Cenas da vida moderna e mundialização da cultura:

A difícil arte de passear

António Guerreiro
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia

A difícil arte de passear: este título, fui buscá-lo a um texto de Franz Hessel, de 1933, precisamente intitulado Von der schwierigen Kunst spazieren zu gehen. Franz Hessel é um escritor alemão que escreveu a maior parte da sua obra nos anos 20 e 30 e que deve parte da sua glória póstuma relativamente fraca, de resto muito mais a um facto biográfico do que à sua obra: foi a atribulada e pouco convencional conjugalidade do casal Hessel que inspirou a novela Jules e Jim, de um menoríssimo escritor francês, transposta mais tarde para o cinema por François Truffaut.

Na recepção crítica do livro mais importante de Hessel, Spazieren in Berlin (Passeios por Berlim), avulta no entanto uma recensão que lhe fez Walter Benjamin e a que deu o título Die Wiederkehr des Flaneurs[1] (O Regresso do Flâneur). Que se trata de um regresso algo inesperado, quase intempestivo, foi o próprio Hessel a reconhecê-lo nesse texto de 1933, quando diz: "O flâneur já não existe, dizem as pessoas, porque é contrário ao ritmo do nosso tempo. Mas eu não acredito."[2]

A figura do flâneur, que nos Passeios por Berlim concebe a arte de deambular pelas ruas da cidade como um acto de leitura e decifração de um texto, aí está para sustentar solidamente esta convicção: o livro é uma reportagem folhetinesca, feita a partir de um ponto de vista a que Benjamin atribui a máxima importância: o ponto de vista de um nativo que no entanto se move como um estranho na sua própria cidade, conduzido pela vontade de descoberta de novas coisas, capaz de autêntico conhecimento e não apenas de reconhecimento. Hessel comporta-se, num outro contexto social e histórico (a cidade de Berlim dos anos 20), como o flâneur do século XIX, que se passeia por Paris, sem objectivos. Por isso é que, nas palavras de Benjamin, "ele abre a imensa cena da flânerie que julgávamos definitivamente suprimida".[3] Mais ainda: aqui compreende-se melhor porque é que o flâneur se distingue da figura do passeante filosófico e pode assumir em toda a sua dimensão os traços do indivíduo estranho que erra inquieto na selva social, aquele que Poe fixou para sempre no seu "homem da multidão".

Antes do Benjamin de Einbahnstrasse (Rua de Sentido Único), antes do Kracauer de Strassen in Berlin und anderswo (Ruas de Berlim e de Outros Lugares), Hessel foi, pois, o primeiro que viu na grande cidade, na metrópole moderna, um enigma, um universo de signos por decifrar; e que soube fazer dos devaneios do flâneur um verdadeiro género literário. O modo de apropriação e descoberta da grande cidade, tal como ele o concebeu, implicava uma ciência descritiva do território urbano que estava sempre "em vias de converter-se em algo diferente". E falamos aqui de ciência descritiva no sentido em que Hessel segue a concepção de Hofmannsthal de um pensamento sem conceitos, na medida em que não é só o flâneur que conhece a cidade, também a cidade o conhece a ele.

Mas não é exactamente o flâneur como figura cultural da modernidade que me interessa perseguir, neste momento. Esse é um território já largamente cartografado. Interessa-me, antes, explorar uma dimensão secundária que ele revela, que é a do privilégio que o passeio adquire, na modernidade, em relação à figura antiga da viagem, e o modo como ele se torna consubstancial a uma forma de pensamento, de tal modo que passear e pensar se revelam uma e a mesma coisa: trata-se de um pensamento que flâne ("ein flanierendes Denken", como diz Benjamin), que segue o ritmo de um movimento, e cujos objectos da sua experiência são, em primeiro lugar, os sintetismos da própria consciência: escrever, ler, sonhar, amar, conhecer, falar, recordar etc. Os textos de Benjamin que compõem Einbahnstrasse são um exemplo maior deste movimento do pensamento.

Mas se quisermos percorrer algumas estações fundamentais da figura do passeio e verificar como ela é permantemente habitada por uma tensão entre a percepção e a reflexão, entre o código poético e o código do pensamento, devemos começar por recordar o preceito nietzschiano enunciado em Ecce Homo. "Estar sentado o menos possível; não confiar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em plena liberdade de movimentos."[4]

É certo que o topos peripatético, a relação entre andar e pensar, encontramo-lo já na filosofia grega; e também é verdade que Montaigne se apropria dele e lhe empresta um significado diferente, em que assume uma importância fundamental a ligação entre andar e escrever: nos seus Essais não figura pura e simplesmente o movimento do passear, mas dos corpos que passeiam, como modelo da escrita; e que Rousseau, por sua vez, vai agregar o movimento do corpo que anda ao domínio da natureza, surgindo nessa agregação o passeante solitário, o promeneur solitaire, como grande legitimação simbólica da sua escrita, e uma concepção do passeio como uma acção poética.

Mas é verdadeiramente com a figura moderna do flâneur que se passa do viajante ao passeante, o que significa que o passeio já não é feito em nome da cultura (como tinham sido as viagens a Itália de Winckelmann, de Goethe, de Humboldt), mas em nome da curiosidade, da mania da vagabundagem, de um prazer de andar que é, ao mesmo tempo, prazer da efabulação, em nome de figuras da percepção que são também formas de reflexão. A Wanderung

(a viagem, a caminhada) romântica fixa-se agora nos limites do Spaziergang, do passeio, como aquele que um autor como Robert Walser descreve numa das suas narrativas mais emblemáticas, intitulada precisamente Der Spaziergang. É aí, nessa narrativa, que podemos ler esta passagem: "Quando se passeia, ideias, como lampejos, apresentam-se e atropelam-se para serem elaboradas com cuidado".[5] E, mais à frente:

Sem passeios estaria morto e há muito tempo teria renunciado à minha profissão, que amo apaixonadamente. Sem passeios, não poderia coleccionar apontamentos nem observações [...]. Os prolixos passeios inspiram-me mil pensamentos frutuosos, enquanto que fechado em casa definharia miseravelmente [...]. Qualquer passeio é pleno de encontros, de coisas que merecem ser vistas, de figuras, de poesia viva, de objectos atraentes, de belezas naturais.[6]

Numa passagem do mesmo livro, Walser chega mesmo a estabelecer uma equivalência directa, primeiro entre o passeio e o estudo, e depois entre o passear e o pensar:

Com grande atenção e amor, aquele que passeia deve estudar e observar a mínima coisa viva: seja uma criança, um cão, uma borboleta, um pássaro, um verme, uma flor, um homem, uma casa [...]. Deve deixar que o seu olhar solícito divague e se coloque onde quer que exista um espírito fraterno, deve saber abrir-se à vista e à observação.[7]

E, um pouco mais à frente, acrescenta:

Secretamente, toda a espécie de pensamentos e de ideias seguem inesperadamente aquele que passeia, de modo a obrigá-lo, enquanto caminha atento, a deter-se e a ficar em escuta.[8]

Como Pessoa, como Bernardo Soares do Livro do Desassossego, Walser despreza a viagem em favor do passeio, coincidindo, nesta atitude tipicamente moderna, com alguns escritores marcantes deste século. Pense-se, por exemplo, como as narrativas de Kafka estão cheias de referências a passeantes e transeuntes, como os seus diários e cartas estão cheios de referências a passeios pela cidade. Pense-se, ainda, na personagem principal de Ulisses, de James Joyce, herói por excelência desta nova atitude que, muitas vezes, tem algo de um gesto negativo: quem passeia comporta-se negativamente, contra a casa, contra o trabalho, contra o dever, contra o papel social que tem de desempenhar. E detenhamo-nos, por último, em Thomas Bernhard, que numa narrativa de 1971, intitulada precisamente Gehen, repete obsessivamente a sua lei de equivalência entre o andar e o pensar:

Andar e pensar situam-se numa contínua relação de confiança. A ciência do andar e a ciência do pensar são, fundamentalmente, uma única ciência.[9]

Pessoa, Kafka, Robert Walser, Joyce e Thomas Bernhard convidam-nos a procurar o estatuto e a forma de um pensamento que já não viaja mas deambula, aquilo que levou E. Bloch, nos seus Spuren, a dizer que é bom "pensar efabulando" ("fabelnd zu denken"[10]). Se há, então, um movimento do próprio texto que responde às solicitações colocadas pelo papel que adquirem as figuras do pensamento que nascem do andar, da flânerie, do passear, então há-de haver uma especificidade, em termos de género, desta forma de pensar que satisfaz esse requisito hofmannsthaliano de um pensamento sem conceitos. Proponho aqui que essa forma é o Denkbild.

Denkbild traduz-se literalmente por imagem do pensamento. Há uma longa e polémica discussão sobre a origem e a utilização desta palavra que se tornou quase um conceito. O poeta Stefam George utiliza-a no no seu livro Der siebente Ring, de 1907, num contexto em que se refere a Mallarmé. Rudolf Borchardts, dissidente do Círculo de George, escreve sobre o livro em 1909 e, numa nota marginal, critica aquilo que ele considera um "holandismo bárbaro" da linguagem de Stefan George. Para ele, a palavra a utilizar seria Idee e não Denkbild, já que George visaria com essa palavra, pensa Borchardts, precisamente a essência da ideia artística. Denkbild seria, então, uma tradução da ideia mallarmeana, tanto mais inadequada quanto, para Mallarmé, a realidade da Idee seria não tanto plástica (portanto, muito pouco bildisch), mas mais musical.

O Denkbild surge como uma forma típica da literatura moderna. Trata-se de uma prosa curta, um género híbrido, a meio caminho entre a poesia e a teoria social. Podemos talvez encontrar a sua origem nos poemas em prosa de Baudelaire. Mas ele é cultivado sobretudo por alguns autores que pertencem a uma mesma constelação histórica e cultural: Benjamin, Brecht, Kracauer, Adorno, Bloch, Kafka e, mais recentemente, Botho Strauss. Mas são também Denkbilder os esboços irónicos de Robert Walser, as prosas experimentais de Robert Musil, as prosas diarísticas de Ernst Jünger. Todos estes exemplos mostram como o Denkbild é uma das mais importantes formas que a literatura moderna e contemporânea desenvolveu.

Esta forma de prosa curta é a expressão de uma escrita ensaística que renuncia conscientemente a sobrepor a ordem narrativa e argumentativa a um modelo de percepção, de pensamento e de escrita que procura o "hieróglifo objectivo das coisas", como dizia Benjamin, isto é, onde a duplicidade de pensamento e observação é sucintamente expressa. Denkbilder são sempre diagnósticos da época, crítica e utopia. Eles visam não as "verdades eternas" ou as "ideias sem tempo", mas antes a fenomenologia do social. É isso que Walter Benjamin formula, no início de Einbahnstrasse, quando diz que já não é a com a forma do livro e do "grande estilo" que se pode proceder à análise do "aparelho gigante da vida social". Esse livro será, então, um exemplo maior do género que promove a unidade do acontecimento e da reflexão, da imagem e do pensamento. Nenhum outro exemplo mostra tão bem quanto, não só na escolha temática do seu objecto mas também no método utilizado para o seu movimento de pensamento, o Denkbild se encontra altamente comprometido com a modernidade, tomando como pressuposto consciente e transformado em conteúdo temático a apresentação das "relações de vida tornadas abstractas, tanto na sua origem como nas suas consequências".

Denkbilder é precisamente o título que os editores de Benjamin deram a um conjunto de pequenos textos em prosa, de natureza diversa (na sequência dos que integram o volume Einbahnstrasse. Trata-se de textos sobre diferentes cidades, mas também de ideias, experiências vividas, sonhos, sugestões de leitura, aforismos. A todos estes apontamentos é comum o facto de conterem um facto concreto (Bild) e uma reflexão a ele ligado (Denken). Os Denkbilder de Benjamin são como que Bilder escritos dialecticamente, escritos que se tornaram constelações, em que se desenvolve a dialéctica da imagem e do pensamento: são, antes de mais, representações linguísticas daquela semelhança em que o mundo, através de certas "figuras do saber" é fixado intacto. E, aqui, é impossível não pensar no conceito de imagem dialéctica, tal como Benjamin a definiu: "A imobilização do pensamento faz, tanto quanto o movimento, parte do pensamento. Quando o pensamento se imobiliza numa constelação saturada de tensões, aparece a imagem dialéctica. É a cesura no movimento do pensamento."[11]

Mas Denkbilder são também imagens lidas, imagens-leituras escritas, nas quais as imagens literalmente se transformam em escrita. Nos Denkbilder torna-se evidente que o modo de escrever e o modo de pensar de Benjamin não são separáveis, que não se pode proceder à disjunção entre forma e conteúdo. Ele contribui assim para fixar um género que irá ser longamente cultivado e se irá revelar altamente produtivo.

 

Notas:

  • 1 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, III, hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1972, p. 194.
  • 2 Franz Hessel, Ermunterung zum Genuss, Brinkmann & Bose, Berlin, 1981, p. 54.
  • 3 Id., ibid., p. 194.
  • 4 Friedrich Nietzsche, Ecce Homo, v. VII das Obras Escolhidas, trad. Paulo Osório de Castro, Relógio d'Água, Lisboa, 2000, p. 140.
  • 5 Robert Walser, Der Spaziergang, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1985 (ed. ut.: La Passegiata, Milano, Adelphi, 1976, p. 36.
  • 6 Id., ibid., p. 65.
  • 7 Id., ibid., p. 66.
  • 8 Id., ibid., p. 68.
  • 9 Thomas Bernhard, Gehen, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1971, p. 85.
  • 10 Ernst Bloch, Spuren, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1969, p. 16.
  • 11 Walter Benjamin, Das Passagen-Werk (GS V, 1) Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1983, p. 595.