Alexandre Montaury
"Oh, Lisboa, meu lar!"[2]
"Je est un autre"[3]
O leitor de Fernando Pessoa não necessita fazer muito esforço de interpretação para identificar uma significativa familiaridade entre o heterônimo Álvaro de Campos e o semi-heterônimo Bernardo Soares.
Esta dupla se apresenta marcada por idéias e representações recorrentes que vêm sublinhar semelhanças entre as poéticas de um e do outro, apesar de Campos "escrever" poesia e Soares, prosa.
Apesar de todas as simulações de que estão crivados os textos de Fernando Pessoa, inclusive seus relatos epistolares, na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro o autor revela com relativa clareza a gênese dos heterônimos e reconhece uma espécie de parentesco entre Soares e Campos, ao responder à pergunta: "Como escrevo em nome desses três?..." (Caeiro, Reis e Campos):
Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterônimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o racio-cínio e a afetividade. [...])[4]
A classificação de Bernardo Soares como semi-heterônimo é uma atualização àquela que Pessoa fizera poucos anos antes em carta a João Gaspar Simões, quando situava Soares não como heterônimo, mas como "uma personalidade literária".[5] O fato é que se pode entrever uma embaralhada relação identitária entre Fernando Pessoa "escritor real", Bernardo Soares e Álvaro de Campos.
Bernardo Soares não terá sido um heterônimo pleno por parecer-se demasiadamente com o próprio autor em muitos aspectos. Um exemplo é o que se pode ler em alguns de seus dados "biográficos". Soares, na sua função de guarda-livros, teria passado boa parte da vida nos quarteirões da Baixa lisboeta (assim como Pessoa), escrevendo fragmentos de sua prosa poética nos intervalos de uma e outra tarefa burocrática, vivendo solitário em quartos modestos e alugados. Fernando Pessoa, por sua vez, exercia a função de redator e tradutor de cartas comerciais e transitava, portanto, numa atmosfera similar a esta representada e descrita por Bernardo Soares.
Analisando a vida de Pessoa com os "dados biográficos" atribuídos a Álvaro de Campos, também se verificam analogias. Assim como Pessoa em sua infância, o heterônimo terá experimentado um exílio em país de língua inglesa, o que terá transformado para sempre aquela Lisboa da Praça da Figueira em uma mera "memória vã".[6] Pessoa viveu os anos decisivos de sua formação em Durban, na África do Sul, e tornou-se um escritor bilíngüe.[7]É provável que este dado guarde relação com o fato de Campos ter sido inventado em relação a um paradigma cosmopolita inglês e sob influência da língua inglesa; mas a proximidade não se limita a este jogo superficial de combinação de hipóteses e vivências virtuais. Em carta de 13 de janeiro de 1935 a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa escreve categoricamente: "pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida".[8]
Bastante sintomático é o fato de que Campos, um engenheiro urbano, metropolitano, contemporâneo das usinas e da luz elétrica, julgue Fernando Pessoa "um novelo embrulhado para o lado de dentro". Esta declaração revela uma certa compensação projetada em contrapartida a tudo aquilo que na vida real Pessoa não terá conseguido ser, ou deixar de ser, ou sequer desejar ser. É o que talvez faça de Álvaro de Campos o heterônimo mais próximo de Pessoa, por constituir a sua forma de realização ideal.
O estilo diverso
Deixando de lado os "aspectos pessoais" desta relação, é possível afirmar que, apesar das reconhecidas "notáveis semelhanças", é na já referida carta a Gaspar Simões que Pessoa, para marcar diferenças, evoca o estilo como um dos divisores essenciais. Ele é categórico ao afirmar que Álvaro de Campos escreve pior do que Bernardo Soares.[9] Em seu fazer poético, a língua portuguesa seria utilizada de modo desleixado e a fragmentação das imagens, embora mais íntimas em Campos, são menos propositadas que as de Soares.
Em relação a si mesmo, Pessoa realça as diferenças entre ele e Soares "no modo de ver e de compreender, mas não [...] no estilo de expor". Para Pessoa, seria mais fácil criar um heterônimo nas instâncias poéticas; em prosa seria mais difícil "outrar-se".
Bernardo Soares, portanto, não é Pessoa por adição de elementos, como sucede a Álvaro Campos e aos outros, mas por subtração. Como o próprio "autor real" esclarece na célebre gênese, Soares é Pessoa menos a afetividade e o raciocínio, ao passo que Álvaro de Campos escreve acrescido da força, da ironia, da ousadia, da "vivência" que talvez faltasse de fato ao ortônimo. No que concerne ao seu estilo, é bastante esclarecedor o que Ricardo Reis observa na poesia de Campos: o fato de a idéia servir-se da emoção para se exprimir em palavras, de modo que ocorra como um "extravasar".
Por outro lado, na prosa de Bernardo Soares o que se pode verificar é uma profunda inadaptação do sujeito à realidade da vida, condição a que Pessoa também parece sujeito, por tudo que ele mesmo revela em muitas de suas cartas e páginas íntimas.
Na prosa de Soares, Jorge de Sena[10] observa um constante devaneio, pelo fato de não se ater "à logicidade da prosa raciocinante ortônima", nem se submeter à disciplina com que ele cria a prosa heterônima. Na carta a Gaspar Simões, Pessoa, comparando Soares ao Barão de Teive, escreve: "[...] em Bernardo Soares o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual, despido de imagens, hirto e restrito; e o do burguês é fluido", com qualidades musicais e plásticas, pouco arquitetural. O estilo do guarda-livros é o de não dominar as emoções nem os sentimentos. Isto faz com que, na obra de Soares, o pensar também não surja autônomo, "mas subsidiariamente a sentir".[11]
Lisboa na intimidade
Todavia, entre aproximações e afastamentos, há uma Lisboa revelada.
É extremamente saboroso o fato de que tanto Soares quanto Campos guardem relações íntimas e peculiares com a cidade de Lisboa. Porém, embora em matizes semelhantes e com referentes que por vezes coincidem, os dois freqüentemente revelam a cidade com olhares diferentes. É como se dois filtros afetivos ou duas lentes diversas se pusessem entre a cidade e seu(s) (dois) narrador(es): se em Bernardo Soares prevalece a "paisagem estado de alma", a que se constrói no terreno fluido da intimidade e que vai do sonho à sensação, em Campos, a Lisboa que se nos dá a ver é estilhaçada e perdida no tempo da sua infância, uma cidade desaparecida na ânsia nostálgica do poeta.
Isto não impede que muitos dos elementos urbanos descritos coincidam em representações recorrentes, embora nem sempre coin-cidam os pontos de vista e os sentimentos que mobilizam os observadores. Apesar das referências coincidentes à casa das tias, à tabacaria, ao piano mal tocado, é interessante que cada relato guarde em relação ao outro momentos de aproximação, mas também de afastamento. E é este movimento o que aqui interessa analisar de modo mais detido.
Nos textos atribuídos a Soares e Campos, Pessoa não apenas representa uma Lisboa real, mas abarca e compreende principalmente a cidade imaginada, a cidade da intimidade, a cidade da memória, ou antes aquela cidade real que surge no espaço do imaginário. De que modo Pessoa foi procurá-la? Nas ruas, na geografia urbana, no traçado cotidiano, do lado de fora da janela, como escreve, pela voz de Campos, em "Tabacaria":
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém
[sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
[gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos
[homens
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
[nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.[12]
Já os itinerários de Bernardo Soares, construídos a partir dos de Pessoa, são, para o semi-heterônimo, como meditações:
[...] a rua dos Douradores é "a vida inteira"; é ali, afinal, onde todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes e guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.[13]
Muito mais do que uma cidade sonhada ou idealizada, a cidade que surge no texto de Soares é uma cidade construída por dentro. Ele diz:
A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
Com isso, é inevitável recordar José Cardoso Pires em Lisboa, Livro de Bordo,[14] onde faz uma referência que poderia até funcionar como epígrafe deste trabalho:
"Lisboa é meu lar!" - escreveu [Pessoa], assinado por Bernardo Soares. E era. Habitou-a à sua maneira, friamente, fechado em si, quer-me parecer, e daí a intimidade desencantada com que a redigiu. Conheceu-a de muitas moradas: escritórios, Baixa pombalina, casas de pasto herdadas de galegos, cafés-bagaços, quartos de aluguer desde Arroios a Campo de Ourique (moradas de solidão, moradas) mas com tudo isso andou-a (leu-a, melhor dizendo) por linhas de desassossego, mais atento à alma dela do que à voz. Lisboa era-lhe um estado de espírito ("Rua do Ouro acima, pensando em tudo o que não é a Rua do Ouro", não foi assim que ele a conheceu, de braço dado com o Álvaro de Campos?)[15]
No estudo introdutório à sua seleção do Livro do Desassossego, Leyla Perrone-Moisés situa Lisboa como a grande personagem, descrita e olhada com apaixonada atenção. Vale recordar que, num diálogo fictício estabelecido entre Marco Polo e Kublai-Khan no livro As Cidades Invisíveis, Italo Calvino sugere que não se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve, embora haja alguma relação entre eles.[16]
Considerando este princípio, o que se pode ver da Lisboa descrita através de fragmentos reiniciados insistentemente e articulados como uma seqüência pictórica de imagens, pelo relato de Bernardo Soares, é que este parece privilegiar o contorno sutil da cidade, a atmosfera urbana em articulação com os pensamentos, com as sensações e as impressões, e o faz conferindo realce às variações da luminosidade urbana em detrimento das formas objetivas.
A habilidade de ler a cidade em sombra e luminosidade, nas nuanças sutis das sensações, talvez se explique pelo fato de que Lisboa é um pressuposto para Soares. Não é a configuração da paisagem nem os contornos físicos que se destacam em sua prosa poética, que apreende, de preferência, a atmosfera da cidade, que, em suma, é constituída pelo estado de espírito de quem olha. Aos olhos do habitante, os itinerários já ali estão, moldados pelo hábito,[17] e Bernardo Soares é dali. Faz parte de Lisboa - embora seja como se sequer figurasse em sua paisagem - mas faz parte da cidade sobretudo com os olhos que a focalizam, parecendo, contudo, focalizar uma cidade construída por dentro.
Em seu artigo "É a cidade que habita os homens ou são eles que habitam nelas?", Nelson Brissac Peixoto refere-se ao que ele chama de o "aparente paradoxo da obra de Benjamin": o encontro da cidade com os homens se dá quando estes percorrem terras desconhecidas ou quando se fazem estranhos em sua própria cidade. Este processo está presente tanto na poética da implosão de Bernardo Soares quanto na poesia explosiva de Campos. Para Soares o que parece importar é ler, escrever e descobrir onde na cidade ainda vibram sinais de vida e de onde vem a luz que por vezes a faz resplandecer. Mas, como escreve Brissac, é preciso saber deslocar o olhar das molduras do hábito para olhar profundamente.
É neste processo que a Lisboa de Bernardo Soares pode ser considerada uma cidade íntima. Na maior parte das vezes, revela-se uma "cidade oprimida", feita de névoa e céu carregado, povoada de pessoas vulgares e barulhentas, que se movem como fantoches, entrando em elétricos ou saindo de tabacarias, carregando mercado-rias, trabalhando em escritórios sombrios ou vivendo em casas de cômodos.[18]
Nessas descrições da cidade ocorre o que Leyla Perrone-Moisés chama de um verdadeiro milagre escritural. Ainda que o texto apresente um olhar voltado sistematicamente para o vulgar, para o depressivo e para o desagradável, expressa um comovido amor pela cidade. Este sentimento atinge por vezes a euforia nas formas achadas para captá-la, como no trecho que segue:
Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. [...] Mas senti que teria pena.[19]
É desta forma que Bernardo Soares vê, lê e escreve a sua Lisboa: uma "paisagem estado de alma". Mas sob o olhar desencantado do guarda-livros, filtrado pelas névoas interiores, vive a cidade real. Lisboa surge no texto com uma concretude flagrante: um vasto céu, seu cheiro, o Tejo, os ruídos, os rumores que a vida moderna impõe e a desordem de Lisboa totalmente enquadrada em sua condição de metrópole cosmopolita.
Enquanto isto, Álvaro de Campos afina seu olhar cosmopolita na tentativa de reencontrar aquela sua Lisboa perdida para restaurar e recuperar os estilhaços de um tempo bom, perdido na infância, aquele "em que festejavam o dia dos meus anos".[20]
Álvaro de Campos parece enquadrar-se melhor do que Soares no tipo moderno de então, cuja vida é essencialmente urbana e "cosmopolita". Campos é um homem metafísico, multifacetado, multidimensional, ao mesmo tempo engenheiro, poeta sensacionista, cidadão cordial. Sua noção de tempo e de pessoa parece ser constituída pela soma dos efeitos que emanam de sua subjetividade veloz e narcísica. Um dos mais fortes aspectos da sua obra busca dar conta da efemeridade dos acontecimentos, da rápida e constante superação de um momento pelo outro, de modos de ser. Isto está necessariamente atrelado à questão da morte, ainda que, muitas vezes, a relação de sua poesia com o fatal se dê do ponto de vista simbólico: Álvaro de Campos vê o caráter transitório de tudo com "raiva de não ter trazido o passado na algibeira". Esta visão pode ser detectada em muitas partes da sua poesia, como no trecho que segue, por exemplo:
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e per-
[di-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
Álvaro de Campos é dotado de um olhar pragmático e fatal que muitas vezes busca a síntese da expressão. Em "Demogorgon", o poeta escreve: "Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda. / Uma tristeza cheia de pavor esfria-me". Versos como este Campos terá assinado vários. Revelam uma espécie de hábito das grandes cidades, gerador de indiferença em relação a elas. A cidade boa de viver, entretanto, é aquela Lisboa definitivamente perdida, a cidade que sequer retornará pela memória.
Sua subjetividade múltipla e dilacerada multiplica-se para dividir-se. Como afirma a professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva citando uma reflexão subjacente de Eduardo Lourenço:
Ser muitos é exacerbar a consciência do nada, é perscrutar por muitas vias o vazio do ser, é experimentar a sensação dolorosa de partir-se em cacos sem a proposta de vir um dia a recompor o vaso - por serem os cacos mais que a loiça, porque o todo não é a soma das partes, porque o eu é uma ficção.[21]
Pessoa escreve, em "Apontamento":
A minha alma partiu-se como um vaso vazio
Caiu pela escada excessivamente abaixo
Caiu das mãos da criada descuidada
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.[22]
A vida moderna definia-se, então, em grande parte, pelo despedaçamento da subjetividade e a poesia de Álvaro de Campos é um atestado poético de que já não havia como sonhar com a restauração da unidade; o descuido da "criada involuntária" não tinha retorno. Era chegado o tempo de o sujeito perder definitivamente a utopia do centramento e da inteireza do eu.
Se a subjetividade esfacelada desconhece o encontro consigo mesmo e já não é capaz de reconhecer o mundo, o ato vertiginoso de revisitar a cidade da infância já não é suficiente para uma recuperação das imagens que compuseram outrora o cenário da vida. Em "Lisbon revisited", até no título em língua estrangeira, a "estrangeirice" se concretiza. O título em inglês batiza dois poemas ("Lisbon revisited" 1923 de 1926) em que Campos revê a Lisboa da sua infância sem a reencontrar.
A cidade de Campos está para sempre perdida, nada é capaz de recuperá-la. Ali, ele é "estrangeiro como em toda parte". É como se nenhuma memória pudesse devolver o passado. Deste modo, sua visão se decompõe em fragmentos fatídicos que não recompõem a identidade, porque a magia do espelho se perdeu ao partir-se em cacos, cacos do espelho, da cidade e do sujeito.
A intimidade de Lisboa
As repercussões interiores do ser humano e as inquietações de Pessoa se mantêm atuais até hoje. A janela e a cidade, temas recorrentes em sua obra, continuam preocupações contemporâneas. Não é diferente no Livro do Desassossego, onde a vida moderna e vertiginosa de um burguês anônimo comum, atingido pelo tédio, pela inquietação e pelo medo, é visitada com passos certeiros. Bernardo Soares nos apresenta a passagem da massa humana da Baixa e nos convida para estar à "beira-mágoa" no Terreiro do Paço, dividindo o olhar entre o Castelo de São Jorge e o Tejo, através de uma janela indiscutivelmente lisboeta para contemplar o casario ao luar.
Apesar de as coisas terem significados gerais e íntimos para Bernardo Soares, sua Lisboa está dotada de uma certa dose de objetividade e realidade. Como afirmou Leyla Perrone-Moysés,
[...] é o registro de um olhar nem totalmente objetivo, nem totalmente subjetivo; porque é Lisboa mais o seu olhar, com tudo o que ele tem de português em seus anseios e saudades, com tudo o que ele tem de pessoano em seu cansaço lúcido de insônia.[23]
Na confirmação disto, Bernardo Soares diz:
Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que [...] e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.[24]
Em Álvaro de Campos, a cidade é lida no seu viés, liberada das amarras referenciais para que possa acontecer no império retumbante da linguagem. O olhar é o de um sujeito em crise, um eu dilacerado, perdido entre suas máscaras multiplicadas e uma cidade íntima, embora estrangeira.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez te sonho aqui
[...]
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver
[...]
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...[25]
A Lisboa de Álvaro de Campos parece mais objetiva do que subjetiva. Isto porque é a cidade que ele revisita mas que, intimamente, nunca consegue reencontrar. Os elementos integrados que compõem o todo da cidade perderam a identidade e o contorno, e se transformaram em uma "mágoa revisitada" que habita um sujeito estilhaçado em face de uma cidade sem memória.
Se, em Álvaro de Campos, o olhar - em que predomina a própria subjetividade - busca ler a cidade concreta, ampliando a ressonância da subjetividade e construindo uma Lisboa de imagens inesperadas, é por não acreditar nem na paisagem real, nem na "paisagem estado de alma" que Soares se mostra um paisagista. O guarda-livros descreve a paisagem sem pretensão de rigorosa fidelidade; mas também não a psicologiza. O processo é diferente. Soares adapta a sua cidade àquilo que ele classifica como a "insuportável interiorice".
Leyla Perrone-Moysés lembra que,
[...] como seu conterrâneo e mestre Cesário Verde, outro notável captador da essência lisboeta, Pessoa se transubstancia nos aspectos de sua cidade, a ponto de não sabermos mais o que é dele e o que é da cidade. É a imagem de um exterior em que um interior se imprimiu, como uma pegada.[26]
Mas em Bernardo Soares não há um ensimesmamento autocomiserado. Muitas vezes, o estado de consciência atingido o conduz ao desvendamento de pequenas sínteses maravilhosas do universo e da vida.
O escritório de contabilidade em que trabalha na Rua dos Douradores não é apenas o cenário de uma subjetividade infeliz. Tudo acaba resultando, através da observação do pormenor, numa experiência sublime. O pormenor vulgar se transfigura; o olhar, detido em um tinteiro ou em um monte de lixo, termina por fixar-se no céu ou nas estrelas. É como se, mais que todos, os elementos mais banais da vida cotidiana contivessem lições secretas a serem reveladas em observações poéticas:
Diante de uma revelação tão pessimista, só resta ao guarda-livros uma "viagem na cabeça", como a que foi expressa no poema "Tabacaria", assinado por Álvaro de Campos, e que no Livro do Desassossego se repete de várias formas:
Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com distância exposta para a viagem aos países incógnitos, ou supostos, ou somente impossíveis.[27]
Assim, só resta ao guarda-livros uma "viagem na cabeça", vale recordar uma conferência feita em 1983 por Italo Calvino quando propôs-se a falar sobre o que lhe acontece quando tira os olhos da página escrita e olha em redor, o que faz sempre preocupado em voltar àquelas páginas o mais rápido possível. E, impõe-se a pergunta: se a página escrita é o único mundo em que se sente à vontade, por que deixá-lo, aventurando-se neste outro imenso mundo que não pode controlar?
A resposta lhe parece simples. Diz Calvino, como poderia ter dito Bernardo Soares:
Porque sou escritor. Esperam que eu lance olhares curiosos ao meu redor, capte imagens do que se passa, e então me curve sobre minha escrivaninha e continue minha tarefa temporariamente interrompida. É para fazer funcionar de novo minha fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não escrito.
E conclui sua palestra afirmando com a beleza que consegue dar às suas constatações:
Os poetas e escritores que admiramos criaram em suas obras um mundo que para nós parece o mais significativo, contrapondo-o a um mundo que também para eles carece de significado e perspectiva. Acreditando que seu gesto não era muito diferente do nosso, levantamos nossos olhos da página para sondar a escuridão.[28]
Bibliografia:
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
---. "A palavra escrita e a não escrita", Jornal do Brasil, caderno Idéias, 3 de agosto de 1996, p. 4.
SENA, Jorge de. Fernando Pessoa e a Heteronímia: Estudos Coligidos - 1940-1978. Lisboa: Edições 70. 1984.
PEIXOTO, Nelson Brissac. É a cidade que habita os homens ou são eles que habitam nelas?. Revista da USP, n. 15, out.-nov. 1992, p. 72-75.
PESSOA, Fernando. Alguma Prosa. Organização e prefácio de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
---. Obras em Prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.
---. Poemas de Álvaro de Campos. Edição crítica de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
---. O Banqueiro Anarquista e Outras Prosas. Seleção de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1986.
---. Livro do Desassossego. Org. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Brasiliense, 1986.
RIMBAUD, Arthur. Poésies. Paris: Classiques Français, 1993.
Semear - Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro, PUC-Rio. Números 1, 2, 3 e 4.
Notas: