A situação da narrativa no início do século XXI.

Inês de Portugal: mito, tela, texto: a viagem de uma narrativa

Maria Theresa Abelha Alves
UEFS

En verdad los hechos y los dichos de los que nos precedieron encierran semblanzas y ejemplos para los hombres de los tiempos nuevos; para que vea el hombre que piensa lo que a otros les sucedió y reflexione y saque de ello provechosa advertencia, y repase las crónicas de los antiguos pueblos y todo cuanto les acaeció a ellos y se contenga y ponga freno. (Assens, 1979, p. 379).
Y yo, entonces, te contaré un cuento en el que se cifrará, si Alá quiere, la salvación de todas las mujeres. (Assens, 1979, p. 392)

Trago, em epígrafe, As Mil e Uma Noites. Saudades de Sherazade? O famoso livro, ainda que não diretamente, mas por caminhos vicinais, acompanha o meu pensamento a respeito da ficção portuguesa contemporânea. A primeira citação foi retirada do "Proêmio" da obra atribuída a Sherazade e serve para ilustrar uma tendência da metaficção historiográfica, esta roupagem pós-moderna do romance histórico, que encontra no passado uma lição para o presente e que, simultaneamente, conta o outrora para reencontrá-lo outro, mediante o saber dos novos tempos. De "fatos", "crônicas" e "ditos dos que nos precederam" trata o romance que lhes vou apresentar.

A segunda epígrafe pertence à fábula do asno e do boi com que se inicia o Livro das Mil e Uma Noites, e focaliza a artimanha da contadora de histórias para encantar o rei Shariar, seu marido, e livrar-se da morte a que, como as anteriores esposas do rei, ela estaria condenada, enfim, a citação diz da grande subversão efetuada pelo contar: o ludíbrio da morte.

A portada da edição de Bulak dos famosos contos de Sherazade definem o Livro das Mil e Uma Noites como "El de los conocimientos maravillosos y las historias entretenidas, peregrinas" (Assens, 1979, p. [7]). Fios de estórias que viajam, fios que constroem maravilhas, fios que tecem vidas que nenhuma tesoura de Átropos é capaz de cortar, eis a mais perfeita metáfora para a literatura.

Não lhes vou narrar a astúcia de uma esposa para permanecer viva, mas o fado de uma amante a quem a literatura portuguesa não concede a morte. É da viagem de uma história por muitas outras, périplo de uma narrativa, que trata este meu texto que busca as novas artimanhas de Sherazade: contar para esquecer, contar para sempre lembrar, contar para reviver ou, mais especificamente, reescrever "fatos", "ditos", "crônicas" e gerar "conhecimentos maravilhosos" mediante a peregrinação das estórias.

1. Inês de Portugal no panorama da literatura e do cinema contemporâneos

Na "Nota Prévia" do romance Inês de Portugal, o autor dá a seguinte explicação:

Este romance baseia-se no guião que escrevi em colaboração com o realizador José Carlos de Oliveira para o filme Inês de Portugal [...]. Um filme e um livro sobre Pedro e Inês não me parecem de mais na [época da Grande Amnésia, que é a nossa (Aguiar, 1998, p. [6]).

Tais palavras sugerem que a época atual possibilita cruzamentos de vária ordem que a literatura procura registrar, como: literatura e cinema, literatura e história e promove câmbios de discursos e de seus doadores mediatizados pela dialética memória e olvido. Tais palavras ainda sustentam que o passado pode ser exemplar para o presente.

A cultura hodierna tem sido explicada por seu singular manejo da memória impessoal, pela recordação contínua de uma memória alheia, fruto labiríntico de cruzamentos de citações, fruto labiríntico da enciclopédia, trançado de estórias peregrinas que viajam de um para outro texto, de um autor para outro (Piglia, 1991, p. 61). Esses procedimentos não permanecem alheios ao romance português do final do século XX e dos primórdios do XXI. A recente produção romanesca portuguesa não só apresenta o intercâmbio de sujeitos, fomentando uma variável fonte de perspectiva e múltiplos pontos de olhar, mas também ilustra o imbricamento de espaços e tempos que deslizam e se combinam nas malhas discursivas. De forma caleidoscópica, os elementos constitutivos da ficção se vêem redesenhados. Ao multiplicar visões e discursos, o romance contemporâneo ilumina o saber peregrino da contemporaneidade e, em concomitância, exercita a paródia a semelhante conhecimento, ao evidenciar seu caráter lacunar, quer interrogando seus juízos e conceitos, quer duvidando de suas conclusões e certezas. Narrar para esquecer. Por outro lado, com grande mestria, trabalha sobre os ruídos da história e das histórias e tradições, dando lugar a uma constelação de discursos, a um mosaico de citações, e iluminando um incessante jogo de sentidos. Narrar para lembrar. Confirma, assim, que já não é possível outra musa ou outra inspiração que não seja estruturada pela tradição precedente, "memória impessoal, feita de citações, donde se falam todas as línguas" (Piglia, 1991, p. 60) e cujas recordações se tornam pessoais no choque do universo tópico da escrita com o utópico da literatura. Na superfície da letra dá-se, assim, a desconstrução das referências consolidadas, mediante a única possível palavra justa: aquela que busca a inscrição com a intenção de subvertê-la ao acentuá-la. Narrar para reescrever.

De modo semelhante trabalha a narrativa cinematográfica da atualidade européia que, de Godard a Wim Wenders e a modernos realizadores portugueses, tem construído "um cinema de cinéfilos, que integram em suas obras painéis inteiros da história do cinema através da prática da citação, do pastiche ou da paródia" (Vanoye/Gollot-Lété, 1994, p. 23). O cinema contemporâneo também tem exposto sua propensão à reflexividade, através de citações diretas ou indiretas, pois os cineastas também herdam e desviam. Desde a orquestração dos elementos fílmicos, elaborada por Griffith, sob a inspiração das técnicas narrativas de Dickens, que os laços entre literatura e cinema, entre tela e texto se têm estreitado à proporção mesma em que se diluem. O cruzamento entre literatura e cinema já apresenta uma trajetória considerável em Portugal. Grande parte dos filmes de Manuel de Oliveira, por exemplo, têm roteiros originados de romances ou que geraram posteriores textos literários. Nasce desse intercâmbio um entusiasmo estético que se tem fortalecido a cada nova experiência. Tal cruzamento leva à (ou provém da) equivalência das duas linguagens narrativas, mediante o roteiro, que é a escrita a ser traduzida por imagens, ponto neutro em que o abstrato da letra se transforma no concreto das figuras humanas, paisagísticas, e decorativas da tela.

O roteiro é o texto simbiótico, escrita que se quer cinema, entrelugar de acomodações que neutralizam diferenças e promovem mútuo intercâmbio, relação de reversibilidade possível e de possível homologia entre linguagens. Freqüentemente o roteiro se reporta a grandes esquemas narrativos provenientes do patrimônio universal ou nacional que se fazem suportes de conteúdos simbólicos e/ou míticos. Marcado por uma pontuação eminentemente híbrida, em que transparecem as especificidades de um roteiro que aproveitou os esquemas narrativos universais que conjugaram o amor à morte e os conteúdos que transformaram a saga de Inês, simbólica e miticamente, em macro-narrativa do amor em Portugal, o romance de João de Aguiar, nas sondagens do discurso pós-moderno, habita os territórios fronteiriços do dizer e do olhar, da literatura e do cinema, citando textos e tomadas célebres para esquecer, para lembrar, para refazer. O romance Inês de Portugal (Aguiar, 1998) é paradigma perfeito para uma literatura que só se concebe como espelho, no sentido inquietante e instigante de objeto que devolve a imagem, ou que só se concebe como tradução: tradução da história, de textos, de linguagens artísticas, da memória coletiva, obra que se tece como ressonância a todos esses ruídos, obra que é entrelace de outras, que é rede que amplifica a palavra e, que, de novo, engendra o milagre que transforma o verbo em carne para junto a nós habitar. No espelho do mito do amor-paixão, que uniu definitivamente Eros e Tânatos, a narrativa se mira. Na enciclopédia formada pela literatura inesiana, quer histórica, quer literária, encontra sua gênese.

2. Inês de Portugal e a enciclopédia

Camões, com seu saber de platonismos feito, num dos inigualáveis momentos líricos de sua epopéia, ao focalizar a lenda sobre a "fonte dos amores", pôde iluminar o rosto de Eros, no episódio de Inês de Castro. O nome da fonte - Amores -, conjuga-se com memória e com poesia. O épico admite que a "memória eterna" se constrói na e pela intermediação discursiva, pois é a textualização das "lágrimas choradas", isto é, dos dissabores amorosos, que se transforma na "fonte pura" de novos discursos sobre os amores de Inês. O romance de João de Aguiar parece reproduzir o convite camoniano "Vede que fresca fonte rega as flores, / Que lágrimas são a água e o nome Amores" (Camões, s/d, 144), ao registrar poeticamente a cumplicidade existente entre o amor e a palavra que o perpetua. É nessa confluência entre Eros e Logos, nesse vôo de Amor para Palavra que se torna fluência e eloqüência poéticas, que se compreende o romance Inês de Portugal como fecundo fruto da enciclopédia.

João de Aguiar buscou na Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes, e na Crônica de D. Afonso IV, de Rui de Pina, os motivos paradigmáticos de sua obra, como, antes dele, muitos outros escritores os foram buscar. É o próprio romancista quem diz, nas "notas" que acompanham o romance: "Inês de Portugal é um romance e não um ensaio de reconstituição histórica embora na sua elaboração eu me tenha socorrido das crónicas de Fernão Lopes e Rui de Pina" (Aguiar, 1998, p. 131). Os cronistas medievais edificaram os pontos nucleares do caso de amor entre o Infante Pedro de Portugal e uma das aias de sua legítima esposa. Nesses dois cronistas portugueses, e também na Crônica de D. Pedro, de Lopez de Ayala, harmonizaram-se os conceitos que, através dos tempos, haveriam de compor a estória de Pedro e Inês, transformando-a em fonte para outros discursos. Cada uma das crônicas dá uma versão do episódio. O romancista contemporâneo, ao buscar as múltiplas fontes, reconhece que a verdade historiográfica é questão de ponto de vista, tradução portanto. Assim fundamenta as diferentes versões sobre o caso, ao acompanhar a memória de cada uma das personagens envolvidas e ao acompanhar a memória de Inês, filtrada pela memória do amante, quando já coroado. No discurso de cada personagem, fica patente a associação do caso amoroso à palavra que o atualiza, na lógica de cada um dos discursos, vislumbra-se uma face de Eros e os muitos sentidos da paixão.

A epígrafe do romance, retirada da Crônica de D. Pedro, de Fernão Lopes: "Por que semelhante amor, qual El Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa" (Aguiar, 1998, p. [9]), aponta menos para o caráter histórico da narrativa que para o aspecto lendário que a tem acompanhado: a singularidade de uma relação que desafiou a lei da morte. Tal exceção é sublinhada por D. Pedro em diálogo com seu favorito, a respeito do amor que devotara e ainda devotava a Inês: "nunca houve nem haverá no mundo amor como este" (Aguiar, 1998, p. 38), motivo que se repete, também, no segundo episódio: "Não há no mundo amor como este [...]não houve nem haverá no mundo amor como este..." (Aguiar, 1998, p. 76). A cada momento, as ações régias comprovam o caráter ímpar desse amor e nos diálogos das demais personagens, como naquele travado entre a abadessa e Álvaro Pais, também se patenteia a singularidade dessa paixão. Embora enfatizando a lenda, o romance não deixa de apelar para a história, para evidenciar a tendência da literatura pós-moderna para o rompimento dos limites entre o fato e o ficto. Exemplo dessa ultrapassagem e interpenetração de fronteiras é a reprodução, na íntegra, do documento que celebrara o acordo de paz entre o Infante e seu pai, por obra da rainha D. Beatriz. O documento é histórico, mas o uso que dele é feito torna-o literário, pois as constantes paradas que o Escrivão faz na leitura do mesmo, a fim de consultar a rainha se deveria ou não prosseguir, denunciam o terror que sente diante da figura impassível do Príncipe e prenunciam a intenção do Infante de não ser fiel ao acordo celebrado. De igual modo, os olhares cruzados que D. Pedro lança aos assassinos de Inês presentes à cerimônia, e a desconfiança com que Álvaro Pais observa tais olhares do Príncipe carregam a cena da leitura do documento de uma intensidade dramática literária.

Inês de Portugal também se nutre e se faz eco de obras literárias que glosaram o tema inesiano, sublinhando a fatalidade e intensidade do desejo que jamais arrefece. Tal é o caso das "Trovas" de Garcia de Resende. Na época estava em voga a influência de díspares correntes literárias, de um lado, "uma linha que entronca no idealismo dos poetas da fin' amors" (Dias, 1978, p. 5), com alusão ao serviço amoroso, de outro, uma linha de cariz petrarquista, e, de outro, uma linha que recebe "influência dantesca, bebida através de poetas castelhanos da envergadura de um Juan de Mena ou de um Santillana, reflectida, essencialmente, na poesia de visões e, de modo muito particular, nos chamados infernos de amor" (Dias, 1978, p. 7). Fiel a seu tempo, o poeta do Cancioneiro Geral imaginou Inês de Castro a relatar, para exemplo de outras namoradas, sua desditosa sina. O romance contemporâneo traz para sua trama os motivos das "trovas" de Resende: fatalidade de um "bem" que é sempre "triste" e constância amorosa, a par do serviço do amador. Aproveitando a temática de uma fantasmagórica voz que se ergue das profundezas tumulares em que se encontra, o romancista contemporâneo concebe o par Pedro-Inês. Mergulhado em suas lembranças, "Só com os seus fantasmas" (Aguiar, 1988, p. 39), Pedro vive o inferno dos namorados, fantasma ele também, morto entre os vivos, pois só se reconhece como um ser do passado, só se define em consonância com a amada morta. É, pois, do inferno das recordações de Pedro que Inês se levanta, enquanto voz, e é do tema dantesco que a bela aia galega se ergue enquanto letra:

Um fantasma dentro de um fantasma, ambos num mundo de sombras, a recordar outro tempo em que viviam no mundo dos homens e sentiam na pele o calor do Sol, o vento e as carícias que um ao outro faziam. (Aguiar, 1998, p. 39-40)

Assim reduplicam o episódio da Divina Comédia, em que a bela Francesca descobrira que não existe "Nessum maggior dolore/ Che ricordarsi del tempo felice/ Nella miseria".

Camões buscou o artifício da verossimilhança, ao associar aos elementos tópico-paisagísticos dos campos do Mondego a beleza de Inês e a saga amorosa por ela protagonizada. De igual modo, João de Aguiar assegura a "veracidade" do narrado, por meio de precisas notações espaciais. Em Inês de Portugal, os espaços se desmembram em espaço real e espaço da memória. No primeiro, ocorrem os acontecimentos do presente da narrativa: prisão dos algozes de Inês; julgamento dos criminosos de Alcanede; colóquio amoroso entre Catarina Tosse, mulher do corregedor da corte, e Afonso Madeira; castração deste como castigo à traição feita ao Rei e a Lourenço Gonçalves; punição aos assassinos do bufarinheiro Judeu; morte dos assassinos de Inês; exumação dos restos mortais da personagem-título e seu traslado; pompa fúnebre em Alcobaça. No segundo, os episódios passados que a recordação de um ou outro personagem traz à cena. As ações do presente se passam em Santarém, Alcanede, Coimbra e, finalmente, Alcobaça. As ações passadas têm cenários vários: Lisboa; Chaves; Galiza, entre as muralhas de Monterrei; e o burgo de Canavezes. Esses espaços concretos se desdobram em espaços oníricos. D. Pedro, quando freqüentes vezes se ausenta, sonha com a alcova do castelo de Monterrei. Afonso Madeira, que conhece os silêncios régios, teme tais ausências porque tem consciência de que o Rei sai do espaço real para o onírico a fim de rever Inês em sua primeira noite de amor.

Outra obra que compõe o aparato intertextual de Inês de Portugal é a tragédia Castro, de António Ferreira, que dá um formato clássico ao assunto, trabalhando-o com os elementos da tragédia grega. O romance contemporâneo discute a condição de Inês como vítima inocente, caracterização que lhe deram algumas obras literárias contaminadas pelo conteúdo simbólico do nome Inês, proveniente do étimo agnus, o que conferia à amante de D. Pedro a condição de cordeiro sacrificial. O questionamento da inocência de Inês, que lança uma nova luz sobre os acontecimentos históricos, é, no romance, reminiscência de ecos corais. A opinião do povo é trazida ao romance através do discurso de personagens que, eventualmente, assumem o papel de Corifeu, tal é o caso do bobo da corte, Martim, pago por Álvaro Pais para escutar a conversa de Inês com seus irmãos e, posteriormente, informá-lo.

Martim relata a maneira ardilosa com que D. Álvaro e D. Fernando de Castro despertam a ambição de Inês para se tornar rainha de Portugal e também de Leão e Castela e, através do discurso avaliatório modalizante com que interpreta as palavras e o riso da moça, o bobo demonstra como a bela galega não ficara indiferente às intrigas dos irmãos e a seus maquiavélicos planos que incluíam a morte dos doentios e fracos herdeiros da coroa de Portugal e da coroa de Castela. Se às insinuações dos irmãos Inês argumentara: "Não cuido eu disso!", simulando não possuir ambições régias, seu riso a desmentira: "Mas o riso dela [...] não era descuidado, nem a ideia lhe era de todo estranha." (Aguiar, 1998, p. 32). É nessa passagem que, pela primeira vez, aparece o epíteto "Rainha de Portugal", atribuído a Inês, o que explica o título conferido ao romance. De forma crítica, por conseguinte, patenteia-se que tal título nasce de artimanhas e de ardis dos Castros que despertam, com astúcia, a ambição da irmã, sugerindo-lhe que sua futura realeza fazia parte dos planos divinos:

Atentai, Inês, que esse amor que o Infante vos tem é a vontade de Deus ordenando as vontades dos homens. Haveis de saber o que o destino entregou nas vossas mãos... [...] Uma coroa, Inês. Rainha de Portugal (Aguiar, 1998, p. 32).

Ao contrário de Castro, o romance contemporâneo não focaliza diretamente a figura do Rei D. Afonso IV. O drama por ele vivido entre as razões individuais e as razões de Estado são indiciadas pelas falas de seus conselheiros. Focaliza, no entanto, dramas semelhantes: o de Álvaro Pais, atormentado pelo sincero amor que devota a Pedro e o grande amor que tem por Portugal e que o faz colocar a salvação do reino "acima da salvação da alma do Rei" (Aguiar, 1998, p. 30); o de D. Beatriz, personagem dividida entre o amor de mãe e a condição de rainha.

O romance herda da tragédia Castro e, por tabela, da tragédia clássica, os stásima, porquanto cada capítulo é precedido de um canto salmódico, em latim, que antecipa e resume o conteúdo de cada parte. A primeira, que focaliza o desespero de D. Pedro e seu desejo de vingança, tem como salmo o canto "De profundis clamo ad te, Domine". A segunda, em que se ressalta a ação justiceira do Rei, é aberta com o salmo "Misereatur tui omnipotens Deus" e, finalmente, a terceira, que focaliza o traslado dos restos de Inês do convento de Santa Clara para o mosteiro de Alcobaça, culminando com a cerimônia de reconhecimento do possível casamento secreto dos amantes do Mondego, inicia-se com o canto salmódico "Per omnia saecula saeculorum". Tais cantos, que intitulam cada capítulo, apontam tanto para a fatalidade do amor, fonte da h´ybris do protagonista, como para a sacralidade do mesmo. Sacralizado, o amor se mitifica e se eterniza.

Na tragédia Castro, a h´ybris de D. Pedro era proveniente de seu amor por Inês que lhe roubava todo e qualquer outro interesse. De igual modo, no romance, é esse amor que lhe rouba a honra da palavra empenhada, pois que só a ele D. Pedro se sente obrigado. A h´ybris do personagem é a mesma em Castro e em Inês de Portugal. Na tragédia havia a idéia de que se sofre, por via dos atos e dos sofrimentos dos filhos, a desobediência devotada aos pais, maneira de condicionar os episódios históricos portugueses à convenção trágica de que "o herói herda uma situação de animosidade, e a volta do vingador constitui a catástrofe" (Frye, 1973, p. 205). A cadeia das malquerenças familiares insere o reino de Portugal na cadeia clássica das tragédias de família. D. Afonso IV, por conta disso, lembra as lutas que movera contra D. Dinis, seu pai. Esse sentido de herança trágica é convocado pelo romance, através das elucubrações de D. Beatriz que recorda as lutas do marido contra D. Dinis, contra o sobrinho, e contra o próprio filho. (Aguiar, 1998, p. 18).

Em Castro, as personagens estão sujeitas ao pathos, sofrimento crescente derivado do conflito interior ou do desconhecimento ou h´ybris de alguma delas que se reflete em todas. O romance retoma tais características. A hamartía primeira, que vai desencadear a primeira tragédia e, a partir desta, a tragédia da vingança, é a violação do parentesco. D. Pedro era primo de Inês, uma relação entre primos era considerada incestuosa pelas leis do tempo. Inês fora madrinha de batismo de D. Luís, primogênito de D. Pedro, morto pouco tempo depois de batizado, o que estreitava o parentesco entre ambos. Inês, no episódio da primeira noite de amor, cena fantasmática sempre presente na memória de Pedro, reconhecia a força da diké que sobre eles se impunha, o parentesco de sangue e o parentesco religioso, ao rememorar o ardil da Rainha D. Beatriz:

A Rainha chamou-me à sua câmara e disse-me: sois parenta do Infante meu filho, sereis madrinha do meu neto D. Luís; eu vo-lo ordeno. Assim nos ligaram por mais este parentesco. Assim nos ligaram para nos afastar. (Aguiar, 1998, p. 45)

O elemento trágico consiste no fato de que cada personagem possui um dever e uma razão, mas deveres e razões inconciliáveis que, radicalmente, contrapõem afetos e verdades, entre uns e outros. Álvaro Pais e João Afonso Tello se sujeitam à inquietação patética, sempre crescente, por julgarem danoso ao Reino o perjúrio do Rei. Álvaro Gonçalves e Pero Coelho são também sujeitos à inquietação patética pelo terror à iminente vingança de D. Pedro. Este, por sua vez, é também personagem patética tanto pela obsessão da vingança, só possível pelo perjúrio, quanto pelo tormento da onipresença de Inês, em todos os seus atos. O fim catastrófico dos algozes de Inês é a morte, o do Rei é o perjúrio, pelo qual o equilíbrio, ou némesis, se restabelece. A partir da consumação da vingança, clímax da ação, a peripécia que vem transformar a situação primeira é o reconhecimento de Inês como legítima esposa do Rei. Tal anagnórisis já se indicia a partir mesmo do título do romance. O romance Inês de Portugal sabe-se comprometido com a tragédia quando contrapõe ao mundo "puro e inconsciente" do animal o mundo humano que é "Mais pequeno e muito mais perigoso, capaz de provocar tragédias e catástrofes, porque é um universo consciente, feito unicamente de seres humanos" (Aguiar, 1998, p. 65).

O romance multiplica as cenas de sparagmós, como, por exemplo, o degolamento dos escudeiros Gil Fernandes e Rui Vasques, e a castração de Afonso Madeira, fazendo de cada uma delas a antecipação da vingança aos assassinos de Inês, fato de que o próprio vingador tem consciência, quando se explica: "eu vivo por mor da justiça.[...]em todo o criminoso hei-de eu fazer beber a minha sede. Do sangue daqueles que a mataram." (Aguiar, 1998, p. 72) O sparagmós final consiste, precisamente, na punição aos conselheiros de D. Afonso IV. (Aguiar, 1998, p. 108) É a partir de tal vingança que se dá a catharsis: "Quando tudo termina, Pedro solta um rugido fundo, discreto, um 'Aaah' íntimo de satisfação. Ergue a taça para que lhe deitem mais vinho." (Aguiar, 1998, p. 110)

Duas tragédias espanholas, de autoria do dominicano Frei Jerônimo Bermúdez, inspiradas na Castro, focalizam os dois momentos da saga inesiana. De um lado seu desditoso amor, e seu fatal fim, de outro sua glorificação pós-morte. Respectivamente, Nise lacrimosa e Nise laureada. É nesta última que João de Aguiar buscou os elementos concernentes ao coroamento póstumo de Inês. Primeiramente, através da legitimação de uma bula papal, como se a mesma tivesse sido destinada a Pedro e Inês, quando fora emitida para o casamento de D. Pedro com a Infanta Branca de Castela, casamento ajustado pelos respectivos reinos, mas que não chegou a se consumar, e, depois, através do juramento do Rei, possivelmente falso, com a aquiescência do Bispo da Guarda.

A tragédia grega apresentava as seguintes partes: prólogos, epeisódioi (geralmente três) e éxodos. Desde o V século antes de Cristo, impunha-se a obrigatoriedade de cinco atos. O romance contemporâneo também guarda resquícios de tal convenção, posto que apresenta, à guisa de prólogos, uma "Nota prévia", desenvolve sua ação em três capítulos, retomando os epeisódioi, e, finalmente, à maneira do éxodos, fornece outras "Notas". Durante a ação dos epeisódioi, a tensão pode ser criada a partir de presságios, sonhos, insinuações ou profecias. Tais elementos, pela condição ominosa que possuem, intensificam a expectativa. No romance, há a emergência do caráter ominoso da tragédia a partir de insinuações e perguntas deixadas ao vento, assim as reticências apontam para silêncios decodificáveis e os pontos de interrogação insinuam perguntas cujas respostas não são proferidas por medo de que se efetivem. Além da função ominosa, tais silêncios apontam para as lacunas da história oficial. Por exemplo, são meias palavras e silêncios que expõem, no diálogo do Conde de Barcelos e Álvaro Pais, o que os cronistas do tempo velaram: a relação homoerótica existente entre o Rei D. Pedro e seu escudeiro: "Sim, diz o conde, El-Rei quer muito a Afonso Madeira. E baixa a cabeça num embaraço que pretende esconder. Álvaro Pais desafia esse embaraço: - Muito. De mais. [...] o assunto perturba-os" (Aguiar, 1998, p. 28). Insinuando o que se escondera por trás do embaraço do conde, o romance antecipa e, ao mesmo tempo, justifica a sanha de D. Pedro contra seu escudeiro e a castração deste por justiça régia. Por justiça, por vingança e por despeito. Há, ainda, antecipações mediante símbolos, como a insistência na conjunção do vinho e do sangue, remetendo à fatalidade de que prazer e dor são sentimentos próximos. Depois de beber o vinho que lhe oferece o escudeiro, depois de ver sua face sanhuda refletida no vermelho líquido, o Rei pensa na vingança, de modo que o vinho antecipa o iminente derramamento de sangue e, numa inversão do aforismo popular "o vinho lhe subiu à cabeça" é o sangue que lhe sobe, fazendo-o excitar-se com as lembranças: "As recordações excitam-no, fazem-lhe correr o sangue mais depressa e subir-lhe à cabeça, como se para lá se tivesse mudado o coração" (Aguiar, 1998, p. 39). O sangue da iniciação amorosa de Inês, embebido pelo linho do lençol e empunhado por ela como bandeira, é outra prefiguração da vingança futura. D. Pedro é sempre comparado a animais ferozes, por exemplo, "um lobo esfaimado espreitando o rebanho no fundo do Inverno" (Aguiar, 1998, p. 49), o que lhe ressalta o caráter violento e sangüinário, sua caracterização, ao longo do romance, funciona como indício de sua futura e cruenta vingança. Os aforismos que se repetem são outros tantos elementos ominosos que antecipam o desfecho.

Como nas tragédias do passado, é a palavra que, no romance de João de Aguiar, desencadeia e sustenta a tragédia. O romance se faz de uma série de contratos que se estabelecem e que se desfazem por ação da palavra. O primeiro contrato, e o único que não se desfaz, é a jura de eterno amor e de eterno serviço que D. Pedro presta a Inês por altura da primeira noite de amor e que ele relembra em diálogo com Afonso Madeira, quando este pretendera fazê-lo desistir de vingar a morte da amada. Para Madeira, a vingança repercutiria mal no Reino e alhures, pois representaria o não cumprimento da palavra empenhada em Canavezes. Porém, contra os argumentos sociopolíticos do escudeiro, o Rei apresenta os argumentos subjetivos e existenciais de seu amor:

Que sabe o mundo de juramentos, Afonso? O juramento que eu lhe fiz, a ela e não ao meu pai e à minha mãe, o juramento que lhe fiz, só esse é verdadeiro e só esse conta e só esse me prende (Aguiar, 1998, p. 37-38).

Por fidelidade a esta palavra, será infiel a outra qualquer palavra empenhada. É o que inquieta Álvaro Pais. A tragédia da vingança se condensa no limiar entre as palavras ditas, empenhadas e/ou desrespeitadas, e as palavras poupadas pelo silêncio questionador de algumas das personagens. O que mais preocupa o Conde de Barcelos, João Afonso Tello, é que o rei quebre a palavra dada em Canavezes, e que subverta o aforismo "palavra de rei não volta atrás", por isso argumenta com o chanceler-mor: "A mim [...] dói-me sobretudo que ele possa quebrar a sua palavra, que é feia cousa e pecado maior por ser palavra de Rei". (Aguiar, 1998, p. 29) O receio de João Afonso Tello tem fundamento, porquanto cada quebra de contrato gera novos erros, novas ameaças que progridem em direção ao clímax trágico.
Das tragédias o romance ainda guarda outras facetas. Respeita, o quanto um romance pode respeitar, a regra das três unidades. O espaço real presente, onde se desenvolve a ação nuclear - a vingança -, é sempre o mesmo: o castelo de Santarém. É lá que o Rei recebe, interroga e pune os culpados da morte de Inês. O tempo, marcado pela alusão às horas canônicas, também é concentrado: a ação decorre entre o "toque das longas" (Aguiar, 1998, p. 23), do dia em que chegam escoltados os prisioneiros a Santarém, o dia seguinte em que o Rei vai fazer justiça em Alcanede, e o dia posterior, quando, com sua comitiva, regressa ao primitivo espaço, onde se realizará o festim do desagravo. Álvaro Pais demonstra ter tomado consciência da contenção temporal, quando pensa:

Como o tempo foge rápido: ainda agora, juraria, haviam os sinos de S. Francisco tocado a completas, porém já galos cantam, uma primeira claridade imprecisa começou a tingir o negro da noite sem Lua. E já soa o toque de laudes. (Aguiar, 1998, p. 61)

O alargamento espácio-temporal só se dá mediante a memória das personagens que, proustianamente, é acionada por pequenos detalhes que desencadeiam o fluxo da recordação. Assim o toque de longas faz Álvaro Pais, numa fração de segundos, por ação da memória, fugir para o burgo de Canavezes, para os idos de 1355, e outra vez presenciar o juramento do Infante, diante de sua mãe, de que daria fim à guerra civil que movera contra o pai e de que não puniria os que, por conselho ou ação, foram culpados da morte de Inês. Toda a ação passada é rememorada durante uma curta fração do tempo cronológico, isto é, enquanto as "longas" estão a soar. As imagens surgem de forma fantasmática, o que leva o narrador a observar: "[...]e era um verdadeiro spectro, o da memória" (Aguiar, 1998, p. 23). Assim também, ao ouvir de João Afonso Tello que a bela aia "parecia inocente", Álvaro Pais volta ao tempo em que os irmãos de Inês foram visitá-la, e a máscara de inocência da galega caíra, ante os olhos e os ouvidos atentos do bobo Martim. Ao ouvir o toque das completas, Afonso Tello tem a memória ocupada pelo sarau do castelo de Lisboa em que toda a corte presenciara os olhares apaixonados lançados pelo Infante à aia de D. Constança, ao som da cantiga de amor de El-Rei D. Dinis, cujo refrão denunciava que D. Pedro não se via nem como Rei, nem como Infante, só como amante: "por tan bem andande / que por rei nem iffante / des ali adeante / nom me canbharia" (Aguiar, 1998, p. 56-57). Cada um, enquanto rememorante que é, torna-se narrador onisciente do episódio que relembra, penetrando no pensamento e nas intenções das demais personagens. Tal processo de focalização encena um jogo de narradores e um jogo de memórias que ora se complementam, ora se equivalem, ora se opõem.

O tema do amor fatal de Inês e Pedro chegou ao final do século XIX e início do XX em obras que iluminavam principalmente a figura do Infante, pois esta era mais passível de reconstituição histórica. Numa dessas obras, o drama histórico A Morta, de Henrique Lopes de Mendonça, João de Aguiar buscou a influência póstuma que Inês teria exercido sobre o Rei D. Pedro, principalmente no que concerne ao seu senso de justiça, daí a insistência no tema trágico da vingança. João de Aguiar, com o seu romance, atualiza e revaloriza elementos da tradição literária inesiana e, com invulgar competência, ilustra a opção enciclopédica do atual romance português.

3. Inês de Portugal e o espelho

O amor infeliz de Pedro e Inês foi tantas vezes recriado pela literatura, por conter características míticas capazes de o colocar entre as grandes narrativas de amores fatais, ao espelho dos pares medievais Tristão e Isolda, primeiros arquétipos do amor-paixão. Numa leitura arguta das teses de Rougemont sobre o surgimento da paixão no Ocidente, a partir do grande mito do adultério inscrito no romance medieval, José Miguel Wisnik observa que

O fascínio do amor-paixão produziu uma longa trilha de influências na literatura amorosa e serviu para fazer do tema um clichê de larga incidência no romance romântico e nas novelas de massa (Wisnik, 1989, p. 195).

O romance Inês de Portugal nasceu do roteiro escrito por seu autor para um filme, arte de massa do século XX. É por isso que recupera os lugares-comuns daquele romance de amor cantado e vivido na Idade Média: amor adúltero, amor infeliz, amor fatal que leva à morte. Como no modelo mítico, o casal Pedro e Inês, subvertendo as regras de parentesco e os interesses de Estado que presidiam os casamentos de príncipes e reis, punha em perigo a organização da sociedade. Por isso Inês deveria morrer. Se no mito os carvalhos se entrelaçaram sobre a capela onde jaziam os corpos dos amantes, na história real portuguesa, os túmulos, mandados colocar frente a frente, no mosteiro de Alcobaça, cumpriam a mesma função: demonstrar que o amor vencera a lei da morte, vigorando para a eternidade. (Vasconcellos, 1972, p. 39-40). Tal simbologia é sublinhada em Inês de Portugal, pois, segundo o Rei, os túmulos lá estariam, aguardando "o tempo do reencontro, quando os mortos se levantarem na ressurreição da carne". (Aguiar, 1998, p. 127)

João de Aguiar descentra o ponto de focalização, fazendo-o passear por personagens que, nas narrativas anteriores, ou não apareciam ou apareciam de forma secundária. Privilegia, por exemplo, a figura do chanceler-mor. Tal procedimento descentralizador da argumentação régia, no que concerne àquele "caso triste e dino de memória" (Camões, s/d, p. 140), foi iniciado com o conto "Teorema", de Herberto Helder, em que o ponto de vista não é mais o de D. Pedro ou o de D. Afonso IV e seus conselheiros, mas sim o do assassino Pero Coelho. O conto é, precisamente, a demonstração teorética de que a morte de Inês era a condição primeira para que o amor de D. Pedro não fenecesse e para que o casal de apaixonados fosse transformado em mito e eternizado na linguagem artística. Pero Coelho, enquanto personagem de "Teorema", tem consciência de seu papel, por isso repete: "Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei" (Helder, 1964, p. 110), pois sabe que foi a morte de Inês que perpetuou seu desditoso amor, por isso, na hora da vingança de D. Pedro, agradece-lhe a própria morte e lhe oferece a de Inês, como se fora o oficiante de um ritual necessário para, posteriormente, se tornar a vítima de um sacrifício igualmente necessário. Toda a cena da vingança de D. Pedro, retirada do coração do assassino para depois o comer diante da populaça, adquire a conotação de um ritual sagrado, em que a antropofagia é homóloga à comunhão que perpetua a morte, tornando-a vida, porque, como no mito, "a morte prolonga a paixão, supera o limite que a mata, põe fim ao fim" (Wisnik, 1989, p. 211).

Em sintonia com as cantigas trovadorescas que celebraram a díade amor e morte, o romance reproduz alguns dos procedimentos estilísticos dos cantares medievais, tais como dobres, mosdobres e paralelismos semânticos. Até o recurso do leixa-pren é acionado. Por exemplo, no início do romance, quando Álvaro Pais está prestes a rememorar o juramento de Canavezes, são repetidos os sintagmas "Um bom rei" e "Foi num dia como hoje" (Aguiar, 1998, p. 15). Repetidos, funcionam como dobres e, por sua correlação anafórica, adquirem, ainda, a função de estruturadores de um certo paralelismo, o que vem sublinhado pelo artifício de o primeiro bloco narrativo, localizado no presente do enunciado, findar com a expressão "Foi num dia como hoje, de sol e de vento" e o segundo, que diz respeito ao passado do enunciado, iniciar com a expressão "Um dia de sol e de vento" (Aguiar, 1998, p. 15), e findar com a expressão "É um dia de sol e de vento" (Aguiar, 1998, p. 17). A expressão deixada é, depois, recuperada, numa evidente renovação do leixa-pren. De igual modo, é repetido o sintagma "a lembrança da primeira vez" (Aguiar, 1998, p. 40). Como a ação do romance se desenvolve entre juras e perjúrios, entre o amor e a vingança, os verbos jurar, vingar e amar são repetidos em diversas flexões modo-temporais, numa autêntica recuperação do mosdobre medieval. Arcaísmos vocabulares também são convocados a fim de criar a verossimilhança e de reviver a atmosfera das cantigas, a partir da linguagem. Assim Inês é caracterizada como "bem talhada" (Aguiar, 1998, p. 55; 56). Todo o colóquio amoroso entre Afonso Madeira e Catarina Tosse é marcado por conceitos expressos pelas cantigas de amor: a atitude de vassalagem do amador diante de sua senhora, o cuidar e o suspirar do trovador que se questiona: "Como poderei eu ser ledo e folgar?" (Aguiar, 1998, p. 69). O amor de Afonso Madeira reduplicará, na narrativa, o amor impossível de Pedro e Inês e, por conseguinte, também se espelha no mito medieval do amor-paixão, com sua carga de adultério, impossibilidade, tristeza, fatalidade, e punição social. A cantiga de D. Dinis que é cantada, no sarau de Lisboa, também reproduz os conceitos míticos. A cantiga, os amores fatais de Pedro e Inês e de Afonso Madeira e Catarina Tosse criam espelhos que se refletem enquanto refletem e retomam o mito medieval do amor-paixão.

O romance medieval Tristão e Isolda gerou os conceitos que as cantigas de amor veiculariam e que seriam depois retomados por outras obras, como o foram por Inês de Portugal. Entre tais conceitos se impunha a relação do amor com o segredo, porque a paixão adúltera se efetiva como lugar sem lugar, num contraponto antitético com o casamento. (Wisnik, 1989, p. 198). As cantigas trovadorescas sublinharam o adultério através do "filhamento" de uma dama por seu amante, como o fez, por exemplo, a "Cantiga da Garvaia". O romance expõe a sintonia com a cantiga medieval e com o conceito mítico, através das palavras de D. Pedro: "Conheço eu uma, D. Inês de Castro, filhada por um infante casado com outra dona" (Aguiar, 1998, p. 43). Em Inês de Portugal fica patente o condicionamento da paixão ao segredo, quando D. Pedro sonha com "A lembrança da vez primeira, temperada com a delícia do segredo, das coisas escondidas" (Aguiar, 1998, p. 40). Enquanto o espaço social é hostil, o espaço do segredo é encantado, porque o lugar utópico - a realização do encontro interdito - torna-se tópico. O diálogo dos amantes o confirma.

A lenda de Tristão e Isolda passou para as cantigas medievais e para posteriores obras a associação da paixão ao sagrado, este expresso ou por direta alusão a Deus, ou por elementos mágicos. O romance contemporâneo também não ficou alheio a isso. Assim, durante a noite da iniciação amorosa do casal, Pedro e Inês ratificam a sacralidade da paixão, mediante a solenidade de consentimento do amor, casamento ritual diante do testemunho divino. Por outro lado, os conselheiros régios e o povo acreditavam que Inês havia enfeitiçado Pedro, por artifícios da magia. A partir da crença, que era comum no tempo do enunciado, de que Inês enfeitiçara o Infante, o romance abre seu leque intertextual e vai ao encontro de uma lenda do século XI em que a paixão é decorrente do feitiço lançado a um nobre por uma dama galega, misto de demônio e mulher. A cavalgada de Pedro ao encontro de Inês, em Monterrei, como se nada a seu redor importasse, como se estivesse cego ao mundo circundante, lembra a cavalgada onírica do nobre Astrigildo Alvo para encontrar-se com a Condessa, esposa de Argemiro o Negro, por três noites seguidas, na narrativa que Herculano dedica à referida lenda. Se a personagem de Alexandre Herculano galopava sem parar, igualmente D. Pedro não pára: "Galopa em frente, sem se deter, salta regatos e cercas, pisa terras de centeio e de vinha, não vê pastores nem rebanhos que se tresmalham espavoridos à sua passagem" (Aguiar, 1998, p. 40). E se Astrigildo cavalgava em direção à sua dama por efeito de uma magia que o fazia sonhar, é como se estivesse sonhando que Pedro vai a Monterrei:

Como num sonho atravessa o burgo, passa a barbacã, como num sonho recebe as boas-vindas de Álvaro Castro. E ainda como num sonho que se ouve a si mesmo perguntar: - E vossa irmã, D. Inês? (Aguiar, 1998, p. 41)

O romance contemporâneo também explora os motivos míticos da cegueira e da loucura dos amantes. A paixão de Pedro por Inês impede que ele perceba o jogo de ser e de parecer que estrutura a figura da bela aia de Constança. Ele a vê como inocente, pois está cego à ambição que ela demonstrava em ser rainha e mãe de reis. O amor torna Pedro incapaz de vê-la como de fato ela é, pois se encontra totalmente preso à sedução, ao seu feitiço, à magia, aos encantos que a dama galega sabia muito bem usar para encobrir seus interesses. Porque cego de amor, Pedro será levado à loucura da paixão cujo ápice é a cruenta vingança que move contra os assassinos da amada. O romance fornece muitos indícios da loucura régia, entre eles seus gritos furiosos que soam como uma "espécie de rugido" (Aguiar, 1998, p. 52), suas gargalhadas e, sobretudo, sua vingança que é acompanhada de sadismo, ao troçar com o nome de um dos algozes, Pero Coelho, o que foi considerado um verdadeiro "rasgo de loucura" (Aguiar, 1998, p. 53).
Por mirar-se no espelho do mito medieval do amor-paixão, Inês de Portugal, em sua trama romanesca, retém os conceitos míticos, um a um, e, um a um, os recria, deixando bem claro que um grande amor só se diz pela linguagem poética. Ao relembrar as sensações vividas no passado, após a iniciação amorosa, quando já haviam sido sulcados os lençóis pelos corpos dos amantes, Pedro reconhece "o assombro de ter vivido momentos tais que só os conhecia de os ouvir tenuemente sugeridos no canto dos segréis e trovadores" (Aguiar, 1998, p. 41). Daí a insistência na alusão aos cantares medievais, daí as constantes alusões a El-Rei D. Dinis, não só quando reproduz um cantar do Rei-trovador, como quando Pedro se sente inferior ao avô por não lhe ter herdado a veia poética para celebrar condignamente seu amor por Inês. Trata-se, por conseguinte, de inserir o caso fatal entre a cadeia mítica, pois "a paixão só se diz, em última instância, pelo canto, pela música" (Wisnik, 1989, p. 206), pela palavra poética que, desde a saga de Tristão e Isolda, tem reproduzido o rosto da paixão e continuamente, tem convidado a história e seus heróis, a memória e seus ruídos, a sempre novos vôos. No caso particular da saga inesiana, é a palavra poética que tem mantido viva a "linda Inês".

4. Inês de Portugal e o cinema

Por se ter originado de um guião cinematográfico, o romance expõe sua condição primeira pelo forte teor plástico de que se investe, obrigando o leitor a ser também espectador. As seqüências narrativas são, na verdade, grandes cenas, que se abrem e que se fecham por mudanças de planos, como ocorre com as seqüências fílmicas. Tão próximas estão dos elementos inerentes ao cinema que se deixam analisar como se fossem propriamente cenas de filmes. À guisa de exemplificação, vamos abordar as três primeiras.

A primeira delas é interna, e se passa num aposento da alcáçova, onde crepita uma lareira e um escabelo constitui o único mobiliário. O enquadramento se dá sobre a figura de Álvaro Pais, em tomada frontal, em plano americano. Segue-se, de imediato, um plano de detalhe sobre o fogo da lareira, em tomada lateral. Uma e outra tomada se realizam como planos fixos. Logo depois, num plano em movimento, dá-se um travelling que acompanha um moço de câmara que se endereça à lareira e lá atiça o fogo. O enquadramento volta a ser feito sobre a figura do chanceler-mor de D. Pedro I, agora em plano próximo, a fim de exibir-lhe o estremecimento, enquanto, em off, ouvem-se os toques das longas. Do plano próximo, passa-se ao primeiro plano que surpreende o irritado menear de cabeça da personagem e sua respiração profunda. O enquadramento do rosto de Álvaro Pais se dá por um efeito de zoom de aproximação. A focalização se alterna entre o chanceler e o fogo, de modo a estabelecer uma significativa antítese: quente do cenário versus temperatura interior da personagem. A última tomada desta seqüência incide sobre Álvaro Pais, exibindo-lhe o fechar de olhos. Dá-se um corte, e, graficamente, o raccord se marca por um espaçamento maior entre os parágrafos.

O fechar de olhos, na cena anterior, equivale à abertura para o tempo da memória que, em flashback, vai em busca de um dia perdido no passado, atmosfericamente similar ao do presente: um dia de sol e de vento. Em oposição à primeira, a nova seqüência é externa, em plano geral ou de grande conjunto. Um travelling desliza da focalização do rodopio da poeira sob a ação do vento para os tetos e portas dos casebres incendiados pela guerra. O insert sobre o rodopio da poeira adquire conotações dramáticas, em consonância com a tradição cinematográfica que ensina a ver no vento exterior o símbolo da inquietação interior das personagens, constituindo-se, portanto, citação de efeitos de filmes de suspense, à maneira de Hitchcock.

Primeira e segunda seqüências se constroem "em paralelo", porém todo o desenho da segunda delas se faz "em colchete", mediante a montagem de muitos planos que exibem a mesma ordem de acontecimentos: a guerra que D. Pedro movera contra seu pai e as negociações de paz encabeçadas pela rainha. Alternadamente são surpreendidas as chegadas de D. Beatriz e do Infante. Enquanto a chegada daquela é abençoada e aclamada pela arraia-miúda, a deste é acolhida com o silenciar das vozes. Ouvem-se apenas os ruídos do chocar de metal contra metal, o barulho das patas dos cavalos e o resfolegar dos mesmos. Esta seqüência trabalha intencionalmente a trilha sonora, mediante sons, ruídos e silêncios que se alternam, sublinhando as oposições que se criam entre o poder real, representado por D. Beatriz, o poder subversivo do Infante, e os interesses do povo. A orquestração dos motivos visuais e sonoros adquire uma função argumentativa, tendendo a exprimir idéias e valores, de modo a iluminar a significação histórica dos acontecimentos, tornando, à maneira do cinema de Eisenstein ou Pudovkin, patéticos os embates das três razões. A cor é também trabalhada intencionalmente, havendo predominância do preto, do vermelho e do cinzento: uma, a cor das labaredas; outra, das vestes e bandeiras do Príncipe; outra, dos destroços da guerra, a simbolizarem novas lutas, novo luto e o antigo e sempre mesmo ardor da paixão.

Nessas duas primeiras seqüências, tanto o ponto de vista, quanto o ponto de escuta são subjetivos e pertencem a Álvaro Pais. A segunda se fecha com o afastamento da hoste de D. Pedro. Esta se perde no horizonte e suas imagens são substituídas pela poeira que tudo nubla, mediante um raccord por escurecimento, que retoma cenas célebres de John Ford.

Como a primeira, a terceira seqüência é interna: interior da tenda real "que oscila ligeiramente a cada assalto da ventania" (Aguiar, 1998, p. 17). O enquadramento se faz sobre D. Beatriz que olha, à sua volta. O movimento da câmara, em travelling, reproduz o olhar da rainha que surpreende o arcebispo que dormita, o escrivão que consulta um documento, e os algozes de Inês. Todos estão em silêncio. Os atalaias rompem o silêncio e avisam que o Infante se aproxima. De um ângulo Beatriz tudo observa, de outro, Álvaro Pais observa tudo. Todas as tomadas, alternativamente, incidem sobre um ou outro ponto de vista. A circularidade ótica que se forma faz D. Beatriz, em flashback, recordar-se do primeiro olhar que seu filho lançou para a prima de quem viria a ser amante, do paço de Coimbra em que ambos viveram juntos, dos bastardos que restaram como herança do adultério. Tais recordações se produzem "em colchete" para ratificarem o ponto de vista da rainha de que a paixão de seu filho por Inês foi um mal. O silêncio é rompido por toques de charamela, ruído de vozes, chiar de arreios, e som dos passos de D. Pedro, em off. Segue-se um plano de detalhe que incide sobre a cortina que cobre a porta da tenda e que é afastada por D. Pedro que pára e olha o interior da mesma, passeando o olhar sobre todos que lá estão e fixando os assassinos de Inês. Assim como Pedro olha, é olhado pelos demais presentes, em montagens paralelas ou alternadas. Em tomada frontal, em plano americano, é narrado o encontro de D. Pedro e sua mãe. "Pedro avança e dobra um joelho diante da Rainha". "Beatriz sorri, estende-lhe a mão que ele beija" (Aguiar, 1998, p. 20), num plano de detalhe. A seguir, o enquadramento passa da rainha para o escrivão que lê um documento em voz alta e deste para o Infante que jura aquilo que o documento firmava. Nesta cena, os pontos de vista e de escuta variam. O raccord se processa mediante o "toque das longas". O mesmo que fora ouvido por Álvaro Pais na primeira seqüência.

Por essa mostra, percebe-se que o encadeamento das cenas se desenvolve por uma dinâmica causal que repousa na flexibilidade do ponto de vista, ou pontos de vista múltiplos, e nos inúmeros flashbacks, à maneira de Resnais, onde os vínculos não se fazem a partir dos gestos, mas dos movimentos ou olhares, de acordo com um ritmo narrativo que orquestra o visto e o pensado, confundindo as fronteiras entre subjetividade (de cada personagem) e objetividade (do que é mostrado), numa consciente manipulação do tempo narrativo que produz efeitos de confusão entre o concreto e o imaginado, entre passado e presente. Exercitando a propensão da moderna narrativa para a reflexividade, enquanto cinema, Inês de Portugal integra obras que a precederam; assim, sonhos, alucinações e fantasias se mostram, sem transição entre elas e o presente objetivo, à maneira de Bergman, Fellini, Saura ou Buñuel, enfim, como cinema é também enciclopédia e espelho, como cinema, também narra para esquecer, para lembrar, para reescrever.

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