Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

Sobre Pessoa e Sophia

Sofia Sousa e Silva

Para Tuila Martins Melo Barbosa

Por que fiz eu dos sonhos
a minha única vida?

Fernando Pessoa

Abre a porta e caminha
Cá fora
Na nitidez salina do real

Sophia de Mello Breyner Andresen

A palavra ética é uma constante nos textos sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, pois na obra da autora o belo e o bom caminham sempre juntos. Muitas vezes o termo surge quando se trata da poesia engajada e da participação política de Sophia, militante anti-salazarista que chegou a ser deputada pelo Partido Socialista português depois da Revolução dos Cravos.

Mas acredito que a atuação política e social de Sophia são decorrências de sua ética própria, de um modo próprio de condução da vida, de uma atitude diante do mundo. Para Sophia, escrever poesia foi sempre uma forma de vida. Por isso a ética sempre esteve presente na sua obra, desde os anos 40 quando publicou o primeiro livro de poesia e mais marcadamente a partir de Livro Sexto, de 1962. Dar a ver a realidade era para ela como uma obrigação moral do poeta. Ver e dar a ver, não se isolar numa torre de marfim, tomar parte ativa na "cidade dos homens", para usar uma expressão da autora.

Esse pensamento e essa ética de Sophia ficam claros nos poemas-homenagens que faz a Fernando Pessoa, um poeta de quem ela em quase tudo difere. E é exatamente no âmbito de uma visão de mundo e de uma atitude que surgem as principais diferenças entre os dois poetas.

Sophia é poeta que se ocupa das coisas concretas, Pessoa é poeta da imaginação e do não-ser. Essa escolha é por si só indicativa de posicionamentos diferentes. A poesia de Sophia emerge de uma atenção cuidadosa ao mundo exterior, de um radical amor à vida e da crença numa unidade primordial de todas as coisas. A poesia de Pessoa vem de um profundo pesar pela consciência da finitude e do sentimento de falta de sentido da vida.

Não se pode negar que ambos são poetas em "tempo de indigência" (na expressão de Hölderlin) ou poetas de um mundo que vive o exílio dos deuses (numa expressão de Sophia). E para ambos a poesia foi igualmente uma forma de salvação, uma estratégia para sobreviver à tragédia.

Nessa tentativa de salvação, Sophia estabeleceu seu ideal na Grécia clássica, onde "tudo é divino como convém ao real", como explica num dos poemas sobre Pessoa. Já Pessoa, incapaz de encontrar o divino onde quer que fosse, nunca deixou de buscá-lo em toda parte e sobretudo na linguagem. Disso decorre o sentimento de afirmação que perpassa a obra de Sophia de Mello Breyner e o sentimento de dúvida da poesia de Fernando Pessoa.

"Teu corajoso ousar não ser ninguém"[2]

Para Sophia de Mello Breyner, assim como para muitos críticos da obra de Fernando Pessoa, ele foi o que levou mais adiante a tentativa de Ulisses de ser ninguém. Para dar conta da sua angústia existencial de homem que vive o tempo da fragmentação, Pessoa multiplicou-se em heterônimos, buscando imputar a cada um deles uma visão de mundo própria.

Segundo Foucault, a modernidade se inaugurou no século XIX quando o homem se deu conta do artifício da linguagem. Se até então o pensamento hegemônico era de que linguagem e realidade caminhavam lado a lado e a linguagem dizia a verdade do mundo, com a emergência das ciências humanas e a invenção do homem como um objeto de estudo, a linguagem deixava de ser um espelho do mundo. Quando não é só a natureza que se estuda, mas também o homem, os tradicionais papéis de sujeito e objeto se vêem alterados. Antes o homem era sempre sujeito agindo sobre o mundo, que conhecia através da linguagem. Com a crise da representação, a linguagem perde sua capacidade de organizar a realidade.[3]

A famosa frase de Nietzsche sobre a morte de Deus aponta para esta mesma questão. Deus existia antes como um princípio organizador, como aquele que dava o sentido final e transcendente à vida.
Quando já não há Deus nem deuses, a realidade deixa de fazer sentido, torna-se puro caos e acaso. A única certeza que permanece é a morte.

Pessoa viveu esse tempo. Ele buscou a salvação numa vida inventada. Inventou vários poetas e até uma pátria. Cada um de seus heterônimos exprime uma forma de se relacionar com a finitude, um novo modo de ser. Não satisfeito com a invenção de várias vidas para si, Pessoa inventou uma vida mais poderosa para a pátria portuguesa. Não é por acaso que se encontram em Mensagem dois versos que são chave para o entendimento do seu pensamento e da sua poesia:

Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Em muitos de seus ensaios sobre a poesia de Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço procura esclarecer que Pessoa não é simplesmente o poeta da melancolia e da angústia diante da morte, como pode parecer. Ele também o é. Mas, se de muitos textos seus emana uma tristeza profunda, é preciso tentar entender o empreendimento poético de Pessoa como uma tentativa de resgate de um sentido para a existência.[4]

Pessoa viveu até o fundo a tragédia do seu tempo, de que Deus estava morto. Para livrar-se dela desejou a inconsciência, idea-lizou um poeta cujos pensamentos são todos sensações, fez-se plural. Procurou de diversas formas fragmentar-se para sobreviver à fragmentação de seu tempo. Deparou-se com o nada em todas as direções para onde foi. A sua poesia é oriunda desse encontro com o vazio.

Pessoa não viveu num mundo nomeado, com tudo em seu lugar. A criação dos heterônimos pode ser entendida como tentativa de, através da palavra, construir um mundo que ele pudesse habitar. Se a relação entre linguagem e realidade não é mais estável, Pessoa tentou criar, pelo menos no domínio da linguagem, uma outra realidade. Segundo Eduardo Lourenço, na modernidade "o verbo busca com sua proferição criar o 'sentido' que não lhe vem de parte alguma". A heteronímia é o maior exemplo disso.

A heteronímia é a busca de um sentido outro para a vida. Se no real da vida a única determinação é a morte, pelo menos no mundo inventado de Pessoa poderia haver uma outra grande razão, como ele anuncia num poema do ortônimo:

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Neste poema, são transferidos para as estrelas o sentimento de impotência, o cansaço de ser, a angústia pela falta de sentido da vida. Se o poeta busca uma outra espécie de fim para as estrelas, algo que lhes confira algum sentido, não o busca menos para si mesmo.

Pessoa e Sophia

Em seu livro Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do Orpheu a 1960, Fernando J. B. Martinho refere uma entrevista de Sophia de Mello Breyner a Maria Armanda Passos na qual

Sophia falava amplamente do seu diálogo com Pessoa e chamava a atenção para um poema de Coral, de 1950, "Sibilas", que visava, partindo de uma crença na "positividade" e na "unidade", os poetas da "renúncia" e da divisão como Fernando Pessoa.[5]

Ou seja, num primeiro momento, pode-se entender que a atitude de Sophia com relação a Pessoa era de uma certa condenação. Não uma condenação da sua poesia propriamente, mas das idéias que ela veicula. Na mesma entrevista, Sophia critica o ascetismo de Pessoa, dizendo que "a vida tem uma prioridade, uma evidência que não pode ser negada", "é necessário superar a renúncia".[6]

Nos poemas da série "Homenagem a Ricardo Reis", de Dual (1972), podemos ver um exemplo claro da diferença de atitude entre os dois poetas. São conhecidos versos de Reis "Não vale a pena / Fazer um gesto." e "Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. / Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. / Mais vale saber passar silenciosamente / E sem desassossegos grandes." A passividade é grande característica sua. É justamente contra ela que Sophia, usando os temas e formas de Reis, se posiciona.[7] Vejamos o primeiro poema da série:

Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo[8]

Tanto o sujeito poético do poema de Sophia quanto o do poema de Ricardo Reis partem da consciência de que só se vive uma vez. Porém Reis aconselhará a sua Lídia a não se cansar porque nada vale a pena, numa atitude de renúncia. No poema de Sophia, ao contrário, extrai-se da fatalidade um desejo maior de aproveitar enquanto é possível. Nessa dialética resume-se um ponto importante da questão Pessoa-Sophia: a ética para com a vida. Sophia canta a luz, Pessoa foi, nas palavras de Eduardo Lourenço, aquele que começou a "Odisseia da Noite". Por isso há tanto mar e tanta paisagem na poesia de Sophia e o há tão pouco na de Pessoa. Por isso há em Sophia uma preocupação com a vida vivida e em Pessoa, uma preocupação com a vida pensada.

O sentimento trágico é comum aos dois poetas, o que difere são as respostas de cada um. Na entrevista a Maria Armanda Passos, Sophia reconhece que a sua poesia é um esforço de transformar o caos em cosmos, uma tentativa de não se afogar na multiplicidade. Sophia encontra a alternativa à renúncia num pensamento da unidade que tem sua origem na Grécia clássica, sobretudo pré-socrática. Num ensaio sobre arte grega, ela diz:

A claridade grega é uma claridade que reconhece a treva e a enfrenta. [...] Os Gregos inventam a tragédia porque sabem que a treva existe e a interrogam e a enfrentam.[9]

Posteriormente a atitude crítica de Sophia com relação a Pessoa sofrerá algumas modificações. Nos dois principais poemas que escreveu sobre Fernando Pessoa - "Cíclades" e "Em Hydra, evocando Fernando Pessoa" -, ambos posteriores a Coral, Sophia reconcilia-se com o poeta. Nos dois textos, sobressaem a visão clara, o olhar meticuloso e preciso, "imparcial como a neve" do poeta.

Ao escolher a Grécia para fazer as duas evocações de Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen integra-o no weu pensamento da unidade. Diante da clareza da manhã grega, Sophia evocará a visão clara de Pessoa mas, como já havia feito na "Homenagem a Ricardo Reis", a evocação (que depois se torna invocação) acrescenta-lhe uma nova perspectiva, própria da autora.

Instalada na diferença que de Pessoa a separa e une, Sophia restitui a túnica dilacerada do imaginário português, a sua fragmentação sem remédio, na sua poesia unificante [...] Sophia resumiu num só poema ["Cíclades"] o seu destino de Penélope, a si mesma fiel, tecedora do mais alto dia e da mais viva esperança no meio da noite, nossa e da vida.[10]

O empreeendimento poético de Pessoa deixa de ser visto apenas como renúncia, tornando-se busca da salvação que Sophia encontra na Grécia e no pensamento pré-socrático. Pois é ela também

[...] aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida[11]

Bibliografia:

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética I. 4 ed. Lisboa: Caminho, 1998.
---. Obra Poética II. 3 ed. Lisboa: Caminho, 1998.
---. Obra Poética III. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1996.
---. Antologia. 4 ed. Lisboa: Moraes, 1975.
BARBOSA, Márcia. Sophia Andresen: Leitora de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2001.
BERARDINELLI, Cleonice. Mensagem. In: Estudos de Literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.
---. Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual. In: Estudos Camonianos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
D'AMARAL, Marcio Tavares. O Homem sem Fundamentos: sobre Linguagem, Sujeito e Tempo. Rio de Janeiro: UFRJ-Tempo Brasileiro, 1995.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Ciências Humanas. Tradução de António Ramos Rosa. Lisboa: 70, [s.d.].
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica: Camões, Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da Costa, 1983.
---. Fernando, Rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moe-da, [s.d.].
MARTINHO, Fernando J. B. Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do Orpheu a 1960. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983.
MOURÃO-FERREIRA, David. Nos Passos de Pessoa - Ensaios. Lisboa: Presença, 1988.
PASSOS, Maria Armanda. JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. n. 26, 16 de fevereiro de 1982.
PESSOA, Fernando. Mensagem. À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais. Quinto Império. Cancioneiro. Anotações de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
---. Poemas. Seleção e introdução de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
---. Poesias de Fernando Pessoa. 9 ed. Lisboa: Ática, 1973.
---. Poemas de Álvaro de Campos. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, 1999.

 

Notas:

  • 1 Monografia desenvolvida no curso de pós-graduação intitulado "A Geração de Orpheu", ministrado pela Professora Cleonice Berardinelli na PUC-Rio no primeiro semestre de 2001. Este texto foi publicado em outra versão sob o título "Sobre Ética e Poesia em Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen" em www.ciberkiosk.pt.
  • 2 Sophia de Mello Breyner Andresen, "Fernando Pessoa", Livro Sexto, in: Obra Poética II, 3 ed., Lisboa, Caminho, 1998.
  • 3 Esta questão foi amplamente explorada por Michel Foucault em seu livro As Palavras e as Coisas (tradução de António Ramos Rosa, Lisboa, Edições 70, s.d.) e retomado por diversos autores, entre eles Marcio Tavares d'Amaral em O Homem sem Fundamentos (Rio de Janeiro, UFRJ-Tempo Brasileiro, 1995).
  • 4 Cf. Eduardo Lourenço, "Pessoa ou a realidade como ficção", in: Poesia e Metafísica: Camões Antero, Pessoa, Lisboa, Sá da Costa, 1983, p. 163.
  • 5 Fernando J. B. Martinho, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do Orpheu a 1960, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 102.
  • 6 Maria Armanda Passos, JL, n. 26, 16 de fevereiro de 1982.
  • 7 Ver também o livro de Márcia Barbosa, publicado pela Universidade de Passo Fundo, intitulado Sophia Andresen: leitora de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa. Há uma certa afinidade entre a análise feita por Márcia Barbosa e esta.
  • 8 Considero que este poema remete ao poema de Reis cujo primeiro verso é "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.", onde se aconselha a Lídia nada fazer para evitar sofrimento posterior.
  • 9 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nu na Antiguidade Clássica, 3 ed., Lisboa, Caminho, 1992, p. 23.
  • 10 Eduardo Lourenço, "Para um retrato de Sophia", in: Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, 4 ed., Lisboa, Moraes, 1975.
  • 11 "Santa Clara de Assis", No Tempo Dividido, in: Obra Poética II, op. cit