Eneida Maria de Souza
UFMG
Um dos princípios básicos da crítica literária contemporânea resulta na produção de um saber narrativo, engendrado pela conjunção da teoria e da ficção e pelo teor documental e simbólico do objeto de estudo. O saber narrativo, ao retirar do discurso crítico o invólucro da ciência, distingue-se do mesmo através de sua atitude avessa à demonstração e à especulação, ao se concentrar na permanente construção do objeto de análise e nos pequenos relatos que compõem a narrativa literária e cultural. A forma ensaística, ao inscrever-se sob o signo do precário e do inacabado, ajusta-se à reflexão narrativa que joga com os intervalos e os lapsos do saber, permitindo o gesto de apagar e de rasurar textos que se superpõem.[1] A desmitificação das metanarrativas legitimadoras da ciência e da integridade ilusória do sujeito encontra em Lyotard um de seus maiores defensores, ao lado de Roland Barthes, ao optar pelos fragmentos de biografias, os biografemas. Privilegia ainda o crítico francês o saber da escrita como enunciação, colocando-o em desacerto com o discurso da ciência, da mesma forma que Lyotard, ao se valer da metáfora do relato como resposta à inoperância dos grandes textos, circunscritos a projetos de natureza totalitária e globalizante. O saber narrativo dos pequenos relatos não irá, contudo, atuar como força legitimadora, distinguindo-se por um caminho avesso à demonstração e à especulação. Através do pluralismo irredutível dos "jogos de linguagem", insiste-se na presença do aspecto local dos discursos, dos compromissos e na precariedade das legitimações.
Ampliando a rede de metáforas em torno do saber narrativo, cite-se o tratamento singular que Ricardo Piglia fornece à relação entre a criação literária e o gênero policial. Predomina, em seus escritos, a articulação engenhosa entre crítica e ficção, política e ficção, teoria e ficção, mediatizada pela metáfora do relato policial, constituindo-se em relato parapolicial. Essas instâncias discursivas se ficcionalizam mediante o entrecruzamento de narrativas próprias ao universo político, literário ou histórico, configurados por crimes e complôs organizados, criminosos e detetives, impressões digitais e marcas autorais espelhados nas figuras do autor e do crítico, nas citações roubadas e nos textos clandestinos.
A novela policial é, para Piglia, a "grande forma ficcional da crítica literária". Walter Benjamin já havia estabelecido a relação entre crítico e detetive, assinalando ainda que os criminosos dos primeiros romances policiais são homens pertencentes à burguesia, deixando no interior das casas suas marcas e impressões, traços que o detetive terá de decifrar como se fosse um texto.
O método analítico freudiano guarda também semelhanças com a técnica policial de investigação dos fatos, através da exploração de truques de esconde-esconde, da articulação hermenêutica entre o visível e o invisível, própria da "ciência de Pandora": abrir a caixa portadora de males. Considere-se ainda que a prática psicanalítica se produz, de forma literal e metafórica, num espaço íntimo e privado, no interior de uma sociedade burguesa e conservadora do final do século XIX, na cidade de Viena. Pautado pelo rigor policial das narrativas novecentistas e pela estrutura romanesca dos folhetins, Freud constrói a história dos casos de histeria segundo um modelo ficcional de criação. Ao construir romanescamente os relatos das clientes histéricas, nos quais o analista se coloca como personagem, as transfigurações sofridas pelo narrador inauguram a descoberta freudiana do romance familiar e do tratamento psicanalítico como uma versão da relação amorosa.
Os estudos pioneiros da nova história e da meta-história utilizam-se também da narrativa como modo de contar os acontecimentos, recurso amplamente derivado do gênero constituinte do romance e da narrativa em geral. A mudança de perspectiva em direção ao objeto histórico permite o questionamento dos antigos enfoques analíticos, centrados nas datas impostas pelo discurso oficial, nos grandes acontecimentos ou na ênfase concedida aos nomes consagrados pela mitologia política. Cenas domésticas e aparentemente inexpressivas para a elucidação dos fatos históricos passam a compor o quadro das pequenas narrativas, igualmente responsáveis pela construção do sentido subliminar da história. A literatura, rica em cenas dessa natureza e pródiga na arte das subjetividades, é convocada a servir de corpus analítico para o discurso histórico, o que contribui tanto para a diluição de fronteiras disciplinares quanto para a exploração de narrativas ficcionais com valor enunciativo e como procedimento de escrita. O objeto literário deixa de ser privilégio da crítica literária e se expande para outras áreas, numa demonstração de estar a literatura se libertando das amarras de um espaço que a confinaria para sempre no âmbito das belles-lettres.
Peter Burke, no artigo "A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa", assinala a mudança na metodologia frente aos objetos da história, assim que o modo narrativo passa a ocupar o lugar do analítico. Pela própria concepção da escrita histórica como gênero narrativo e marcada pela categoria temporal, a abordagem do historiador se modifica em favor dos acontecimentos que antes não tinham importância para a análise, reforçando a função do historiador que é a de sempre estar contando uma história. E o que é mais importante: essa história está sujeita a interpretações parciais, pelo fato de estar o narrador utilizando de um ponto de vista pessoal e estar ciente das múltiplas vozes que entram nesse processo criador:
Em primeiro lugar, poderia ser possível tornar as guerras civis e outros conflitos mais inteligíveis, seguindo-se o modelo dos romancistas que contam suas histórias, partindo de mais de um ponto de vista. [...] Tal expediente permitiria uma interpretação do conflito em termos de um conflito de interpretações. Para permitir que as "vozes variadas e opostas" da morte sejam novamente ouvidas, o historiador necessita, como o romancista, praticar a heteroglossia.[2]
O saber dramático, segundo a concepção de Roland Barthes, suplanta o epistemológico, ao operar nos interstícios da ciência e promover a encenação de subjetividades. Esse saber, aliado ao narrativo, permite compor a categoria do sujeito literário e do sujeito crítico, para assegurar a necessidade de se pensar no movimento duplo do sujeito-autor na cena enunciativa, do narrador que se afasta e ao mesmo tempo se aproxima do objeto. A distância teórica entre o artigo de Barthes de 1968, "A morte do autor", e a encenação de subjetividades levada a cabo por um sujeito entre o distanciamento brechtiano e o desejo de se expressar, se justifica pela presença do autor não mais como ausente do texto, mas que se impõe na condição de ator e de narrador. Preserva-se, portanto, o conceito de autor como ator no cenário discursivo, considerando-se o seu papel como aquele que ultrapassa os limites do texto e alcança o território biográfico, histórico e cultural.
A narrativa literária como produtora de ficções
Uma das cenas mais famosas da história da filosofia é um efeito do poder da literatura. A comovedora situação em que Nietzsche, ao ver como um cocheiro castigava brutalmente um cavalo caído, se abraça chorando ao pescoço do animal e o beija. Foi em Turim, no dia 3 de janeiro de 1888, e essa data marca, num certo sentido, o fim da filosofia: com este fato começa a loucura de Nietzsche que, como o suicídio de Sócrates, é um esquecimento inesquecível na história da razão ocidental. O notável é que a cena é uma repetição literal de uma situação de Crime e castigo de Dostoiévski (Parte I, Capítulo 5), na qual Raskolnikov sonha com uns camponeses bêbados que batem num cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskolnikov se abraça ao pescoço do animal caído e o beija.
Ninguém parece ter reparado no bovarismo de Nietzsche, que repete uma cena lida. (A teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descrição do efeito de memória falsa que a leitura causa.)
Ricardo Piglia[3]
Durante muito tempo, esse episódio, recomposto pelo olhar de Ricardo Piglia, tem acompanhado a minha reflexão sobre o lugar que a literatura ocuparia na construção da rede imaginária que une situações pessoais vividas com outras criadas pela ficção. O bovarismo, atitude que explica esse procedimento, representa o fascínio do sujeito pela aventura do outro, o exilar-se de si como efeito de ilusão. Ao declarar, a partir dessa cena, o fim da filosofia e o início da loucura de Nietzsche, o escritor argentino não só inscreve o poder de mimetização da vida em relação à literatura, mas reforça o teor ficcional da teoria assinada pelo filósofo. O enobrecimento do episódio produzido pela evocação de seu antecedente literário reduz ainda a imagem negativa da doença, ao ser relida como "efeito de memória falsa que a leitura causa". O entrecruzamento de momentos textuais com os vividos permite ampliar a noção de texto, que não mais se circunscreve à palavra escrita, mas alcança a dimensão de outros acontecimentos, interpretados como parte do universo simbólico. Nesse sentido, a intertextualidade, conceito amplamente empregado pela crítica literária contemporânea, além de se referir ao diálogo entre textos, desloca o texto ficcional para o texto da vida.
Com o objetivo de discorrer sobre o saber narrativo da literatura como força capaz de criar ficções e de transformar a realidade no duplo da ficção, a imagem do bovarismo se inscreve como a força do imaginário que impulsiona a narrativa, assim como a presença inevitável do outro, que torna estranho o convívio familiar. Como resultado desse processo, constata-se o papel ambivalente do escritor que se vale de uma relação próxima e distante com a realidade. No mesmo diapasão da literatura se encontra o crítico, que, ao pensar estar interpretando a palavra do outro através de suas leituras, está igualmente se inserindo como leitor de sua própria vida.
O discurso literário, na condição de objeto da crítica, responde por transformações, adquiridas ao longo do tempo, e que o faz tributário de diferentes estéticas, definidas historicamente e suscetíveis a revisões. Os casos específicos que serão tratados neste texto - Madame Bovary, o mito da Medusa, lido por Calvino, "A memória de Shakespeare", de Borges e Prisão Perpétua, de Piglia - exemplificam a metáfora da literatura como elemento mediador da criação literária e da formação imaginária das personagens. Nesse sentido, a literatura se alimenta de seu próprio código, vale-se da sedução provocada pelo mundo dos livros, assim como encena o maior ou menor grau de distância ou de proximidade das personagens com o mundo da imaginação.
Madame Bovary, obra que representa a metáfora da literatura como criadora de ilusões, ilustra a mesma sedução causada pelo "desejo triangular", processo cognitivo através do qual a relação do sujeito com o objeto é o efeito da leitura dos romances românticos. René Girard, em Mensonge Romantique et Verité Romanesque, aponta a diferença entre os termos romântico e romanesco, ao remeter o primeiro para as obras que refletem a presença do mediador, sem nunca a revelar; o segundo, ao se referir às obras que não só refletem como revelam a presença do mediador. Dom Quixote, Madame Bovary, O Vermelho e o Negro e Em Busca do Tempo Perdido são exemplos de textos que mostram como as suas personagens são movidas por desejos que não brotam espontaneamente, revestindo-se da força existente no desejo do outro.[4]
Nesse sentido, consegue-se entender como a famosa boutade, "Madame Bovary c'est moi", emblematizou o gesto de Flaubert como intérprete tanto da sinceridade quanto da artificialidade da criação. Embora nem sempre interpretada de forma plausível, a frase torna-se, na maioria das vezes, um ato de banalização do ato criador, ao ser utilizada como traço de um biografismo superficial. Ao pronunciar esse grito de revolta diante da censura e da maldição de sua personagem, o escritor estaria, ainda no entender de Girard, afirmando que o "eu e o Outro" se fundem num só, graças ao milagre da verossimilhança romanesca, em oposição ao pensamento da maior parte da crítica, ao interpretar a frase como expressão romântica do sentido de duplo e de projeção artística. Flaubert reconhece-se igual ao "Outro", fascinado pela voz de seu herói, sentindo-se, portanto, culpado pela ação cometida pela personagem que criou:
Madame Bovary foi inicialmente concebida como este Outro desprezível o qual Flaubert teria jurado pagar sua conta. [...] Mas o herói de romance, sem nunca desistir de ser o Outro, encontra pouco a pouco o romancista durante a criação.[5]
O encanto quixotesco pelos livros e o bovarismo recebem até hoje tratamento paradoxal, ressaltando-se ora a ameaça da ficção sobre o real, ora aceitando-se o inevitável contágio dessa ficção no universo dos mortais. De um lado, encontra-se a ação sempre presente da censura, que escolhe, a cada momento, o mediador responsável pelo mal causado pelos delírios da imaginação; de outro, a ilusão romanesca, que percorre os discursos e penetra na realidade do cotidiano, não havendo um campo próprio para a ficção, para o literário. Os movimentos de vanguarda do princípio do século já pregavam a estetização da existência, projeto que pretendia desfazer a distância entre a arte de elite, legitimada pelos meios institucionais e exposta nos museus e lugares apropriados, e aquela que se realizava no meio popular. O espaço público torna-se o lugar mais indicado para a exteriorização de subjetividades, para a ruptura com a ideologia da interioridade como reduto da propriedade artística.
Nos dias atuais, a crítica literária, mais aberta a manifestações de subjetividades, chega a ser considerada como uma vertente da autobiografia, comportando-se de modo contrário ao Quixote ou a Emma Bovary, na feliz expressão de Ricardo Piglia. A atividade crítica seria, no seu entender, uma das formas modernas da autobiografia, considerando-se que o sujeito escreve a sua vida quando pensa estar narrando suas leituras:
O crítico é aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê. A crítica é uma forma pós-freudiana de autobiografia. Uma autobiografia ideológica, teórica, política, cultural. E digo autobiografia porque toda crítica se escreve a partir de um lugar preciso e de uma posição concreta.[6]
Pela mediação da literatura, do texto alheio, o crítico entrega-se à ilusão romanesca, ao ser levado pela sedução das leituras a se imiscuir nos textos e a não se afastar do demônio da subjetividade. Entre essas personagens e o crítico, instaura-se um elo de semelhanças, ao construírem ficções que reportam às suas vivências. Distingue-se o crítico das personagens de Quixote e de Madame Bovary, ao se pensar ausente da trama de sedução romanesca, revelando-se, contudo, aí presente. As personagens atuam de maneira distinta, pois somente percebem o estado de ilusão quando são chamadas à realidade. O desejo triangular responde por intenções distintas que provocam resultados semelhantes: Bovary vivencia as paixões de forma livresca, o crítico vive as suas leituras como experiência pessoal. A revelação do mundo imaginário funciona como impulso que movimenta toda empresa ficcional ou crítica, desde que a imparcialidade se conjugue à sua contraparte, a inserção do desejo do sujeito no discurso em processo de invenção.
Italo Calvino, em Seis Propostas para o Próximo Milênio, irá também nos ajudar nesse raciocínio, ao extrair do mito da Medusa a sua opinião sobre a relação do poeta com o mundo, um olhar enviesado e indireto, tal como Perseu assim se comportou para vencer a Medusa. Constrói uma narrativa que se mescla à sua intenção de teorizar a poesia: o herói, com suas sandálias aladas, valendo-se do apoio dos ventos e das nuvens, da leveza como sinal de estratégia guerreira, não olha diretamente o rosto da Górgona, mas a sua imagem refletida no escudo de bronze. Na revelação oblíqua de uma imagem presa num espelho, ou seja, o rosto percebido como simulacro e virtualidade e não através da visão direta, Calvino encontra aí uma alegoria da literatura, "uma lição do processo de continuar escrevendo".[7] A mediação exercida pelo escudo de bronze exemplifica a relação triangular exigida na construção de saberes ficcionais e teóricos, ao se perceber que o escritor italiano se apropria do mito e da escrita pautada por imagens para teorizar sobre a escrita literária. A força mediadora da metáfora possibilita a produção de conceitos, o que justifica não só o olhar enviesado do sujeito diante do objeto, como o processo de abstração e recorte da teoria frente ao objeto.
Conceber a literatura como imagem presa no espelho, dotada, portanto, de caráter virtual, inscreve-se como a arte poética de Calvino, que, a exemplo de Borges, defende o artifício como razão de ser do literário e o olhar distanciado enquanto estratégia para melhor se dirigir ao objeto. Ainda que o elemento de mediação utilizado pelo escritor na definição de literatura tenha sido o mito grego - em toda a obra irá valer-se das ciências exatas, da cultura popular e da própria literatura -, o tratamento dado ao empréstimo textual descarta qualquer relação de anterioridade ou verticalidade. Como parte de uma poética que concebe a literatura na sua dimensão de superfície, a leveza se associa à transformação da imagem direta - e mortal - de Medusa, em seu reflexo invertido no espelho, mediação capaz de instaurar a relação triádica. O peso da matéria se anula em favor do simulacro, que pulveriza a realidade e a torna mais precisa e condensada, por ser o efeito do recorte realizado pelo olhar enviesado de Perseu:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que quero mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos....[8]
Essa estratégia ligada ao movimento duplo da criação literária, o gesto de distanciamento e de proximidade com o objeto, encontra-se presente na poética de J.L. Borges e na de Ricardo Piglia, esta última atuando como motivo inspirador deste texto. O exercício da memória alheia, ao ser incorporado à experiência literária, desloca e condensa lugares antes reservados ao autor, à medida que se dilui a concepção de texto original e de autenticidade criativa. A narrativa retoma a atividade tradutória, o exilar-se de si para criar, assim como relê a tradição cultural como um arquivo que se revitaliza a todo momento. Ao proceder à dramatização da fala pessoal através da experiência do outro, a narrativa elabora, contudo, procedimentos ligados a uma autobiografia esquiva do autor. A imparcialidade torna-se artifício retórico para a construção do décor narrativo, para a expressão exteriorizada da linguagem, que não admite arroubos de sentimentalismos e inserção naturalista do sujeito-narrador. Aceitar este jogo de faz-de-conta significa negar o excesso de subjetivação e optar pela diferença, pela alteridade e pelo estranho hóspede que, ao negá-la, afirma a sua familiaridade.
Dois exemplos ilustram esse procedimento: o conto "A memória de Shakespeare", de Borges, e a leitura borgiana de Piglia, presente em alguns de seus ensaios e ficções. Nos dois casos, a meio caminho entre a teoria e a ficção, a literatura e a reflexão ensaística, situa-se o caráter híbrido da poética desses dois autores, razão pela qual torna-se discutível concordar com Freud, um dos grandes intérpretes da literatura, de que a arte antecipa o que o discurso científico mais tarde irá confirmar.
"A memória de Shakespeare" tem como tema a doação dessa memória ao narrador, ao qual não se irá incorporar nem da fama nem da glória do escritor, mas de sua memória pessoal. Este processo de transmutação subjetiva provoca o esquecimento da língua ou das lembranças de quem recebe a doação, chegando a ameaçar a perda de sua memória, ao serem confundidas uma com a outra. O conto sintetiza, para Piglia, a metáfora perfeita da experiência literária, além de remeter ao conceito de tradição que se estrutura como um sonho, no qual se "recebem as lembranças de um poeta morto".[9]
Reforça ainda a relação entre a tradição da literatura argentina e a tradução, uma vez que se constata o transporte de citações da palavra do outro para a construção de discursos, palavras roubadas e distorcidas que desmitificam o texto original e se impõem na sua condição de moeda falsa. Borges desloca o conceito de tradição como herança, concedendo ao sonho a função reveladora de uma memória literária, a de Shakespeare, que é oferecida sob a forma de uma memória pessoal: "Shakespeare foi meu destino". A escolha do escritor inglês como precursor recebe, pela ação transformadora da ficção, o sentido de destino, associado ao sonho e ao caráter revelador do mesmo.
O desfecho cumpre a ritualidade banal dos contos de Borges: a memória é doada a outro, um desconhecido, através do gesto mecânico e impessoal do último possuidor, que, ao telefone, assim se expressa: "você quer a memória de Shakespeare? Sei que o que ofereço é muito sério. Pense bem. Uma voz incrédula replicou: - Enfrentarei esse risco. Aceito a memória de Shakespeare".[10] A invenção ficcional pautada pela imagem da memória alheia é, para Borges, o núcleo que permite entrar "no enigma da identidade e da cultura própria, da repetição e da herança".[11] Em literatura, os roubos, assim como as recordações, nunca são inocentes, da mesma forma que a propriedade autoral vê-se enfraquecida, por se tratar de uma escrita minada pela presença, nem tão desconfortável, do outro, do duplo. É necessário lembrar que o duplo, entendido como procedimento narrativo que marcou a literatura do século XIX e parte do século XX, não mantém o mesmo estatuto nas várias manifestações dos discursos contemporâneos. Se antes a divisão da personagem acompanhava as demais fragmentações discursivas da época, principalmente com a descoberta freudiana do inconsciente, em que o eu se defrontava com a face desconhecida do outro, o conceito é dotado, hoje, de limitações, considerando-se os efeitos multiplicadores por ele criados. O avanço dos jogos narrativos revela o mecanismo repetitivo dessa imagem, que não comporta mais o sentido de divisão nem de alteridade radical.[12]
Na ficção-ensaio de Piglia, Prisão Perpétua, é possível encontrar ressonâncias desse conto de Borges, quando o narrador afirma ser o romance moderno um "romance carcerário", por narrar o fim da experiência. A memória do outro entra como componente capaz de suprir a falta de narrativas pessoais ou a inexistência de fatos novos, banais ou interessantes para se contar. O roubo das histórias alheias, a condensação de cenas vividas em sonho ou lidas nos livros, permitem dotar a memória dos textos da única certeza de que todas as histórias estariam, de antemão, atravessadas pelo olhar alheio, o que se irá distinguir da concepção benjaminiana de narrativa tradicional, na qual se destacava a lição da experiência pessoal como fonte geradora dos relatos. Na narrativa pós-moderna de Piglia, o narrador confessa a banalidade e o vazio de suas experiências, necessitando, para o andamento de sua narrativa, de imitar e inventar aventuras de outrem, por meio da técnica do "voyeurismo" e do roubo.
No início as coisas foram difíceis. Eu não tinha nada absolutamente para contar, minha vida era absolutamente trivial. Gosto muito dos primeiros anos do meu Diário porque ali luto com o vazio total. Não acontecia nada, na realidade nunca acontece nada mas naquele tempo isso me preocupava. Era muito ingênuo, estava o tempo todo buscando aventuras extraordinárias. Então comecei a roubar a experiência das pessoas conhecidas, as histórias que eu imaginava que viviam quando não estavam comigo. Escrevia muito bem nessa época, diga-se de passagem, muito melhor que agora. Tinha uma convicção absoluta e o estilo não é outra coisa senão a convicção absoluta de ter um estilo. Vocês já irão ouvir os ritmos da prosa da minha juventude. O que será deles nesta língua que não é a minha? Confio em que ao menos persistam a fúria e o desespero com que foram escritos.[13]
Na reconstrução dessas histórias, o narrador revela-se ainda conduzido pela imaginação pessoal, ao dar continuidade ficcional à narrativa, no momento em que a ausência dos amigos o obrigava a transformá-la em presença criativa. Uma vez iniciada a apropriação dessas histórias, penetra-se no jogo infinito da ficção, impulsionando o relato e rompendo os limites intersubjetivos. O distanciamento do narrador diante do material ficcional que lhe é transmitido desempenha a função de um procedimento retórico, com o objetivo de reforçar o sentido de narrativa como embuste e artifício. No entanto, como o processo de exteriorização dessa experiência já não conta mais com a divisão binária entre o eu e o outro, torna-se inútil discutir a questão da alteridade da narrativa como a configuração de um pólo constitutivo totalmente estranho ao sujeito. (As "imaginações pecaminosas" de Madame Bovary são a um tempo motivações saídas dos livros e sonhos que ela própria cultiva, material romanesco que a torna personagem das histórias encenadas na vida real).
Piglia introduz ainda nessa citação a precariedade do conceito de estilo como expressão de subjetividades, pelo fato de se impor como traço de uma convicção cega manifestada por quem escreve. Ironicamente, põe em xeque a conhecida frase de Buffon, presente no Discurso sobre o Estilo, "o estilo é o próprio homem", na qual se encontra embutida a figura do escritor como mestre da linguagem e dono de uma dicção capaz de naturalmente devolver-lhe uma imagem plena. O avesso da concepção de estilo em Buffon também aí se inscreve, ao remeter para a frase de Lacan, "o estilo é o outro"[14]. Entre o mesmo e o outro como formas de opção para se definir o estilo, reside talvez um dos impasses da literatura contemporânea, em que se nega a presença do sujeito pleno, aceita-se a inserção da alteridade como fator constituinte da subjetividade, sem que se anule a força da mediação simbólica, valorizando-se as determinações pessoais, históricas e culturais das formações discursivas.
"Há devotos de Goethe, das Eddas e do tardio cantar dos Nibelungos; Shakespeare foi meu destino". Com esta declaração, o narrador de "A memória de Shakespeare" inicia a sua história, por meio da qual substitui o significado literal de destino, a vida sendo determinada por forças místicas ou de outra ordem, para o âmbito da literatura, que comanda a sorte do escritor. Borges recupera a lição de Cervantes e de Stendhal, ao inscrever a literatura como metaficção, regida por leis que ignoram as pontes diretas e naturais com o referente, por manter um elo virtual com a palavra escrita dos livros. Trata-se da leitura da realidade, operada através da mediação imaginária da literatura, o que permitiu a Piglia estabelecer correspondências entre a cena da compaixão de Nietzsche pelo cavalo caído e a cena literária de Crime e Castigo: a repetição de uma situação literária na vida real atua como expressão do destino da letra no corpo do leitor-personagem.
A terceira cena, criada pelo olhar metafórico e condensado do escritor, permite a abertura de mais uma vertente de interpretação do texto da vida e da ficção, conjunção desejada por Nietzsche no seu projeto de valorização da arte como modelo de compreensão da existência. A ficção, este espaço privilegiado que se constrói pelo entrecruzamento de discursos de diferentes naturezas, é o resultado das projeções subjetivas ou de experiências motivadas pela memória do outro, o "efeito de memória falsa que a leitura causa", como assim Piglia se expressa no texto sobre Nietzsche.
O inevitável envolvimento pessoal do leitor diante da força ficcional do discurso se conjuga ao desejo de distanciar-se para melhor exercer o trabalho crítico. No limite entre uma cena e outra, corre-se sempre o risco de estar representando o papel de Madame Bovary.
Notas: