Olgária Chain Féres Matos
USP
"Não tinha réplica", escreveu Balzac em Le Cousin Pons. "Era feito como (peça) única para Mme. Pompadour." Trata-se de um esplêndido leque pintado por Watteau que Sylvain Pons, colecionador obsessivo, oferece a sua prima. Cada objeto se associa a uma constelação de signos: seu passado, a história de sua aquisição, seu preço, a lista de seus antigos proprietários, sua data de fabricação, seu modo de produção. Impregnado por um acréscimo de alma ou de aura, preserva sua especificidade; não se inscreve em nenhuma série e cria uma ordem inédita que indica um tempo diverso de sua simples presença; alegoria do passado, é também, recordação íntima.
A citação condensa toda a filosofia de Walter Benjamin, da crítica literária à epistemologia, do surrealismo à fotografia, da tarefa do tradutor à do historiador, da faculdade mimética ao conceito de história. O filósofo estabelece com a citação um double bind.
Criadora de descontinuidades, a citação introduz na leitura a questão do duplo: o "estranho", o "surpreendente", o "perturbador". Aprendemos com Freud que o sentimento do que é "perturbante" alia-se ao "perpétuo retorno do sempre igual", a uma repetição. Uma das ocasiões de temor pânico constitui-se na duplicação de si por obra de um sósia: o duplo põe aos pedaços a identidade de algo, usurpando-lhe os caracteres e o destino. O familiar e o estranho não são estados sucessivos, mas simultâneos:
[…] assim, o autômato dos Contos de Hoffmann é inquietante na medida em que o tomavam a princípio por um ser vivo; o demente, na medida em que a princípio parecia sensato; o criminoso, na medida em que nada o designava a priori como tal quando vai ao encontro daquele que projetava assassinar.[1]
Em sentido próximo, a citação é repetição sem ser coincidência, é refúgio na dimensão do mesmo e apelo de um outro. Em "A Imagem de Proust", com as idéias "semelhança" e "correspondência", compreende-se que a citação se coloca fora da lógica da identidade uma e una. Alegórica, ela torna manifesta a inadequação entre o contexto original e o atual, entre o objeto e sua representação; isto porque a memória involuntária "pertence ao repertório da pessoa privada" cujo passado, porém, entre em conjunção com o passado coletivo".[2] A memória inintencional, como a denominou por sua vez Freud, possui função hermenêutica e transformadora. Citare é "pôr em movimento", "trazer para si", "chamar": "a Revolução Francesa se entendia como uma Roma recomeçada. Ela citava a antiga Roma exatamente como uma moda cita uma vestimenta de outrora".[3] Não é a história que, hegelianamente indicia os homens em seu tribunal com seu poder de veredicto; são os homens que julgam a história:
Nada de tudo que acontece deve ser considerado perdido para a História. É tão-somente a uma humanidade liberada que pertence plenamente seu passado. Só para ela, cada um de seus momentos se tornou citável. Cada um dos instantes que viveu, torna-se uma citação l'ordre du jour.[4]
Citação é "força motriz":
[...] seu sentido encontra-se no acidente e no choque
[...]. É preciso contar com sua potência e cuidar para que não se a neutralize, pois este poder mobilizador é a citação tal como em si mesma, antes de o ser para qualquer outra coisa.[5]
A citabilidade supõe eternidade da obra ou permanência das virtualidades de um acontecimento do passado, eternidade que não é um "tempo infinito", mas relação entre o passado e sua renovação; na história escrever é citar, é conferir uma "fisionomia às datas". Assim os revolucionários de julho de 1830, na França, qual "novos Josués", interromperam o tempo histórico, revelando que um destino inteiramente outro teria sido possível: "a revolução de Julho comportou um incidente em que essa consciência histórica pôde fazer valer seus direitos. À noite do primeiro dia de combate, verificou-se que em lugares diversos de Paris, independentemente e ao mesmo tempo, (os revolucionários) atiraram nos relógios públicos", como se procurassem "parar o dia".[6] Essa figurabilidade se faz pela correspondência entre um "exterior visível" e um "interior escondido", como a história de um rosto no qual o fisiognomista e os instantâneos fotográficos, a igual título do colecionador, adivinham a alma e pressentem seu destino. Estes ludistas do tempo nos dão a conhecer o que ainda hoje faz viver cartomantes, quiromantes e astrólogos:
[...] eles sabem colocar-nos em uma dessas pausas silenciosas do destino, as quais, só depois, percebemos que continham o gérmen de um destino inteiramente outro daquele que nos foi reservado.[7]
Também a tradução é análoga à citação. Esta "opera à maneira da citação, uma vez que porta, num primeiro momento, desorganização, desestruturação do original"[8]. E assim a relação com a língua estrangeira. Benjamin cita Gide:
[...] no aprendizado das línguas, o mais importante não é aquela que se aprende, mas abandonar a sua. Eis o decisivo. Só então que se a compreende verdadeiramente.
Se citar é deslocar, traduzir é deslocar-se também de nossa própria língua. Citar é abandonar o contexto familiar pelo estranho, é transformar o estranho em familiar e o familiar em estrangeiro. Traduzir é um "ato mágico" de apropriação do Outro que é também um Mesmo, pois, como o sabem todos os místicos, um texto requer uma busca de sentido ao infinito. Por isso o tradutor torna-se escritor.
Citação, choque e silêncio (como o mutismo em "Experiência e pobreza" ou o silêncio sublime de "A felicidade do homem antigo") dizem respeito ao método de investigação. Este é mais um decurso que um curso. É alegórico, contrapõe-se à lógica da identidade, da adequação do conceito à coisa. E ainda o mais elevado carece de nomeação e de figura. O que não pode ser nomeado constitui o oximoro de uma "imaginação sem imagem", o que pode ser um eco. Seria este a experiência do sentido histórico das coisas e acontecimentos?
Não se deveria falar de acontecimentos que nos atingem na forma de um eco, cuja ressonância parece ter sido emitida em um momento qualquer na escuridão da vida passada? Além disso, acontece que o choque com que um instante penetra em nossa consciência como algo já vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma de um som [...]. Estranho que ainda não se tenha buscado o sósia deste êxtase; o choque com que uma palavra nos deixa perplexos tal qual uma luva esquecida em nosso quarto. Do mesmo modo que esse achado nos faz conjecturar sobre a desconhecida que lá esteve, existem palavras ou silêncios que nos fazem pensar na estranha invisível, ou seja, no futuro que se esqueceu junto a nós.[9]
Benjamin está falando de uma experiência do tempo como déjà vu. Paradoxo essencial, experiência que diz respeito à visão, por sinestesia remete à metáfora sonora: o eco. O déjà vu é uma modalidade de repetição, de duplo do tempo que não atribui qualquer inferioridade ontológica ao presente ou ao passado. Pode tanto já ter acontecido quanto se apresentar pela primeira vez.
Um sentido próximo pode ser encontrado no ensaio "A Imagem de Proust". Em carta a Scholem de 14 de janeiro de 1926, Benjamin escreve que seu título poderia ser "Traduzindo Proust" e não apenas porque se dedicava à tradução da Recherche para o alemão mas porque a tradução supõe a compreensão das "interrupções do tempo" no aprendizado de uma língua - tempo necessário para ingressar na intimidade da língua e na da obra. Em uma passagem de Proust traduzida por ele (do volume II de À la Recherche du Temps Perdu, "Le Chemin de Guermantes") -, Proust refere-se ao novo artefato tecnológico - o telefone - para falar da intermitência de vozes e distâncias (Benjamin retomaria este tema no fragmento "Telefone" de Infância Berlinense):
[...] assim que nosso chamado toca, na noite cheia de aparições sobre a qual apenas nossos ouvidos se abrem -, um leve ruído - um ruído abstrato - o da distância suprimida - e a voz do ente querido que se dirige a nós. É ele, é sua voz que nos fala, quem está lá. Mas como está longe! Quantas vezes só pude escutá-la cheio de angústia.
Se, para Proust, o telefone é uma personagem à parte na Recherche, por simbolizar a presença de uma ausência, Benjamin acrescenta-lhe o significado histórico de uma invenção que ultrapassa destino e tristezas individuais vindo a corporificar o próprio tempo presente. O telefone, de relegado aos recantos mais esquivos do apartamento burguês do oeste de Berlim, como simples aparelho doméstico, acaba por uma entrada triunfal nas peças luminosas, antes de colocar-se a serviço da guerra moderna, indiferente às alegrias ou tristezas dos dias. Quando tocava, perturbando a tarde e a sesta de seus pais, o telefone soava como um "sinal de alarme [...] na época da história do mundo em meio à qual eles a faziam". Sinal de alarme e choque, portanto, que nos levam a retomar o trabalho da citação.
A citação toca a alegoria, o duplo sentido, o Trauerspiel: é "jogo lutuoso", o luto que se converte em lúdico. É assim que Benjamin pôde escrever acerca do olhar de Proust: "não eram olhares felizes mas neles estava a felicidade, como no jogo ou no amor".[10] A felicidade mora em olhares infelizes, o jogador tem sempre um "peso no coração". Mas o jogo, como o amor, produzem, ao mesmo tempo ou entrecruzadamente, bem-estar. Circunstância assim enunciada por Benjamin: "os médicos foram impotentes diante da doença de Proust. Mas não (ele) que a colocou a serviço do plano de sua obra
[...]. A asma entrou em sua arte, se é que não foi criada por ela. Sua sintaxe imita continuamente o ritmo de sua angústia de sufocamento".[11] Circunstância que pode ser detectada em uma entrevista sobre leitura publicada nos Cahiers Céline.[12]
[...] tenho uma biblioteca só minha e que eu não recomendo. Eu me mexo muito durante o dia e à noite gosto de descansar no meu canto com meus livros. É meu refúgio [...]. Há livros de todo tipo, mas se você for abri-los, vai se espantar. Estão todos incompletos; alguns só guardam dentro da encadernação algumas poucas páginas. Sou de opinião que se deve fazer com comodidade o que se faz todos os dias; então eu leio com tesoura na mão, me desculpe, cortando tudo o que me desagrada. Tenho assim leituras que nunca me cansam. Do Homem dos Lobos, conservei dez páginas; um pouco menos de Viagem ao Fundo da Noite. De Corneille Polieto inteiro e uma parte do Cid. De meu Racine não suprimi quase nada. Guardei de Baudelaire uns 200 versos e de Victor Hugo um pouco menos. De La Bruyère o capítulo "Do coração"; de Saint Evremond, a conversação do Padre Canaye com o Marechal de Hocquincourt. De Madame Sevigné, as cartas sobre o processo de Fouquet; de Proust o jantar na casa da duquesa de Guermantes; "a manhã de Paris" de A Prisioneira.
Nisto encontra-se o caráter limite da leitura, a exemplo de um autor que Benjamin conhecia tão bem. Trata-se de Valéry que lê como quem espreita: "leio com rapidez, na superfície, prestes a cingir a minha presa".[13]
O leitor, como o historiador, é um flâneur que captura instantâneos do atual, instantâneos que marcam a forma nova do pensar e do agir, reconciliando o homem consigo mesmo e com suas esperanças utópicas. O que hoje desaparece, não são as utopias, pois estas como "os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixamos de os ver".[14]
Notas: