A situação da narrativa no início do século XXI.

Por que tanta saudade de Sherazade? A revitalização da narrativa moderna depois da exaustão das vanguardas modernistas

Celso Francisco Maduro Coelho[*]

Sherazade, a contadora de histórias de As Mil e Uma Noites[1], quando se apresenta ao rei Shariar, para desposá-lo àquela noite, tem o intuito de suspender uma lei atroz, instituída pelo próprio soberano. O sultão, desiludido com a traição de sua primeira esposa e convencido "de que não havia mulher alguma de cuja fidelidade pudesse estar seguro, decidiu que casaria cada noite com uma [jovem], que seria morta ao alvorecer do dia seguinte" (2000:12). Desta maneira, o reino estava aterrorizado, temia por suas filhas e acordava com a execução da terrível sentença. Por sua vez, o grão-vizir, pai de Sherazade, era obrigado a estrangular, com as próprias mãos, a vítima que havia trazido ao rei na noite anterior (2000:12-13). No entanto, qual não foi a surpresa e a felicidade do grão-vizir, quando, no dia seguinte ao casamento da jovem Sherazade com o rei Shariar, este não lhe ordenou que matasse a filha (2000:25). O que teria acontecido? Sherazade havia feito o seguinte pedido a sua irmã mais nova, Dinarzade:

- Querida irmã, necessito de tua ajuda num assunto muito importante. Vou ser esposa do sultão. Não te assustes com essa notícia e ouve-me com calma. Quando chegar ao palácio pedirei a Shariar que te permita passar a noite no aposento ao lado, para que eu desfrute pela última vez de tua companhia. Se, como espero, ele me conceder esse favor, cuida de me despertar uma hora antes do despontar do dia, e me dirás então: "Irmã, se estás desperta, rogo-te que me contes umas dessas preciosas histórias que sabes, antes que chegue a aurora." Eu te contarei uma história e desse modo tão simples acredito poder livrar meu povo da desgraça que pesa sobre ele. (2000:20-21)

O artifício colocado em prática por Sherazade teve o efeito esperado, pois, suspendendo a narrativa ao alvorecer e pedindo ao rei Shariar para continuá-la na noite seguinte, conseguiu adiar sua execução, o que se repetiu por mil noites, até que o sultão já não guardava mais ressentimentos em seu coração e liberou sua encantadora esposa da condenação (2000:157). Desta maneira, ao longo das mil e uma noites, Sherazade não somente seduziu o rei Shariar com suas histórias, fazendo-o suspender a sentença que pesava sobre ela, como também derrotou o autoritarismo, demovendo o sultão da idéia fixa de desposar, amar e matar uma jovem a cada dia. Por extensão, podemos afirmar que Sherazade vence o tempo devorador de vidas, o tempo do deus Cronos, conforme a acepção que lhe dá Gilles Deleuze na Lógica do Sentido.

De acordo com esse filósofo francês, Cronos só reconhece o presente entre as três dimensões do tempo. Apenas o presente preenche o tempo. Passado e futuro existem somente em relação a um presente. Eles próprios, em relação aos seus próprios passado e futuro, podem ser presentes. Também podem ser incorporados por um presente mais vasto. Neste sentido, um presente mais poderoso, como o do rei Shariar, pode englobar os diversos presentes de corpos mais fracos, como aqueles das suas vítimas, promovendo misturas corporais (1974:167). No caso, do corpo do sultão com os corpos de suas súditas, mas, também, de todos os corpos assimilados pelo corpo mais forte. Entretanto, o presente do rei Shariar não é ilimitado. É característica constituinte do presente a delimitação (1974:168). "O presente mede a ação dos corpos." (1974:167). Contudo, mesmo limitado, o presente crônico pode ser infinito. Isto é possível porque o tempo de Cronos é circular, circunscreve um período, para, depois, repeti-lo, de forma idêntica, sucessivamente (1974:168). Assim, faz Shariar, à medida que, a cada alvorecer, fecha e abre um novo ciclo, mandando matar a esposa da véspera e casando com outra jovem.

No entanto, a delimitação do tempo crônico pode ser boa. Exemplifiquemos com o reinado do pai de Shariar, um rei sábio, cujo presente mais vasto abarcou a vida de seus súditos. Por outro lado, a medida temporal pode ser má. Isto ocorre, quando ela perturba o presente, subverte a medida dos corpos e produz um devir alucinado, que, pouco a pouco, ganha o universo e produz uma mistura venenosa, monstruosa e subversiva. É isto a que assistimos diante do movimento corporal desmesurado de Shariar, o qual abarca todo o reino, atinge todas as pessoas e ameaça a vida de todos os súditos. Desta maneira, o reinado de Shariar recebe uma ameaça de dentro, na medida em que tira a vida de outros corpos, provocando a ira do povo (1974:168). Também podemos dizer que Shariar, enquanto corpo que abarca outros corpos, enquanto presente crônico, deseja morrer. Ao instaurar um devir ensandecido, o sultão evita o presente de casado, ganhando o futuro de viúvo. Porém, não pode anular a paixão por outros corpos, o que o leva a restaurar no futuro, o passado de casado. Esta é a vingança do passado e do futuro sobre o presente crônico. Assim, Shariar revive alternadamente um agora de casado e um agora de viúvo, os quais só podem ser expressados através de um novo presente, que, apenas, repete a monstruosidade do período anterior (1974:167-169). Enfim, a existência crônica de Shariar, através do devir delirante que criou, expressa o seu desejo de morrer, mas não morre. Ao contrário, mantém-se como um presente devorador de vidas.

É, neste contexto crônico, que Sherazade insere uma nova concepção de tempo, denominada por Deleuze, na Lógica do Sentido, como Aion. Nesta nova temporalidade, o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo. Eles dividem o presente, transformando-o num instante, do qual partem um passado e um futuro infinitos (1974:169). Este instante, por sua vez, pode se deslocar na linha temporal do Aion (1974:171), dividindo, em outro ponto, o presente em passado e futuro infinitos. É o que faz Sherazade ao longo das mil e uma noites. No momento em que já é dada como morta, mas ainda não morreu, narra as suas histórias (1974:66). Através das narrativas, avança, insistentemente, tanto para o futuro como para o passado, na medida em que recupera os contos da tradição oral. Ainda conforme o filósofo francês, se Cronos engendra o devir das profundidades corporais, que produz a mistura dos corpos, Aion produz o devir dos efeitos incorporais da superfície (1974:170). Lembremo-nos, respectivamente, dos corpos das vítimas de Shariar, os quais se amontoam indistintamente no passado, e das histórias de Sherazade, as quais conquistam, pelo encanto das palavras, o resultado almejado, a distinção particular da contadora de histórias, ou seja, sua identidade.

Todavia, continuemos a enumeração das diferenças apontadas por Deleuze: se Cronos esquiva o presente através do agora, Aion evita o presente por meio do instante; se Cronos exprime a ação dos corpos e a criação das qualidades corporais, Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos atributos distintivos das qualidades; se Cronos é inseparável dos corpos que o preenchiam, Aion é povoado de efeitos incorporais; se Cronos é limitado e infinito, Aion é ilimitado como o futuro e o passado, mas finito como o instante; se Cronos é inseparável da circularidade e dos acidentes desta circularidade como bloqueios ou precipitações, explosões, desencaixes, endurecimentos, Aion se estende em linha reta, ilimitada nos dois sentidos (1974:170). Assim, no tempo crônico de Shariar, os acidentes ocorrem aos corpos, enquanto, a partir do tempo criado por Sherazade, as palavras se encadeiam, assim como as narrativas se encaixam, sem nenhum limite que bloqueie, precipite, exploda, desencaixe ou endureça o discurso da contadora de histórias. Enfim, escreve Deleuze sobre o Aion, depois de compará-lo com Cronos:

Sempre já passado e eternamente ainda por vir, Aion é a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do tempo, que se libertou do seu conteúdo corporal presente e por aí desenrolou seu círculo, se alonga em linha reta, tanto mais perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por esta razão [...]. (1974:170)

Na verdade, o artifício escolhido por Sherazade, a narrativa, surge da linha reta do Aion. Esta se divide em passado e futuro infinitos a partir do instante, e separa os sons corporais da palavra articulada. Assim, do lado do passado temos os corpos, seus barulhos, toda a materialidade, toda a física; do lado do futuro, temos as palavras, o que manifestam, o que designam e o que significam, toda a abstração, toda a metafísica; e, sobre o instante, temos o mundo dos efeitos incorporais, um lugar neutro - nem passado, nem futuro, nem corpo, nem palavra -, onde os sons ganham a propriedade metafísica de ter um sentido e, secundariamente, de manifestar, designar e significar, em lugar de pertencer aos corpos como qualidades físicas. Donde concluímos que o sentido, ainda de acordo com Deleuze, em seu estado primeiro, antes de se tornar linguagem ou expressão, é pura insistência. Faz existir o que o exprime e se faz existir naquilo que o exprime (1974:170-171), mas não se dá a ver nas palavras, mesmo que só exista através delas. Desta maneira, o sentido é um acontecimento, que não se confunde com sua efetuação espácio-temporal num estado de coisas (1974:23), nem com a idealização do discurso. A meio caminho do acidente físico e da idéia absoluta, o sentido não tem o empirismo dos corpos, nem a idealidade das palavras (1974:56-57). É um ponto neutro e duplo. Como as medalhas, tem duas faces: uma voltada para a corporalidade das coisas e outra para a abstração da linguagem. E, como um espelho, põe-se entre a realidade física das coisas e a imagem virtual das palavras, entretanto a correspondência especular dos dois mundos não é perfeita.

Sherazade, por sua vez, ao inserir o Aion, uma nova concepção de tempo, na vida de Shariar, também introduz o sentido, a partir do qual as palavras se diferenciam dos sons corporais. Por este caminho, a contadora de histórias pode substituir o tempo crônico, ao qual o sultão e todo o reino estavam presos, por uma outra temporalidade, onde o sentido deixa ver, através das palavras, os caracteres distintivos dos corpos. Desta maneira, Shariar pode reconhecer, ao longo do novo tempo e das histórias narradas, a identidade particular dos corpos. Enfim, tal operação do sentido sobre as coisas e as palavras permite que o sultão, ao final das mil e uma noites, reconheça em Sherazade uma mulher diferente de todas as outras que conheceu.

Esta leitura de As Mil e Uma Noites, a partir das concepções temporais de Cronos e Aion, reporta-nos às diferentes temporalidades da modernidade. O tempo de Cronos parece surgir nas artes com o romantismo, quando este deixou de ser, simplesmente, uma estética oposta ao classicismo para tornar-se, também, uma referência à passagem do tempo. De acordo com esta nova perspectiva, muitos autores do século XIX defenderam a idéia de que os clássicos eram românticos em seu tempo, ao passo que os românticos seriam os clássicos de amanhã (1996:22). Segundo Antoine Compagnon, em Os Cinco Paradoxos da Modernidade, "a oposição entre o classicismo e o romantismo, o antigo e o moderno, não é mais senão a de dois presentes, de dois tempos atuais, ontem e hoje, hoje e amanhã" (1996, 22). Como podemos observar, o romantismo inaugurou nas artes um tempo cronológico, onde o passado e o futuro são percebidos como presentes também. Isto é confirmado por Compagnon, quando recorda que Stendhal associava o romantismo ao mundo atual e à moda. Contudo, esta ligação da arte com a atualidade induziu a uma forte dependência com relação à história, o que viria caracterizar as vanguardas no final do século XIX (1996:22).

Antes, porém, de as vanguardas estabelecerem nas artes o tempo crônico, a partir do qual a obra de arte de ontem já não é mais arte, Baudelaire introduziu uma outra concepção do belo. No ensaio "O pintor da vida moderna", escrito nos anos de 1859 e 1860, ele afirma: "esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e histórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão" (1988:162). Deste modo, o poeta francês não excluiu o belo intemporal, nem o belo histórico, pois acreditou que ambos deviam estar presentes nas obras de arte. Assim, esclarece Baudelaire:

O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva e combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. (1988: 162)

Em conformidade com esta concepção dual do belo, Baudelaire prossegue em suas argumentações, afirmando que o novo poeta "é o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno" (1988:164), e que esse novo artista tira da moda o que esta pode conter de poético no histórico, ou seja, extrai o eterno do transitório (1988:173), para concluir que "a Modernidade é o transitório, o efêmero, o contigente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável" (1988:174). Baudelaire ainda afirma que é preciso que toda modernidade extraia a beleza misteriosa da vida presente, para que seja digna de se tornar antigüidade (1988:175). Como podemos constatar, o poeta francês não excluiu a tradição, nem aquilo que nas obras do passado representa o belo eterno. Pelo contrário, é do instante que podemos recuperar aquela beleza imutável e intemporal.

Essa proposta de Baudelaire aproxima-se da temporalidade de Aion, na medida em que recupera a tradição antiga, fazendo uma resistência significativa à devoração crônica, que as sucessivas vanguardas, após ele, engendrariam uma em relação a outra, ou melhor, a última em relação à anterior. Neste sentido, podemos dizer que os sucessores de Baudelaire o traíram (1996:48 e 50). Acreditaram que a modernidade, isto é, o efêmero e o transitório, era a totalidade da arte, que era "preciso ser absolutamente moderno" (apud 1996:16), como proclamava Rimbaud. Assim, enquanto Baudelaire compreendia a modernidade como sentido do presente, pela sua qualidade essencial de presente, fugaz, efêmero e transitório, assim como o instante da temporalidade de Aion, ao mesmo tempo atual e intemporal, sem passado ou futuro finitos; as vanguardas conceberam uma modernidade de tempos sucessivos, onde a arte de hoje superava a de ontem, tornando a própria modernidade obsoleta em relação a si mesma.

Desta maneira, o século XX conheceu uma arte que, regida por um tempo crônico, devorava o último movimento artístico, para se firmar no presente, mas que, logo em seguida, seria executada pela próxima novidade. Assim, como Shariar, as vanguardas eliminavam suas vítimas, e, como as jovens esposas do sultão, eram executadas no dia seguinte. Este movimento devorador e constante na arte levou à exaustão das vanguardas modernistas, como afirma John Barth nos ensaios "Literatura da exaustão", de 1967, e "Literatura da revitalização", de 1979. Segundo esse romancista americano, a exaustão dos movimentos vanguardistas promoveu o surgimento de uma literatura das possibilidades exauridas (1984:64). Contudo, isto não significa que a arte literária nem a linguagem se esvaziaram, mas que a estética das vanguardas modernistas se esgotou (1984:206). Também não quer dizer que a ficção acabou, que só resta o pastiche e a paródia dos predecessores, uma das acusações que sofre o pós-modernismo (1984:205). Ao contrário, segundo Barth, as convenções artísticas podem ser descartadas, subvertidas, transcendidas, transformadas, empregadas contra elas mesmas para gerar novos e vivos trabalhos (1984:205).

Acreditamos que é isto o que está acontecendo na literatura hoje, os autores estão se apropriando tanto da tradição antiga quanto da moderna, para criar, como Sherazade, belas histórias. Neste sentido, não há repúdio ou imitação, mas, referendados pelo passado literário e apontando para o futuro, os escritores criam novos textos a partir deste instante, quando, muitos de nós, já não apostam na revitalização depois da exaustão promovida pelas vanguardas. Fazem isto, tendo, como figura emblemática de sua literatura, a contadora de histórias de As Mil e Uma Noites, que venceu o tempo crônico e autoritário de Shariar, recriando as histórias da tradição oral do seu povo. No mais, assim como Sherazade, a heroína que recuperou a sua identidade de pessoa provida de corpo e nome próprios, os autores de hoje conquistam, por meios diferentes dos seus antecessores, sua identidade literária, reinventando as histórias de nossas tradições e comovendo os leitores para uma literatura não tão hermética quanto aquela do modernismo.

Referências bibliográficas:

BARTH, John. The literature of exhaustion. The Atlantic, 220, 2, p. 29-34, 1967.
______. The literature of replenishment: postmodernist fiction. In: ______. The Friday Book. Baltimore: Johns Hopkins, 1997.
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: (Textos inéditos selecionados por Teixeira Coelho) A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva / USP, 1974.
AS MIL e uma noites: contos árabes. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Revan, 2000.

 

Notas:

  • * Recém-doutor em Letras pela PUC-Rio.
  • 1 A versão que estamos utilizando foi traduzida por Ferreira Gullar a partir da versão francesa de Antoine Galland de 1704. A autoria do texto original é desconhecida. Sabe-se que é baseada na tradição oral dos povos da Pérsia e da Índia. Conforme observação de Jorge Luis Borges, referida pelo tradutor na pequena apresentação "Algumas palavras", a versão escrita mais antiga já era uma adaptação (2000:5).