fome.

Inicia-se a narrativa do convívio da arte com a privação, da sedução do belo com a contenção. Além da obsessão marítima, outras imagens são retomadas em Barco a Seco: "a minha sombra deslizava ao meu lado e devia medir uns seis metros", pesadelos revividos, como a ameaça da perda da identidade, tão forte quanto sua diluição na identidade do outro, as perdas que se acumulam, a vida reduzida ao sono na rua abraçado aos parcos pertences, à moradia no barco oscilante.

Em Barco a Seco, o pintor de marinhas, Emílio Veja, é a autoria a ser preservada, artista misterioso que o crítico deve proteger dos falsários: "fraudes são coisas que procriam sozinhas, nascem às cegas umas das outras, fervem e multiplicam-se em profusão, na linhagem de um sangue voraz". Cabe então ao personagem do crítico, Gaspar Dias, o narrador: "descobrir o que é verdadeiro, identificar e pôr de lado o que está errado, o que é falso. Mas na reverência das pessoas com relação ao perito se abriga um desejo de consolo, o apetite de uma submissão confortadora". Três mulheres completam a cena, a professora que socializa e aposta no jovem pesquisador, a dona da galeria: "tem de haver uma alavanca de autodestruição por trás do impulso que leva uma mulher a ter filhos", a namorada eventual, mediadora equilibrada e sem ambições de outros mundos de privações e de carências.

O que é especial nesta narrativa de securas, de afetos podados, é a representação materializada, a tradução em imagens de forte poder visual de toda emoção. A consciência do abandono é um escândalo que o menino carrega "bem firme nas mãos para ele não fugir, e a passos rápidos para ele não esfriar", assim como para o velho que conhece, até demais, os segredos do artista misterioso , "a tristeza é uma esponja com que o sofredor se esfrega, uma sede que nunca se sacia de sua secura".

Não há, por todo o romance, um só momento em que uma emoção se expresse a não ser por imagens de pura materialidade, pela descrição do espaço que circunda os personagens numa contaminação, pela expressão no mundo físico seja de cores, materiais, asperezas, corrosões.

A trajetória que transforma o menino miserável em um especialista capaz de reconhecer, como ninguém, a arte do bêbado artista destrutivo, pintor que faz de qualquer objeto suporte de sua arte, é um caminho de ressecamentos, de cicatrizações, mas também de sabedorias. É, sobretudo, o caminho da defesa incondicional da beleza que só a verdadeira obra de arte pode conter, chama que se irradia de um quadro e o faz inconfundível.

A maturidade na narrativa de Rubens Figueiredo está na sua economia e, simultaneamente, num alongar-se em detalhes antecipados pela imaginação, em descrições minuciosas e na construção de personagens cuja lenta apresentação só mesmo um romance pode abrigar, alguns apenas coadjuvantes que acenam para significações que vão bem além do enredo instigante, capaz de segurar a sedução do belo discurso. Botes a serem empurrados pelo leitor mar adentro.

A primeira pintura era um barco a seco. Um bote meio tombado sobre a areia da praia, quase esmagado contra o chão por um céu maciço, um céu escovado por nuvens.

Céu que nos protege na vida de artista, vida de privações e de riquezas. A seco.