Paulo Motta Oliveira
UFMG
Para Cleonice Berardinelli
País rural e marítimo ao longo de toda a sua história, com o seu centro de gravidade para além do mar, a independência do Brasil [...], e depois, lento e gradual, o despertar da expansão africana [...], condicionam grandemente, se não erramos, os aspectos fundamentais não só da história econômica oitocentista, mas também a sua história política e social.[1]
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?[2]
Cenas da vida moderna e mundialização da cultura: "Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!". O instigante título deste seminário levou-me, inevitavelmente, a pensar em alguns escritores. Naquele que, vendo os que partem, afirma: "Batem os carros de aluguer, ao fundo, / Levando à via férrea os que se vão. Felizes!".[3] Naquele outro, invocado por este, que viveu em uma Europa que começava a se mundializar, e que habitou esse peculiar espaço geográfico "Onde a terra acaba e o mar começa, / E onde Febo repousa no oceano".[4] Também pensei no jovem que representando toda a sua geração, com uma esperança como a sorte a não dá, supunha que poderia converter três séculos de não modernidade com a força de seu discurso. A esses três somou-se um outro, aquele que cantou a modernidade, mundializado português que amou e louvou Londres. É um pouco por essa constelação que navegaremos. Tendo como centro Cesário, veremos nele ecos de Camões, respostas a Antero. E partindo dele, de forma meteórica, faremos uma breve visita a Campos. É desses autores, do mar, do campo, da cidade, que irei aqui tratar. De um navegar poético que une suas aventuras, através de rotas de papel.
1871. Nas salas do Casino Lisbonense um jovem Antero dirige-se a um público de peninsulares. Na sua fala, analisa, uma a uma, as causas de um atraso que já dura três séculos, os motivos do vasto abismo que existe entre a península e a Europa que considera culta. Fala do Concílio de Trento, fala do absolutismo. Chega então ao ponto crucial, de todos o mais doloroso.
Há dois séculos que os livros, as tradições e a memória dos homens, andam cheios dessa epopéia guerreira, que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaram-nos com essas histórias: atacá-las é quase um sacrilégio. E todavia esse brilhante poema de ação foi uma das maiores causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradicional. Tanto mais que um erro econômico não é necessariamente uma vergonha nacional. No ponto de vista heróico, quem poderá negá-lo? foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. A moralidade subjetiva desse movimento é indiscutível perante a história: são do domínio da poesia, sê-lo-ão sempre, acontecimentos que puderam inspirar a grande alma de Camões. A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência.[5]
Três anos depois um outro jovem, muito mais novo que Antero, publicará seu primeiro poema: "Cantos da tristeza", obra que, anos depois, voltaria a ser publicada por seu amigo Silva Pinto, n'O Livro de Cesário Verde, com nove estrofes a menos, e com um novo título, "Setentrional". Sobre esse poema, e sua relação com o restante da poética de Cesário, Helder Macedo afirmou:
O mundo de Cesário tornou-se mais complexo com a evolução de sua poesia, mas suas fronteiras permaneceram as mesmas: em "Setentrional" - o seu primeiro poema publicado - caracterizou o espaço e o tempo da cidade por contraste com a libertação significada pelo amor e pelo campo, fundidos na metáfora do "mar sem praias" [...]; em "O sentimento dum Ocidental" - a obra-prima da sua maturidade - todos esses níveis de significação convergem na metáfora amplificada da cidade como uma prisão labiríntica e infernal identificada com a escuridão, a esterilidade, a miséria, a solidão e a morte.[6]
Também achamos que as fronteiras definidas em "Setentrional" irão reaparecer em toda a poesia de Cesário, e em especial em "O sentimento dum ocidental". Mas, acreditamos, uma outra característica interessante une esses dois poemas: em ambos, ao lado do campo e da cidade - elementos sempre referidos pela crítica -, surge um terceiro, o mar, e, com ele, uma instigante reflexão sobre a aventura marítima portuguesa, que, esboçada no primeiro poema, ganhará forma definitiva no segundo. Como veremos, numa curiosa inversão de certos pressupostos presentes no raciocínio de Antero, Cesário tenderá a reavaliar não só o passado, mas os fantasmas do moderno que infestam seu cotidiano.
Comecemos por "Setentrional". Assim se abre o poema:
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que vivestes no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina
Que fui o teu sol e o teu abrigo.
Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.[7]
Já nestas duas estrofes se configuram os espaços antinômicos do campo e da cidade: o primeiro onde ocorreu a consumação de um amor que já não mais existe no presente, e a segunda, definida como Babel - com toda a carga negativa que este termo possui - de onde os amantes fugiram. Podemos assim verificar que existe uma assimilação entre campo e amor, sendo a cidade o espaço em que essa experiência é impossível. Esta hipótese se confirma e se amplia quando, após oito estrofes em que são narrados episódios desse amor, o eu lírico volta a se referir a seu momento presente:
E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
E eu passo, tão calado como a Morte,
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia.[8]
Como bem notou Helder Macedo, meu guia nessas deambulações, essas duas estrofes apresentam um grande paralelismo que reforça o significado da cidade e de sua relação antinômica com o amor:
[...] a amante é emparedada num claustro, o poeta regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade; ela sepultou-se viva, ele anda na cidade como um morto [...]; ela escondeu a face num "véu negro", a cidade onde ele passa é "sombria" [...]. O amor é assim tão proibido na cidade como no convento: só é possível fora do confinamento que ambos significam, num campo concebido como o oposto metafórico dos muros da cidade ou do convento.[9]
A visão da cidade como um espaço "emparedado", "sombrio", terá, sabemos, uma grande influência na poética de Cesário, sendo uma das imagens mais recorrentes em "O sentimento dum ocidental". Mas, devemos aqui lembrar, o desconfinamento que caracteriza o amor e o campo são, no poema, relacionados a um outro espaço. Os dois amantes estão "unido ambos / Num amor grande como um mar sem praias", e "afastados da aldeia e dos casais" escondem-se "nas ondas dos trigais", onde, afirma o eu lírico, "Devolvia-te os beijos que me deras".[10]
Assim, o poema estrutura uma oposição entre um campo que se aproxima do mar e do amor, e uma cidade que, se é apenas sumariamente descrita como Babel e sombria, aparece como a negação de todas as características positivas associadas aos espaços campestre, amoroso e marítimo. E essa cidade, por outro lado, aproxima-se do espaço do religioso, pelo menos da religião oficialmente instituída, que metonimicamente surge no poema como convento.
Assim, se voltarmos às reflexões de Antero, já temos uma interessante mudança: o mar e a religião, para Cesário, estão em espaços distintos e antinômicos. E o primeiro está em um pólo claramente positivo.
Se avançarmos nessa leitura do poema, podemos notar que campo e cidade estão, no poema, mediados por uma temporalidade muito bem demarcada. O campo, apesar de ilimitado, está temporalmente confinado entre duas experiências citadinas. Desta forma, se a cidade é uma espécie de prisão, é um confinamento que se perpetua, da qual só se consegue escapar por um curto período. O campo, o amor, o "mar sem praias", são limitados, no poema, pela cidade/convento.
Os elementos que levantamos podem nos servir de ponte para analisarmos certos aspectos de "O sentimento dum ocidental", em que as características aqui apontadas aparecerão de forma muito mais articulada. Nesse outro poema, provavelmente o mais famoso de Cesário, encontramos, como sabemos, um eu que passeia pelas ruas de Lisboa. E a cidade que percorre provoca, no eu lírico, uma sensação de clausura e confinamento. Acumulam-se as imagens. "Semelham-se a gaiolas, com viveiros, / As edificações somente emadeiradas".[11] As varinas "apinham-se num bairro aonde miam gatas, / E o peixe podre gera os focos de infecção",[12]"A noite pesa, esmaga".[13] Nesse espaço sufocante, o eu lírico afirma: "E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, / Nessa acumulação de corpos enfezados".[14]
Mas essa cidade pesadelo, que certamente lembra uma outra cidade, construída anos depois, pela lente de Fritz Lang, não é gerada apenas por aquilo que o eu lírico objetivamente observa. A sua caminhada é também um percurso pelas marcas e restos do passado, por tudo aquilo que, tendo existido outrora, ainda está de alguma forma presente - enquanto memória, espaço de ausência ou permanência efetiva - nas ruas e vielas dessa urbe escura, soturna e melancólica. É justamente a tensão entre o presente, que o caminhante observa, e o passado que rememora, que aqui nos interessa.
Tudo aquilo que, outrora, foi de alguma forma positivo, não mais existe no presente. Assim, por exemplo, a visão dos "cais a que se atracam botes" faz com que o eu lírico evoque "as crônicas navais: / Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado! / Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei jamais!".[15] A oposição entre as naus do passado e os botes do presente vai ecoar ainda nas estrofes subseqüentes do poema: o poeta notará a presença de um "couraçado inglês", marca inegável de que o mar, agora, não mais é português; verá, como apontou Helder Macedo, no lugar dos barões assinalados um "cardume negro" de "hercúleas" e "galhofeiras" varinas, algumas das quais "à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas".[16]
O próprio Camões foi convertido, no presente do poema, apenas em sinal, ineficaz, de sua existência passada: "[...] num recinto público e vulgar, / Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, / Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, / Um épico doutrora ascende, num pilar!".[17]
Ao lado desses despojos do que de positivo houve, tudo aquilo que existiu de negativo, de opressor, ou se mantém, ou se modifica apenas para, de outra forma, ser imperecível. O "ermo inquisidor severo" é recordado pela "nódoa negra e fúnebre do clero"[18] que, no presente, ainda existe. Os conventos modificaram-se, mas permanece seu papel de confinamento, pois "Partem patrulhas de cavalaria / Dos arcos dos quartéis que já foram conventos".[19]"As burguesinhas do Catolicismo" lembram ao eu lírico, "ao chorar dolente dos pianos, / As freiras que os jejuns matavam de histerismo".[20]
Esse duplo passeio, realizado no poema, pela cidade presente e pelos restos do passado que nela existem, mostram um dado interessante: o que de positivo houve, e desapareceu no presente, foi o navegar, do qual só sobraram restos degradados. Já a religião, com sua sombra que equivale à da cidade, continua viva e presente, seja enquanto tal, seja transmutada em outros significantes, que remetem ao mesmo significado. A prisão - religiosa ou laica - mantém as suas grades.
Nesse poema urbano e sufocante, em um único momento o campo aparece: "E eu sigo, como as linhas de uma pauta / A dupla correnteza augusta das fachadas; / Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As notas pastoris de uma longínqua flauta."[21]
Será esse som de "agreste avena ou frauta ruda"[22] que fará com que o eu lírico, superando a pequenez presente, a prisão escura de sua cidade labiríntica, erga em "fúria grande e sonorosa"[23] o seu delírio que, devemos notar, nada tem de belicoso. Se é o passado das navegações que recupera, o que delas retém é o mar sem praias, a cidade sem paredes, a vida sem fim:
Se eu não morresse nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E a frota dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir![24]
Mas esta aparente solução, que recupera a mobilidade do passado, instaurando um futuro em que os muros que sufocam se transformam em mansões de vidro, em que a cidade prisão é trocada pela vastidão aquática de um mar sem praias, é destruída pelo peso do presente. O eu lírico, e os outros citadinos, descendentes daqueles avós de um passado já remoto, estão "emparedados, / Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...".[25] O poema termina, como havia iniciado, pela dor, em que o próprio mar, espaço aberto por excelência, transforma-se: "A Dor humana busca amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!".[26]
De forma mais pungente que em "Setentrional", em que amor/campo/mar ficam aprisionados pela cidade/convento, aqui o desejo de desconfinamento também não pode se manter, e é tragado pela cidade, que tudo prende, tudo devora.
Essa Lisboa, a do poema, não mais é aquela em que "a terra acaba e o mar começa".[27] Aqui não mais se podem travar retóricos combates entre um velho do Restelo, a apontar para uma saída bucólica, e um Vasco da Gama que parte, levado pelo vento que "nos troncos" faz "o usado movimento".[28] Nem tampouco essa Lisboa é o heróico nada, do qual, mais de meio século depois, Pessoa diria: "é do portuguez, pae de amplos mares, / Querer, poder só isto: / O inteiro mar, ou a orla vã desfeita - / O todo, ou o seu nada."[29] Essa Lisboa, com sua "cor monótona e londrina",[30] não é marítima nem rural. É uma cidade informe e infernal, que não chega a ser Paris, mas que se cobre com "trapos vindos de França"[31] e de outras urbes semelhantes. Cidade pesadelo, cancro que se expande ao lado de um Tejo que não mais se abre para o mar.
Com certeza a visão dessa cidade de pesadelo, presente de forma lapidar nesse poema de Cesário, é recorrente no imaginário do período. É só lembrarmos aqui, ficando no interior da literatura portuguesa e nas últimas duas décadas do século passado, das hilárias avarias seja do Jasmineiro, seja do 202, ou da descrição que Zé Fernandes faz de uma Paris cinzenta e desumana para o seu amigo Jacinto, já então corcovado e bocejante. Nessas mesmas obras também podemos encontrar, nas quintas de Torges ou de Tormes, uma valorização do espaço campestre, da vida bucólica.[32] Mas, devemos notar, essas semelhanças não chegam a atingir o que mais radicalmente me surpreende nesse poema de Cesário, se o analisarmos no interior da problemática cristalizada na conferência de Antero.
"O sentimento dum ocidental", quando confrontado com "As causas da decadência dos povos peninsulares", e os próprios títulos possuem certos paralelismos e tensões interessantes, mostra-nos uma leitura totalmente outra seja do processo histórico, seja do presente. Ambos os textos configuram um presente apequenado, sufocante, problemático. Mas enquanto Antero canta a vinda de uma certa modernidade - por mais que revolucionária - como a forma de sanar os problemas presentes, e aproxima navegações, religião e absolutismo, Cesário separa esses termos. Os dois últimos, confinantes, são negativos, e como as causas de Antero, começam no passado e se perpetuam no presente. Mas, nesse mesmo presente, a cidade configura-se não só como o espaço em que religião e repressão se manifestam - pensemos nas patrulhas que partem dos quartéis que já foram conventos -, mas também como o equivalente semântico do progresso - não talvez o que se deseja, mas aquele que existe. Assim, numa leitura cerrada, progresso e religião, repressão e confinamento não se opõe, mas se complementam. No outro extremo, como saída desejada, mas não possível, temos o navegar, a recuperação das frotas dos avós e das vastidões aquáticas.
O que queremos sugerir é que o navegar, despido no período de Cesário de todo o poderio de que já havia possuído - pensemos na epígrafe de Serrão com que abrimos nosso texto -, converte-se, nas mãos desse poeta, em experiência de outra ordem. Em seus poemas tanto o campo - a malfadada província, sempre associada ao atraso e ao provincianismo - como o mar, espaço por excelência do contato com o outro, da busca e da descoberta - se conjugam ao amor e se transformam em símbolo daquilo que poderia ser - em outro tempo, em outra ordem - mas que o presente, citadino, obscuro e aprisionante, impede. Cesário é, em certo sentido, um dos precursores de uma onda pessimista que eclodiria pouco depois na literatura portuguesa.[33] Mas também está na origem de outros navegares que, passando por Nobre e pelos saudosistas, chegariam a Pessoa. Navegares de papel, por mares poéticos.
Mas não são deles - que já recorrentemente visitamos - que trataremos aqui. Iremos, como prometemos no início de nosso ensaio, terminar nossa viagem em outro Pessoa - não o que canta o destino português por se cumprir, mas o que ama, apaixonadamente, carnivoramente, as marcas da modernidade presentes nas ruas de Londres.
Não pretendemos aqui uma análise detida da "Ode triunfal". Ela nos interessa, principalmente, pois nela vemos certos instigantes diálogos com "O sentimento dum ocidental", de que aqui trataremos com traços rápidos.
É difícil imaginar dois poemas citadinos aparentemente mais distintos do que esses de Cesário e de Campos. Tudo aquilo que, no do primeiro, é sombra, pequenez, tédio, é, no do segundo, euforia, luz, sensualidade. Podemos ouvir a histérica voz de Campos querendo
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável![34]
Enquanto em Lisboa o eu sonha com castas esposas, no poema de Campos todos os sentidos desse flâneur engenheiro têm cio das coisas modernas, e ele deseja "morrer triturado por um motor/ Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída".[35] Poderíamos aqui acumular imagens semelhantes a essas, como no poema de Cesário citamos várias daquelas que mostram o aprisionamento causado pelo soturno espaço citadino.
Mas, o que aqui nos interessa, é que em poemas tão distintos, encontramos também semelhanças, significativas semelhanças. Se no de Cesário as notas pastoris de uma flauta fazem surgir um delírio-desejo que é a antítese da vivência presente, no de Campos - esse português que em todo o texto em nenhum momento se refere de forma explícita a Portugal - entre parêntesis, num tom bem diverso ao da dicção que percorre o poema, temos:
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)[36]
Esse burro que anda à roda, não possui o centramento que o eu no presente, aquele que quer ser "toda a gente e toda a parte",[37] aquele que diz "Nem sei que existo para dentro",[38] já perdeu? Não é o campo, com seus pinheiros, tão portugueses e tão marítimos - lembremos do "rumor dos pinhaes" no poema dedicado ao "plantador de naus a haver"[39] -, um espaço passado em que o eu pôde existir, existência que agora, europeizado e modernizado, não mais consegue recuperar?
São questões e hipóteses que o confronto dos dois poemas citadinos me trazem. Não sei se consigo respondê-las. Mas elas me levam, fatalmente, da grande cidade para uma meia-província perdida, para um outro poema em que não temos mais a adesão ao moderno, mas apenas o lado negro, destruidor, de uma modernidade que engendra o apagamento e a morte.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui, ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o eco...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da
[casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através
[das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...[40]
Com esse trecho de "Aniversário", que creio fala mais e com mais rigor do que eu poderia, encerro essa nossa viagem entre papéis, em que partimos de uma província no passado, percorremos duas capitais - Lisboa e Londres -, para chegarmos a outra meia-província, também num passado irrecuperável. Cenas da vida moderna. Mas também do desejo de ter um burro andando à roda, em um campo com pinheiros, em que seja possível navegar em um amor grande como um mar sem praias.
Referências bibliográficas:
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MACEDO, Helder. Nós - Uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Plátano, 1975.
MARTOCQ, Bernard. Le pessimisme au Portugal (1890-1910). Arquivos do Centro Cultural Português, v. 5, 1973, p. 420-458.
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PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
---. Poemas de Álvaro de Campos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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---. Contos. Porto: Lello & Irmão, 1951.
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QUENTAL, Antero. Prosas Sócio-Políticas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.
SERRÃO, Joel. Cesário Verde. Lisboa: Delfos, 1961.
VERDE, Cesário. Obra Completa de Cesário Verde. Lisboa: Livros Horizonte, 1983.
Notas: