Eduardo Prazeres dos Santos
Este texto é o iniciar de uma pesquisa sobre o romance policial português, fundamentalmente aos publicados no final da década de 1960. Só para exemplificar, no biênio 1967-68, foram lançados o Delfim, de Cardoso Pires, Bolor, de Augusto Abelairae três livros da quadrilogia de Dennis McShade1 . Quatro narrativas com estratégias de escrita completamente distintas entre si, mas que se valem de constructos policiais para falar de liberdade, de compreensão sobre o momento histórico e de arte.
Começo me sentindo na obrigação de explicar o gracejo do título de minha comunicação. Pensei muito se deveria usá-lo ou não. Poderia ser visto apenas como um chiste infeliz ou indicar um caminho. Decidi mantê-lo por entender que Dinis Machado, o autor de O que diz Molero, também é o criador do escritor de narrativas policiais americano, é bom que se diga, escritor americano Dennis McShade. Ainda que o próprio Dinis Machado ponha em questão esta ideia de “criação”, para mim, como leitor das obras dos dois, parecem-me indissociáveis.
Para fundamentar essa ideia, em 1977, foram lançados O que diz molero, de Dinis Machado, O nome das coisas, de Sophia de Mello Breyner Andresen 2 e Manual de Pintura e Caligrafia, de José Saramago 3 . O livro de Dinis Machado vendeu, naquele ano de 1977, duas vezes mais do que os outros dois juntos. Não bastando a venda estrondosa, a crítica também teceu loas à obra. O jornalista e escritor Antonio Mega Ferreira, na apresentação do livro, 4 disse: “[é] o mais importante texto de ficção que se publicou em Portugal no período pós 25 de abril [...] páginas miraculosamente repletas de sinais da mais bela, inteligente e emocionada escrita produzida por um escritor português na década de 70”. Segundo o poeta Eugenio de Andrade, também na apresentação do livro, o texto é “uma alegria”. Para o professor Eduardo Lourenço: a obra é um indício das novas relações entre texto contemporâneo e cultura, ou, pelo menos, um exemplo representativo do relevo assumido por “uma nova cultura 5 ”. Com isto busco estabelecer o lugar de O que diz Molero, não só na cultura portuguesa, mas também para Dinis. Que, em entrevista ao jornal de notícias, em 2007, diz:
Foi difícil escrever depois de Molero, olhando para trás e tentando fazer um balanço, começo a ver que, afinal, é tudo muito relativo. Mesmo o êxito. Na época as coisas estavam a acontecer e não se podia evitar a reviravolta na modorra literária. No fundo ajudei a essa mudança. Que só aconteceu porque tinha-me habituado à situação de ser escritor e já tinha escrito três policiais e criado a personagem do Peter Maynard, um assassino com preocupações filosóficas. Custou-me um bocado deixar de ser Dennis McShade. [...] Acho que Dennis McShade se zangou comigo. 6 Este último período, “Custou-me um bocado deixar de ser Dennis McShade. [...] Acho que Dennis McShade se zangou comigo.”, coaduna-se perfeitamente a uma das inúmeras considerações sobre os romances policiais do meio para o final do século XX. A investigação passa a ter uma importância, em muitos casos, maior do que a solução do crime ou a dissolução do enigma. Os diálogos de Maynard com ele mesmo são mais interessantes do que a busca pela justiça, específica, de cada caso/assassinato. A filosofia deste matador de aluguel, suas leituras e conjecturas sobre literatura, arte, política, ética e como lidar com isto tudo são o cerne dos livros, nunca a trama ou a solução de um mistério. Na década de 1960, as condições histórico-sociais pavimentaram a estrada pela qual seguiram os escritores destes novos modelos de romances policiais – que não pretendo denominar como policiais de citação, hiper-realistas ou teóricos. Todos, estes, termos válidos, mas que, no caso em questão, me parecem imobilizantes, apesar de ajudarem, de certa forma, a entender as configurações das relações pessoais, políticas e artísticas, da época.
Volto a frase de Dinis: “Custou-me um bocado deixar de ser Dennis McShade”. Mas qual seria a necessidade de haver um Dennis McShade? Provavelmente para falar sobre situações que apenas a um americano seriam permitidas pela censura salazarista. Não houve em Portugal, neste momento, a consolidação de uma ficção policial portuguesa. Os autores recorriam a pseudônimos anglo-saxônicos, preferencialmente fazendo-se passar por escritores americanos, com Gentil Marques que assinava como James Strong ou Herbert Gibbons. Faziam isto para que a censura entendesse que estavam imensamente longe da Europa vermelha comunista. Há dois motivos principais: Segundo o escritor António Andrade de Albuquerque, que adotou a alcunha de Dick Haskins, para lançar seus livros, cito: “O público português não compraria policiais escritos por autores locais, penso que por puro preconceito”. O segundo motivo seria a censura: romances policiais americanos seriam uma literatura rasa, de bolso e, como as histórias eram contadas por estrangeiros falando de seus respectivos países, não impactariam a sociedade portuguesa. Mesmo assim o Senhor Major da Censura Prévia chamou o editor e tradutor Dinis Machado, pois estranhou a linguagem do livro de McShade. Dinis apresentou a crítica feita por um dos maiores críticos literários dos Estados Unidos, Matt West, sobre a obra. Uma das partes da crítica era esta: “Maynard desfaz mitos com o mesmo escrúpulo com que dispara”. Matt West também “era” Dinis Machado. O grande absurdo deu certo, o livro passou e Dinis, que havia inventado tanto o autor quanto o crítico, e por motivos óbvios, o seu próprio serviço como tradutor, fez, assim, jus a uma quantia que hoje seria equivalente a quinhentos dólares, pelos três livros. A censura também não contava, evidentemente, que a Las Vegas dos livros de McShade também fosse Lisboa. Mas era. Este termo “romance policial de citação” seria o mais próximo de uma rotulação ou uma tipificação para as aventuras criadas por este americano do Bairro Alto. Seu protagonista, Peter Maynard, narra em primeira pessoa, num tom de conversa com o leitor e, às vezes, consigo, num diálogo em que faz conjecturas e apresenta considerações sobre arte, ética e solidariedade. Cito:
Gastei quinhentos dólares numa edição do Kama Sutra, num livro de Conrad, que já perseguia há três anos e numa curiosa biografia de Pollock, com reproduções. Andei de autocarro [...] fui ver a velha opereta de Rodgers e Hammerstein, uma coisa cansativa, com um tipo que cantava muito mal e uma tipa que representava aceitavelmente. 7 Segundo a professora Teresa Sá Couto: “Maynard é um bicho noturno, velha toupeira kafkiana, que olha para um ser humano com solidariedade, a solidariedade dos entravados, mesmo para aquele que cairá, pela força do dever, com a sua mão”. Este seria o ponto: solidariedade, amparo, no sentido de abrir possibilidades de leitura de mundo, de atuação coletiva, pautada numa conscientização individual.
De modo geral, o romance policial é um gênero literário que “aporta em si” as inovações tecnológicas de uma época, transfigurando-as em partes constituintes para sua própria produção literária. Os romances de Dennis McShade são atentos às injustiças sociais, “servem como suporte” para a explanação de desmandos, assumindo uma postura voltada ao confronto com o poder vigente, mesmo quando não é de forma explícita. Existe uma arquitetura de escrita que ajuda a definir um papel de intervenção intelectual, uma espécie de modelo de atuação contra a autoridade. Num primeiro momento, busca impedir o desaparecimento do passado, preservando a identidade através de leituras alternativas e perspectivas da história outras que não aquelas oferecidas pelos “representantes” de uma memória oficial e de uma identidade nacional – que tendem a trabalhar em termos de falsas unidades, da manipulação de representações distorcidas, deturpadas. A polícia nos romances de McShade é conivente e submissa ao crime organizado, punindo apenas quem não faz parte do poder vigente, seja ele do Estado ou de mafiosos. Dennis McShade reincorpora personagens à margem ao seio da sociedade, ao transformar delinquentes e miseráveis em figuras fundamentais de suas obras. Cito:
Vais considerar-te culpado, mas tens a atenuante de tal angústia, e isso é até um bocado aristocrático, fica-te muito bem, Beethoven para a esquerda, Proust para a direita, e ainda assim uma grande margem de melancolia, e depois a certeza de que um homem só é verdadeiramente com a sua solidão. Deixem-no passar, diz o povo, deixem-no passar, porque ele sofre muito e é grande, olha o sofrimento bem nos olhos e tem a coragem de continuar a viver. És um narciso da merda, Maynard. As piruetas que tu fazes para demonstrares a ti próprio que não és pior do que os outros. 8 Segundo a pesquisadora Sandra Jovchelovit:
As representações sociais não são um agregado de representações individuais, da mesma forma que o social é mais do que um agregado de indivíduos [...] as mediações sociais geram as representações sociais [que] [...] são uma estratégia desenvolvida por atores sociais para enfrentar a diversidade e a mobilidade de um mundo que, embora pertença a todos, transcende a cada um individualmente e, enquanto mediação social, elas expressam por excelência o espaço do sujeito, sua relação com a alteridade, lutando para interpretar, entender e construir o mundo. 9
McShade faz de sua obra uma ponte a propiciar uma integração. A literatura “apela” ao indivíduo, suplica por apreensão, interpretação e cooperação. A literatura é desde sempre comunitária. Essas representações individuais, quando mobilizadas em grupo, transformam-se em um polo de potências e ideias, onde o outro também tem de ser interpretado. No caso destes três romances policiais, essa interpretação coletiva nasce buscando confrontar o poder reacionário, de qualquer posição e onde quer que ele esteja, através de certa valorização da marginalidade. Segundo o professor Roberto Machado:
Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona, e que funciona como uma maquinaria, como uma maquinaria social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. 10 E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. E como não há poder de resistência, não existe propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. Esses pontos móveis e transitórios, acadêmicos, partidários, literários, só conseguem existir através da aceitação das individualidades e das limitações inerentes a esses indivíduos e ao grupo.
Essa resistência, formada por estes pontos móveis e transitórios, distribuídos pelo mesmo tabuleiro de onde avançam as peças do poder, deve estrategicamente se valer desta mesma rede para destecer a trama do Estado, das grandes corporações e dos bancos e aqui, nos livros de McShade, também do crime organizado. O Sindicato do crime emite uma ordem para executar Maynard, pois entende que “assassinos têm de ser confederados, têm regras e hierarquias como o serviço militar ou a polícia. Maynard é solitário e pensa muito”. O poder, esteja onde estiver, exerce, além da força “física” – censura, prisão, tortura, morte –, a força econômica, segregando oportunidades e dispondo politicamente de cargos e benefícios, aumentando possibilidades de sucesso. Por conseguinte, nas diversas discussões sobre justiça e direitos humanos, às quais tantos de nós consideramos que tenhamos nos unido, haja necessidade de se ter um componente de nosso engajamento que precise se focar na necessidade de redistribuição de recursos e que advogue o imperativo teórico contra as imensas acumulações de poder e capital, que tanto distorcem a vida humana. Algo próximo da paz não poderá existir sem igualdade: este é um valor intelectual que necessita desesperadamente de reforço e interação e de uma pistola Beretta. Os miseráveis, de certa forma, dependem da disposição de Maynard para promover a justiça, mesmo que seja sua definição de justiça e seus meios para exercê-la. Quando uma jovem é violentada, apenas Maynard pode reestabelecer certo conceito de justiça, indo atrás dos responsáveis pelo crime.
Dinis Machado, na apresentação de Mulher e arma com guitarra espanhola, diz:
E o género policial, que se bastava com uma só face da realidade, quantas vezes apenas aparente, tende a desdobrar-se em vários planos, procurando pistas de vida em todas as direcções que a vida tem. Suponho também que o romance policial começa a experimentar o gosto de encontrar matéria-prima em tudo o que se choca (e que se choca porque se atrai): novas noções de sociologia e de vivência; Freud e as histórias aos quadradinhos: a cultura e a violência; a ingenuidade e a ironia; o amor e o mercenarismo; a acção individual e a pressão de grupo; o fundamental e o insignificante: 0 comportamento interior e o exterior: a palavra àrduamente procurada e a linguagem desprevenida, espontânea; o tédio das situações convencionais e o culto sistemático do absurdo; as linhas determinadas da construcão dramática e a força corrosiva do humor. E o leitor pode imaginar um país das maravilhas, onde esteja além de Alice, o Padre Brown, madame Curie e Al Capone. O que transforma logo Alice. O que transforma tudo, incluindo o país das maravilhas e o leitor. 11
O gênero policial pede uma nova fonte: a grande realidade geral que nada recusa, nem mesmo a fábula, Podemos adiantar: uma realidade que precisa da fábula para ser mais ela. É importante experimentar isto, mesmo falhando. Valer como experiência já é valer. Os monólogos interiores criados por McShade bebem a Camus e uma frase do autor franco-argelino surge das páginas de A queda, ao mesmo tempo desconcertando e dando prumo para a narrativa do escritor americano que, sabemos, fala de Portugal: “Quando todos formos culpados então será a democracia”. Dinis, como sabemos, tinha um carinho especial pelos desvalidos, pelos que caem para o lado mais negro, pelos injustiçados. Estes, somos todos. Uns mais do que outros, mas todos. Que partilhamos todos de um mesmo sentimento comum. A culpa, o medo, a solidão. Talvez a frase de Camus, “Quando todos formos culpados então será a democracia”, queira dizer que, quando todos formos responsáveis, então será democracia. Quando todos tivermos poder de intervenção, de pensar livremente, será democracia. Parece ser a culpa que Dinis Machado sempre quis que carregássemos.