Papéis acumulados, experiências para aqui, para ali,
vários livros a crescer lado a lado. Coisas reescritas até à saciedade
e por fim a pequenina explosão já entrevista, pelo menos sonhada (...)
Lava? Não, não exageremos. O resto é trabalho vagaroso.
Feito, desfeito, refeito, rarefeito.
Aprendiz de Feiticeiro - Carlos de Oliveira
O número atual da revista SEMEAR contém, na primeira parte, as conferências pronunciadas pelos participantes do IX Seminário da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio, realizado em novembro de 2001, e intitulado "A situação da narrativa no início do século XXI. Saudades de Sherazade?".
Como já se tornou marca registrada desses encontros anuais da Cátedra, que vêm trazendo para discussão temas e questões que permitem novas abordagens exigidas pela contemporaneidade, a proposta central da edição 2001 do Seminário procurou estimular novas indagações acerca da narrativa. Para isto, tomou-se como ícone Sherazade e sua prodigiosa arte de narrar, e que incita a perguntar: Que pode ensinar a figura de Sherazade a esses tempos pós-modernos? O que seria narrar, hoje? Esta indagação não deixa, entretanto, de embricar-se no questionamento das metanarrativas da modernidade, dadas como narrativas universalizantes, que perderam seu poder de persuasão, num momento em que as pessoas buscam confirmar, das formas mais diversas, o prazer de contar e ouvir histórias e em que as identidades são construídas através de negociações entre o eu e o outro em infinitas e múltiplas camadas, em vez de seguranças fixas como a família, a fé, a raça e a nação, como assegura Andreas Huyssen em Memórias do Modernismo.
Às perguntas propostas pelos organizadores - que é narrar o (e no) mundo contemporâneo? Quem são seus narradores? Na narrativa desta virada de século, a categoria de tempo, privilegiada pela modernidade, é deslocada pela categoria de espaço? Pode-se entender a situação da narrativa contemporânea à luz das idéias de Walter Benjamin? Há hoje um saber narrativo? O que a Filosofia tem a dizer sobre a narrativa, hoje? e outras mais - responderam os conferencistas com competência, originalidade e finura crítica, optando alguns pelo desenvolvimento de questões teóricas e outros, pela teoria aplicada a textos literários, sobretudo à novíssima ficção contemporânea.
A atualização de tais indagações deu-se, como se poderá ler nos ensaios aqui reunidos, por múltiplas perspectivas, envolvendo estudiosos de diferentes instituições de pesquisa - do Brasil e de Portugal - e de diversas áreas. Os olhares contemporâneos, entretanto, não apagam o que a tradição nos legou, mas que pode ser reconfigurado com informações e teorias atualizadas. Talvez se possa dizer que o viés dominante nas abordagens privilegiou a crise da narrativa e, contraditoriamente, a sua permanência e proliferação, guardando, com toda certeza, o traço antropológico e ancestral simbolizado pela figura arquetípica de Sherazade. Conforme mostram os textos dos participantes do IX Seminário, a "arte de narrar" sobrevive nas formas ficcionais da literatura, nas narrativas midiáticas, nas formas da historiografia, no teatro, nas narrativas míticas, nos testemunhos de detentos, nas caricaturas veiculadas pela imprensa, entre tantas outras formas, que, ao fim, permitem delinear um saber narrativo que pode fecundar os estudos de literatura e suas relações com o universo mais amplo da cultura.
Na segunda seção da revista, Varia, quebra-se a rotina de nela se publicarem apenas textos dos pesquisadores da Cátedra e de pós-graduandos a ela ligados, para se trazerem também a público ensaios de convidados que, não podendo participar do encontro, aceitaram fazer-se presentes nestas páginas, pela sua palavra escrita.
Com a mediação dos estudos sobre a narrativa, a Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses da PUC-Rio continua a promover intenso diálogo entre as culturas portuguesa e brasileira.