Isabel Pires de Lima
Universidade do Porto
Os Anjos (2000), a última obra de ficção da já consagrada Teolinda Gersão, cuja carreira se iniciou nos idos de 80, mais exactamente em 1981, com o romance O Silêncio, é uma magnífica e breve novela, publicada em 2000, a qual, tudo indica, consolida uma viragem significativa no percurso ficcional da autora.
Durante a década de 80, a obra de Teolinda Gersão foi marcada por duas linhas norteadoras fundamentais, independentemente da temática privilegiada:
1. uma forte tendência para a criação de universos auto-referenciais ou narcísicos, remissivos de modo especular para ambientes sociais e urbanos contemporâneos e familiares da autora: artistas, professores, médicos, personagens femininas inquietas que se autoquestionam e questionam o processo da criação estética;
2. uma clara propensão experimentalista, que subordina a linearidade narrativa a diversos processos de decomposição, a movimentos de descontinuidade, a rupturas súbitas e a um procedimento simultâneo de autodescrição reflexiva.
Títulos como o referido O Silêncio (1981), Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982) e Os Guarda-Chuvas Cintilantes (1984) evidenciam estas marcas.
A partir dos finais da década de 80, com O Cavalo de Sol (1989), A Casa da Cabeça de Cavalo (1995) e ainda com A Árvore das Palavras (1997), sente-se uma aparente ultrapassagem da tal componente experimentalista, assistindo-se ao retorno do romance que conta mais linearmente, embora nunca linearmente, uma história de trama coesa - a história de uma casa, de uma família e dos tempos que as atravessam - e sobretudo ao retorno do romance de personagem de intensíssimo mundo interior, visível já na primeira parte de A Árvore das Palavras, mas mais evidente em Os Teclados (1997) e agora Os Anjos (2000). Movendo-se em universos agora preferencialmente rurais ou universos pequeno-burgueses citadinos, e convocando pequenos núcleos humanos, desenvolve uma espécie de atenção à pequena história perdida no tempo e no espaço, de resto nem sempre localizáveis.
Os temas essenciais do universo ficcional da autora permanecem: a imaginação e o sonho como força transformadora do real e emancipadora da mulher, a problematização das relações interpessoais, em particular homem-mulher, a auto-reflexividade em torno da criação artística, no caso de Os Teclados, a composição e a execução musicais, ou da construção identitária, no caso de A Árvore das Palavras sugerida no próprio título ou ainda no caso de Os Anjos. Mas, enquanto no primeiro grupo de obras referido, tudo isso era equacionado em função de uma teleologia ditada ainda por um projecto emancipatório moderno, social e historicamente situado, em que particularmente a personagem feminina aparece na posse de critérios axiológicos capazes de lhe permitir perseguir uma verdade totalizante e o estabelecimento de um sentido, nas obras mais recentes (dos fins dos anos 80 para cá), essas temáticas configuram um romance aparentemente mais tradicional ou, digamos, menos experimentalista, como ficou dito, mas mais aproximável de uma dominante pós-moderna, assente num certo descomprometimento axiológico do sentido, gerador de mundos possíveis e de instabilidades - isto mais evidentemente em Os Teclados, Os Anjos e já anunciado em A Árvore das Palavras. Evidenciar o modo como, em Teolinda Gersão, se constrói, ou melhor, se desconstrói, o velho jogo entre experimentalismo, predominantemente tido por formal, e linearidade narrativa tida por tradicional, é um dos objectivos deste trabalho.
A verdade radical, que se perfila aos olhos de Lídia, no final do romance O Silêncio, quando sai de casa, a caminho da liberdade conquistada, e a leva a pensar: "não voltarei nuca mais, terei todos os caminhos do mundo",[1] não se imporá às protagonistas daquele ultimíssimo grupo de narrativas - Gita-criança, Júlia, Ilda. Para estas as fugas que ensaiarão para conflitos por vezes nem sequer muito distintos dos de Lídia são ditadas por experiências revelatórias, nascidas de uma certa indeterminação ontológica, de uma figuração de um possível que levará a protagonista de Os Teclados a formular interrogações como as seguintes: "Era o universo que pulsava através do seu corpo? [...] Quando julgava tocar livremente, era às leis de uma mecânica cósmica que obedecia?"[2]
Mas é em Os Anjos[3] que pretendo reter a atenção, na medida em que se trata de uma novela que confirma a viragem de que venho falando na obra da autora. Estamos perante uma pequena narrativa do quotidiano, situada em ambiente rural mas sem indicações precisas ao nível espacio-temporal, numa atopia e acronia que contribuirão para a construção alegórica que a novela comporta. E esta breve e no essencial banal história é narrada de um ponto de vista alternativo em relação ao discurso dominante dos adultos: a narradora, Ilda, é uma criança que mal sabe ler e que conta o percurso da mãe das trevas para a luz ou, dito de outro modo, do fogo destruidor, que a devora mentalmente e quase a aniquila no início da novela, para o fogo regenerador e purificador que lhe será revelado por um anjo-serafim, o ferreiro Serafim das Canas, sua paixão de juventude. Pelo meio fica insinuada pela voz inocente e o olhar lúcido da criança uma banal história de uma mãe depressiva, em desencontro absoluto com o marido, mergulhada numa tristeza profunda, ensaiando fugas tendencialmente suicidas, que por fim reencontra o gosto pela vida, pela família e pela maternidade, na relação adúltera tacitamente consentida pelo núcleo familiar - filha, marido e pai - com o seu anjo Serafim.
Ora é exactamente esta história comum, nunca efectivamente dita pela voz da criança, que é contada, através do recurso a estratégias narrativas, a jogos do contar característicos, na sua concentração, do código pós-moderno, não usadas antes, ou jamais de forma tão radical e tão assumidamente lúdica, no universo ficcional de Teolinda Gersão. A saber:
1. A instauração de um clima de indeterminação ontológica com a consequente figuração de mundos possíveis, que o próprio título da novela anuncia: de seres comuns que se revelarão anjos e/ou com eles se confundirão trata a novela.
2. A rejeição de uma narrativa totalizante ou unificadora na aparência formal de uma narrativa tradicional relativamente linear, na qual todavia se encaixam outras micronarrativas: como uma narrativa da experiência vivida pelo avô ao assistir à submersão da sua aldeia pelas águas da barragem, contada de um ponto de vista tão outro que a criança se vê forçada a afirmar a textualidade da realidade e a problematizar as fronteiras entre realidade e ficção, concluindo: "O meu avô contava mal, ou tinham-lhe mentido."(p. 19); ou como uma outra narrativa de uma contrafacção da história de Maomé, contada por um almanaque a que a criança acede e por onde de resto aprende a ler - ela que na escola não era capaz de ter êxito na leitura - e consequentemente por onde aprende a ler o mundo de um modo novo, história revisitada depois pela memória, do que resulta uma espécie de contrafacção de segundo grau da referida história de Maomé.
3. A diluição constante das fronteiras entre clima e registo realistas e fantásticos, com a indiferenciação de fronteiras entre mundo real e projectado, entre a verdade e a ficção. Por mais de uma vez, Ilda oscila a propósito da realidade de um retrato de Serafim entrevisto no fundo do gavetão da mãe, reflectindo num certo momento: "Não lhe contei do retrato escondido no gavetão do roupeiro, porque isso me parecia outra vez sonho. Embora fosse verdade."(p. 30). Aliás o poder da imaginação proclamado pela criança confirma uma tal diluição e a aludida inviabilidade de narrativas totalizantes: "No entanto também era como se a água cobrisse a aldeia e a deixasse lá guardada para sempre, pensei. Podia imaginar que a avó continuava a morar na casa, assomava de quando em quando à janela ao fim da tarde, esperando o avô para a ceia. Podia imaginar. Aprendia muita coisa com o meu avô."(p. 20)
4. A indeterminação semântica aberta a uma multiplicação de leituras alternativas apoiada numa linguagem de forte componente simbólica e alegórica, remetendo, por exemplo, para intertextos ora canónicos, como a Bíblia, ora não, como o almanaque.
Ao longo da novela e desde a primeira página se anunciam os anjos, isto é, esses seres intermediários entre dois mundos, o divino e o humano, o espírito e o corpo, ou seja, a realidade é oscilante, vacilante também para o leitor. "A minha mãe estava em cima de um banco e tinha na mão uma cavaca acesa."(p. 7) - esta a frase de abertura do livro. A mãe encena desde aqui um movimento ascensional de fuga regeneradora do mundo ctónico em que está mergulhada ("a cozinha encheu-se de fumo e não se conseguia ver nada" - lê-se logo a seguir) para o universo da luz que irradia na última página ("como se uma luz mais forte se acendesse" [p. 46], dirá Ilda).
Um tal anúncio dos anjos vai ser porém semantizado através de diversas declinações do campo sémico do fogo (lume, sangue, vermelho, clarão, chama, forja, relâmpago, brasa), porque só numa fase avançada da novela os anjos irromperão, ganhando um corpo indentificável. O primeiro e mais importante deles será o serafim Serafim, com o rural e prosaico apelido de Canas, mas com a alquímica actividade de ferreiro, manipulador do fogo purificador.
O fogo, como é sabido, comporta em todas as culturas uma dupla dimensão, conformando-se quer com processos de espiritualização, de conhecimento intuitivo, de iluminação, quer com a paixão sexual. Tanto G. Durand, como Bachelard aproximam o fogo obtido por percussão ao clarão e à flecha, com valor de purificação, iluminação, sublimação. Serafim das Canas transporta ele mesmo um nome próprio de anjo: Serafim significa literalmente o que está em chamas; Ilda aprendera na catequese que os serafins "Seguram brasas na mão e não se queimam" (p. 34). Por outro lado, a profissão de ferreiro, que é a de Serafim, comporta essa actividade de percussão sobre o ferro, produtora do tal fogo de cariz espiritual. Mas o serafim Serafim, esse "anjo de fogo", será também o corpo da paixão sexual nunca dita pela criança mas por ela entrevista no fogo erotizado da lareira:
Nas noites em que ela (a mãe) saía eu sentava-me no seu lugar a olhar o fogo. A lenha torcia-se, sibilava como cobra, enovelava-se sobre si própria. As chamas dançavam, nunca mais largando o que tocavam, enrolavam-se em volta, faziam corpo com o outro corpo, como se o devorassem. (p. 36-37)
Não resisto a citar um longo passo, dos mais belos da narrativa, em que Ilda recebe das mãos de Serafim um misterioso embrulho, um remédio para a cura da mãe, que doravante reviverá a experiência da alegria que a criança apenas lhe vira plasmada numa fotografia de juventude, do tempo em que ela dançaria com Serafim. É um dos momentos da novela em que a criança experimenta uma espécie de iluminação que lhe permite ir conhecendo a vida à sua volta e tranformar-se ela própria em anjo, isto é, em ser intermediador entre mundos, o da margem que Serafim ocupa e o do centro representado pelo seu lar e pela mãe; já fora de resto através de um súbito momento revelatório que ela ligara Serafim àquela fotografia. Eis o trecho a que me referia:
A primeira coisa que se via, descendo pelo olival, era o telhado vermelho e, através da porta sempre aberta, o clarão da forja.
Foi portanto o que vi primeiro, o fogo e o vulto dele passando adiante, de um lado para o outro. Quando cheguei mais perto, ouvi o bater do martelo na bigorna, cada vez mais forte. [...]
Esperei um pouco mas ele não se interrompia, descia os braços sobre o fogo e batia o ferro, sem medo de queimar-se. Estava descalço e tive a sensação de que ele poderia andar, sem sentir dor, sobre os carvões acesos.
O ferro brilhava e era vermelho como o fogo. Se se olhasse muito tempo ficava-se pregado ao chão, encandeado.
Finalmente ele viu-me. [...]
Vens por causa do teu avô.
Era uma afirmação, não uma pergunta. Não respondi e entrei pela porta atrás dele. Parei junto do fogo, com vontade de estender as mãos e de tocar as chamas. Queria vê-lo outra vez bater o ferro, lidar com o fogo como se domasse um animal.
[...] Abriu uma gaveta e retirou um embrulho em tudo igual ao outro, atado com uma guita da mesma cor. Entrega à tua mãe, disse. É urgente.
Não entreguei à minha mãe, dei-o logo directamente ao meu avô. Mas tudo se passou como antes, o meu avô não abriu e entregou-lho a ela. A minha mãe meteu-o no bolso do avental muito depressa, desapareceu para dentro da casa e gritou alegremente da cozinha: Já lhe levo o chá. (p. 31-32)
Várias figurações de anjos invadirão a novela, exactamente depois desta nova ordem que o "remédio" de Serafim introduz pela mão desse outro anjo intermediário que se revela ser o avô. O avô de novo trará à criança um saber alternativo ao explicar-lhe a necessidade de a mãe sair nas noites de mudança de lua para satisfazer os espíritos:
O que são espíritos? perguntei.
São anjos, disse ele.
Bons ou maus? perguntei ainda, porque tinha medo pela minha mãe.
O avô abanou a cabeça, como se nada disso fizesse sentido. São anjos, repetiu. (p. 33)
Saber alternativo e indeterminação axiológica com que todos na família aprendem a viver, porque os anjos, os serafins, seguram nas mãos as brasas regeneradoras que resistem à água que o pai, na ausência da mãe, lança nos pedaços incandescentes do carvão da lareira que todavia se mantêm - "Acesos por dentro, apesar da água. Porque o fogo era mais forte." (p. 37), conclui Ilda.
Os Anjos afigura-se ser uma espécie de alegoria da realidade oscilante em que estamos mergulhados, que se projecta ao nível dos jogos do contar na inviabilidade de contar uma história, cada história, de um ponto de vista dominante ou centralizador, obrigando o narrador a critérios de não selecção, embora perseguindo uma forte linearidade narrativa. Porém uma tal constatação dos limites ou da nova condição do contar no seio de uma tal realidade oscilante conjuga-se com uma permanente busca ontológica. Vejam-se as diversas interrogações que, sintagmática e paradigmaticamente, atravessam a narrativa, do tipo "anjos? bons? maus? serafins? espíritos? corpos? troncos?". Um só exemplo:
O meu avô gostava de falar. Era muito diferente do meu pai que sempre tinha sido de poucas falas. Antes de a minha mãe adoecer, ela perguntava-lhe à noite, quando ele vinha do trabalho: Então? Ele encolhia os ombros e respondia: O costume.
O meu pai cortava árvores, para a serração. Às vezes eu pensava que ele tinha emudecido, como um tronco. As árvores não tinham nada para dizer. Mas estavam lá e davam sombra. Eu gostava do meu pai e das árvores. (p. 16)
E conjuga-se ainda (a referida realidade oscilante objecto da alegoria) com a não rejeição da possibilidade de encontrar um ponto de equilíbrio na oscilação, implicando a demanda de novas luzes (vidências? iluminações?), outras formas de saber, novas formas de re-ligação entre os seres. Leia-se uma das últimas frases da novela em que Ilda diz:
[...] ver tudo muito claro, como se uma luz mais forte se acendesse.
Éramos uma família, vi. O meu pai, a minha mãe, o meu avô e eu. O que quer que acontecesse, a minha mãe voltaria sempre, não punha um pé em falso ao andar nem caía do alto das ravinas. Nem a levava o vento. Porque estava ligada a nós. (p. 46)
Não será esta uma história de fadas dos tempos pós-modernos?
Concluo atentando no facto desta novela de Teolinda Gersão, na sua lineariadade aparentemente tradicional, subverter o referido velho jogo, sempre persistente a nível inconsciente, da oposição, da separação entre experimentalismo formal e linearidade narrativa tradicional. Afinal os caminhos da dominante narrativa pós-moderna - os seus jogos do contar - só poderão ser plurais, fazendo definitivamente explodir também essa remanescente questão. Esta fronteira, também ela, se tornou à evidência débil: a vanguarda afinal não soçobrou em definitivo?
Notas: