Figuras da Lusofonia

A Língua de Cleonice

A LÍNGUA DE CLEONICE

Ivo Castro
Universidade de Lisboa

Terá sido Manuel Bandeira quem primeiro louvou aquilo que todos agora conhecemos e admiramos, a "voz bonita e o comentário claro e sábio" de Cleonice Berardinelli? Não o foi com certeza; nem me surpreenderia que o poeta de Estrela da Manhã, falando pela rádio num distante 1962, estivesse mais interessado em sugerir ao seu auditório o que este não podia ver: que a beleza não se ficava pela voz. Para quê dizê-lo, se nenhum ouvinte tinha dificuldade em chegar por si só à conclusão de que Cleonice poderia ter sido professora de arte de dizer em qualquer Conservatório? E, além disso, de que a sua voz é indiscutivelmente brasileira.

Conclusão a que não chega tão facilmente o leitor dos seus escritos ensaísticos. Nesses, a nacionalidade esquiva-se a uma descoberta imediata: um português que conheça a autora não deixará de se espantar com aquilo a que, imprecisa e provisoriamente, chamarei a lusitanidade do seu léxico e da sua frase, que só não soam inteiramente familiares quando, entrelaçados nos textos literários que analisam e glosam, acabam por lhes emular os estilos, as modulações, os materiais e, em alguns casos, a idade. A prosa de Cleonice é um perfeito exemplo do registo culto do português escrito, próxima da língua dos escritores, mas mais regulamentada e contida que a deles. É uma língua de escola, nascida do estudo e usada durante décadas, gloriosamente, para o ensino. A sua aparente lusitanidade explica-se por um fenómeno para que Celso Cunha chamou a atenção em Política e cultura do idioma (1981): enquanto em Portugal se pode dizer que existe uma única norma culta, são duas as que vigoram no Brasil, uma delas sublimando e fixando na escrita traços da língua falada, com inevitáveis matizes provenientes de variantes regionais e sociais, e a outra norma preservando tradições de um tempo em que a cultura portuguesa ocupava uma posição mais central na vida brasileira e em que a unidade linguística era com mais verdade sentida. Por isso, enquanto em Portugal a educação visa a aquisição de um único modelo linguístico, no Brasil ela oferece uma escolha entre dois modelos, que não diferem apenas na sua materialidade linguística, mas também nas implicações culturais e ideológicas. À assimetria daí resultante, que diz respeito fundamentalmente ao povo brasileiro, vem somar-se o facto de a fragmentação linguística do latim em diversas línguas românicas continuar activa e seguir seu curso, como é próprio dos grandes movimentos de placas tectónicas, começando a ser visível que, segundo os critérios tipológicos usados pela linguística teórica para comparar, classificar e distinguir línguas, o problema de haver fracturas dentro do espaço linguístico português deve ser colocado. É sobre este pano de fundo, sombrio ou promissor consoante os gostos, que tentarei falar da língua de Cleonice.

Confesso que não fui muito escrupuloso na recolha do corpus. Limitei-me a ler conferências, comunicações a congressos e livros produzidos por Cleonice com destino a públicos brasileiros. Assim como não tive em conta as manifestações da sua oralidade, também desprezei as suas cartas, faxes e, agora, mensagens electrónicas, o que me deu grande prazer, pois o sentido geral da produção epistolar que me dirige é a reclamação (de informações, de opiniões, em suma de trabalho). Mas gostaria de ter lido transcrições do seu discurso oral, produzido em situação de diálogo e sem apoio escrito: aí é que melhor se veria, na espontaneidade da escolha da palavra e da construção, e sem influência da coloração fonética, se a língua de Cleonice foi mais marcada pela escola onde estudou ou pela terra em que nasceu.

Ao longo dessa leitura, distraí-me frequentemente do objectivo, que era fazer fichas, e perdi-me nas palavras de Cleonice, que, se subitamente nos mudássemos para França, encepariam na linhagem clássica da Sévigné e da criada de Proust. Foram momentos prazerosos, para usar um adjectivo recorrente do seu vocabulário, que já lhe ouvi neste colóquio. Mas mais de uma vez, ao apreciar o espírito, a regra e a elegância com que a sua personalidade se manifesta no que escreve, e no resto, me veio à lembrança uma personagem da Regra do Jogo, de Renoir, que melancolicamente notava: "Cela se perd, cela se perd".

Mas nem todas as perdas têm de ser infelizes. Uma perda feliz é aquela que renasce como mudança aceite, nas línguas como em todas as coisas. Sabem-no bem os sociolinguistas, cansados de ver como supostas corrupções da língua, que causam escândalo entre os puristas durante geração e meia, logo reaparecem nas páginas do dicionário ou convertidas em regras consensuais da gramática normativa. Observam-no, nos ritmos mais espaçados do nascimento, evolução e diferenciação das línguas, os historiadores. Por isso, talvez não valha a pena preocuparmo-nos demasiado com a perspectiva de as gramáticas brasileira e portuguesa prosseguirem a sua serena distanciação uma da outra. Não será por isso que deixaremos de nos entender, se quisermos comunicar. Melhor dito: não será por isso que os nossos descendentes longínquos se desentenderão.

O que geralmente faz quem chega a este ponto do discurso é enfiar pelo campo das políticas da língua, campo minado de argumentos racionais e emotivos que importaria abordar de uma forma completa e metódica, distinguindo necessariamente dois níveis de discussão: em um deles, é preciso reconhecer que não são coincidentes por natureza, mas poderão sê-lo por escolha, as diversas políticas nacionais da língua portuguesa, havendo que identificar e distinguir uma política portuguesa, uma política brasileira e uma, ou umas, políticas africanas da língua portuguesa; no outro nível, são de concretizar as opções e as atitudes que em cada política nacional se assumirão. Assim, no caso de Portugal, têm de ser reconhecidas, e tratadas como partes distintas dentro de um todo, uma política em relação ao português do Brasil, outra em relação ao de África, outra ainda em relação ao galego, visto que até hoje nos limitamos a tomar conhecimento do debate interno galego sobre as afinidades com o português, ou simplesmente a ignorar a existência desse debate, e por último uma política em relação ao português de Portugal. Na definição de qualquer destas políticas, a língua é um elemento essencial, mas que não deveria ser utilizado como um valor absoluto e pré-estabelecido. É esse o defeito que encontro nas posições maximalistas, de que são bom exemplo as mais extremadas: uma declarando que a língua é única, porque sim, no mítico "espaço dos 200 milhões", todas as acções devendo decorrer desse facto indiscutível, e a outra posição anunciando que no Brasil o português já é outra língua, sugerindo por meio deste "já" e deste "outra" que houve uma intenção separatista marcada. Em ambas as posições noto a convicção de que nada resta ao homem para influenciar o curso dos acontecimentos. Ora, não é preciso ter uma visão heroica da história para reconhecer que personalidades como Cleonice Berardinelli, pela abundância de meios de difusão que são concedidos às suas palavras, dispõem de uma capacidade de influência que pode ser determinante na fixação de normas e na rejeição de inovações linguísticas.

Vamos ver que sinais nos dá, neste magno contexto, a língua de Cleonice. Para isso, adopto como termo de referência dois posicionamentos assumidos por linguistas brasileiros, um favorável à fragmentação linguística do português e outro à sua unidade superior, mas ambos formulados com tal prudência e ausência de chamamentos retóricos que quase apeteceria demonstrar que são conciliáveis.

Uma posição que nos últimos anos tem vindo a adquirir visibilidade e crédito entre muitos linguistas brasileiros e, é preciso acrescentar, também entre bastantes dos seus colegas portugueses (significando que não há entrincheiramentos nacionais neste debate) é a de que o português brasileiro (PB) e o português europeu (PE) já são duas línguas diferentes. Soa certamente como radical esta afirmação a muitas das pessoas envolvidas. Eu próprio confesso alguma dificuldade inicial em a aceitar e dúvidas quanto ao "já", que insinua, como notei, um processo deliberado de afastamento do PB em relação a um ponto de partida que seria o PE. Processos como esse, designados por elaboração ou Ausbau na terminologia de Heinz Kloss, existem certamente: temos um a decorrer mesmo ao nosso lado, com as instituições galegas (governo, universidade e academia) a procurarem as soluções que melhor individualizem a sua língua por comparação com o castelhano e, em certa medida, o português. Mas os terrenos em que essas opções mais nitidamente se manifestam são a ortografia, o léxico e a morfologia. No caso do português brasileiro, a demonstração é feita com base em materiais de natureza sintáctica e nela se entrelaça uma outra discussão, a de saber se estamos perante novas regras ou perante possibilidades antigas da língua portuguesa. Se, no plano da sintaxe, não me sinto à vontade para emitir opinião, já no plano da fonologia me parece claro que o PB não se caracteriza por uma elaboração diferencial em relação ao PE, mas, ao contrário, pela conservação de fonemas que em Portugal é que foram mudados, como se pode observar, por exemplo, na dramática transfiguração do sistema do vocalismo átono que ainda tem muitos frutos para dar ou na palatalização do ubíquo /-s/ implosivo em final de sílaba. No primeiro caso, o Brasil conserva os fonemas vocálicos /e/ e /o/ em posição átona, próprios da língua medieval e clássica, que em Portugal se elevaram para /e/ mudo ou /i/ e para /u/ respectivamente e que hoje estão a desaparecer em certos contextos; no segundo caso, o /-s/ implosivo que ocorre em muitos finais de sílaba interna e, sobretudo, em todas as palavras plurais, o que o torna um dos fonemas mais frequentes da língua, sofreu em Portugal, de sul para norte a partir do séc. XVIII, uma palatalização que ainda não atingiu os dialectos do norte enquanto, no Brasil, onde parece ter sido introduzida pela corte de D. João VI, afecta apenas a zona de influência do dialecto do Rio. Estes factos fonológicos levariam a concluir que não é o PB, mas sim o PE que "já é outro". Mas prefiro dizê-lo de outro modo: nestes particulares da fonologia, a língua de Cleonice está mais próxima da língua de Camões que a minha. Se é verdade que José Saramago disse um dia a um estudante brasileiro "A língua é minha, o sotaque é seu", teríamos de perguntar onde é que, nos casos que apontei, estará realmente o sotaque, para depois concluirmos que todos, sem excepção, falamos com sotaque.

Mas retomo o fio da conversa. O contraste entre as gramáticas brasileira e portuguesa está feito por muitos autores; de entre eles, prefiro a apresentação sintética de Paul Teyssier no seu Manual de Língua Portuguesa (Portugal-Brasil), de 1989. Mas a ideia de que PE e PB não são a mesma língua não ressalta dessas apresentações, só começando a surgir nas obras de linguistas como Fernando Tarallo, Mary Kato, Charlotte Galvés, entre outros. Muito recentemente, em 1998, esta professora tornou a expo-la com argumentos de ordem sintáctica, ressalvando que a distinção entre as duas línguas pressupõe que se defina "língua" como Gramática ou Língua Interna, ou seja "o estado de saber linguístico dos falantes que têm essa língua como língua materna", saber esse que não deve ser confundido com o conjunto de enunciados linguísticos que uma comunidade pode produzir em correlação com as marcas sociais, históricas e culturais da sua existência colectiva, ou seja uma Língua Externa, aquilo a que se costuma chamar normalmente "língua" ou "idioma" (Galvés, 1998:80). Esta ressalva é importante, pois claramente situa a questão no plano da estrutura interna da língua, sem implicações directas e imediatas sobre a produção ou a percepção dos actos linguísticos concretos. Para que duas línguas internas sejam consideradas diferentes, basta que possuam duas ordens de coerência distintas e que não possam ser produzidas por um mesmo conhecimento linguístico (Galvés, 1998:91); para isso basta que se distingam por um único parâmetro da gramática universal, com o que não só podem produzir enunciados de tipo diferente como também fazer corresponder estruturas diferentes a enunciados que, no plano da superfície, parecem idênticos. Charlotte Galvés reconhece que no caso do PE e do PB perduram grandes afinidades, sobretudo nos planos do léxico, da morfologia e da fonologia, o que explica pela "sua recente separação histórica e cultural". Mas é no plano sintáctico que encontra decisivas clivagens de parametrização. São as seguintes algumas das mais notáveis:

a) para denotar o objecto directo, a gramática brasileira substitui o pronome átono da terceira pessoa pelo pronome tónico (PB: Vi ele ontem na rua, a que corresponde em PE: Vi-o ontem na rua). Na frase brasileira, ele pode referir tanto um ser animado como inanimado (p. ex., um carro), o que não acontece na frase portuguesa Vi-o a ele ontem na rua, possível apenas para um homem.

b) quanto à sintaxe dos pronomes átonos, o PB tem a possibilidade de os colocar em início de frase (PB: Me chocou tremendamente), o que seria impossível em PE. Por outro lado, em frases reais brasileiras, recolhidas pelo projecto NURC, encontra-se uma colocação do pronome átono em próclise em relação ao verbo principal (PB: Agora não tinha me lembrado; Essas indústrias novas que estão se implantando), ao passo que o PE obrigatoriamente coloca esses pronomes em próclise do verbo auxiliar (PE: Agora não me tinha lembrado; Essas indústrias novas que se estão implantando).

c) certas diferenças são quantitativas. Embora a frase de sujeito nulo (não expresso) Iremos todos ao cinema amanhã seja possível em PE e em PB, este usa com maior frequência a frase com pronome sujeito: Nós iremos todos ao cinema amanhã. Em compensação, há casos de sujeito nulo que só podem ocorrer em PB: a frase Não usa mais freio supõe em PB um sujeito não expresso com valor genérico-indefinido, o que em PE requer o pronome clítico se: Não se usa mais freio. Ainda no capítulo das frequências, o PE usa com muito maior abundância os pronomes átonos da terceira pessoa (o, a, lhe).

d) O PB tem ainda a possibilidade de construir frases na voz activa com um sujeito que a morfologia do PE não admitiria, o qual assim se afirma pela sua posição à cabeça da frase: A balança está consertando ou O relógio quebrou o ponteiro (a que corresponderiam em PE respectivamente A balança está a ser consertada e O ponteiro do relógio quebrou-se).

Conclusão minha, interpretando Galvés: podem as estruturas de superfície do PE e do PB ser as mesmas - ou seja, podem o vocabulário de cultura e boa parte do vocabulário quotidiano serem os mesmos (com a ressalva de particularismos dialectais e da emergente terminologia técnica e científica); pode a fonologia, apesar das divergências a que aludi, manter-se suficientemente homogénea para que funcione a intercomunicação oral, grande aproximadora dos povos; pode a morfologia, apesar de nítidas diferenças na flexão verbal e na frequência de uso das categorias pronominais, preservar a imagem de um jogo que se faz com o mesmo elenco de peças; pode a ortografia, apesar dos seus desacordos e do seu real estatuto como estrutura, não de superfície, mas de superficialidade, garantir uma esmagadora sensação de identidade entre os enunciados escritos do PE e do PB -, a verdade é que, para os linguistas formados na escola chomskiana da teoria da Regência e Ligação e para os sociolinguistas variacionistas, e ainda para todos os linguistas de variadas persuasões que confiam no pioneirismo daqueles outros, as estruturas linguísticas de profundidade não são idênticas em Portugal e no Brasil.

Seria de esperar que a prosa de Cleonice, dada a sua lusitanidade patente, nada tivesse a ver com tudo isto. De facto, não descortinei um único pronome pessoal tónico a servir de objecto directo, mas sim abundantes pronomes átonos, com frequência e colocação dignas do PE; nem descortinei, para abreviar, nenhum dos critérios de Galvés. Mas a busca não foi, por isso, inconclusiva. Em frases esporádicas, como

Pede-lhe perdão, ela o repele.
...e o filho lhes obedece
No fim do auto lhe descobrimos uma faceta

encontramos casos de anteposição do pronome em relação ao verbo que são típicos do PB, o qual pratica a próclise com mais frequência que o PE. E achei um caso muito interessante de posposição do pronome em frase interrogativa,

Não haverá nelas um senso comum que, próprio dos simples, marca-as positivamente?

fenómeno muito semelhante ao que Paul Teyssier ilustra com um verso de Vinicius ("Onde levou-te o destino...?") e que declara "totalmente impossível em Portugal" (Teyssier, 1989:125). Dessa mesma posposição, ou ênclise, dão conta no mesmo texto outras frases, ainda que não interrogativas:

...que, por fim, mostraram-se eficientes.
Brás também se admira de ouvi-lo.

[Neste ponto da leitura da comunicação, e no debate final, Cleonice Berardinelli declarou que não reconhecia estas posposições como fazendo parte dos seus hábitos linguísticos, mas, constantando-se que os exemplos haviam sido colhidos da sua conferência "O rústico no teatro vicentino", lida no primeiro Congresso Internacional da Faculdade de Letras da UFRJ (14-18 de Setembro de 1987) e publicada nos respectivos anais (Letra, nº 3, Rio de Janeiro, 1989, p.51-61), recordou que esta publicação se fizera sem revisão da sua parte, o que explica que aquelas construções tenham sobrevivido em livro. Pela minha parte, acrescentarei que me lembro de ter assistido à leitura da conferência, no anfiteatro Roxinho do Fundão, e que Cleonice seguia um texto escrito. Que se pode concluir daqui? Que Cleonice Berardinelli, nos textos que escreve para ler perante um público brasileiro, permite que a gramática do PB transpareça mais visivelmente que nos textos que prepara, ou revê, expressamente para publicação em livro, dos quais retira algumas estruturas mais conflitivas com a gramática europeia. Ou seja: ela própria pratica, em situações claramente demarcadas, as duas normas cultas brasileiras de que Celso Cunha falava. Retomo agora o texto da minha comunicação.]

Também ocorrem, com razoável frequência, omissões do artigo, do tipo A suas aulas, em vez de Às suas aulas. Esta colecção de exemplos é pequena, mas pouco esforço fiz para a ampliar a partir do momento em que percebi que o que tinha verdadeiramente significado não era o número de exemplos, mas o facto de haver, na prosa de Cleonice, casos, ainda que raros, de colocação brasileira do pronome pessoal átono e de supressão do artigo definido. Verifica-se, assim, que mesmo na norma culta escrita mais lusitanizante que se pode achar no Brasil (recorde-se que todos os textos que percorri foram escritos para serem lidos ou ouvidos por público brasileiro) penetram tais fenómenos emanados da estrutura sintáctica de base do PB. Fenómenos que não devem ser interpretados como vestígios anómalos, susceptíveis de regularização, mas como a guarda avançada de grandes mudanças por vir.

Prometi apresentar um segundo posicionamento acerca destes problemas, também de linguista brasileiro. Celso Cunha sempre acreditou que a língua de Portugal e do Brasil era uma, sem fechar os olhos, no entanto, às diferenças existentes. Inspirado em categorias colhidas na linguística de Saussure e de Eugenio Coseriu, propôs sistematizar essas diferenças em torno de variantes nacionais, que define como subsistemas nacionais dentro do arqui-sistema da língua portuguesa. Uma variante nacional não é uma norma, nisso se distanciando do conceito de standard, mas um conjunto que reúne e recobre as normas dialectais, sociais e diastráticas de um país. A norma culta a que pertence a língua de Cleonice integra-se, assim, na variante nacional brasileira, ocupando dentro dela a posição mais chegada à variante portuguesa, mas mesmo assim dela se distinguindo. Os factos atribuídos ao PE e ao PB podem ser identicamente distribuídos pelas duas variantes nacionais, mas, enquanto para uns eles assentam sobre gramáticas internas que se distinguem por um pequeno feixe de importantes distinções paramétricas, para outros eles assentam todos sobre uma única gramática, que admite grandes possibilidades de variação interna e pertence, por isso, ao tipo do diassistema. Esta é a principal distinção que se pode fazer entre os dois posicionamentos no plano teórico. No plano prático, ressalto a seguinte: a teoria de Celso Cunha teve a sua aplicação mais elaborada na Nova Gramática do Português Contemporâneo, que assinou com Lindley Cintra: assentando, como é evidente, no princípio de um sistema linguístico único, trata em paralelo, e em rigoroso pé de igualdade, as variantes brasileira, europeia e, adiantando-se um pouco ao curso da história, uma variante africana cujos contornos talvez ainda estejam longe de se definir. É, assim, um misto de gramática normativa e contrastiva, uma "descrição do português actual na sua forma culta, isto é, da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá", com o objectivo de "mostrar a superior unidade da língua portuguesa dentro da sua natural diversidade" (Cunha-Cintra, 1984:xiv).

Prometi também não ensaiar a conciliação entre as posições de Charlotte Galves e de Celso Cunha, mas nos elementos que alinhei, e que resumem muito mal as ideias de ambos, não será impossível entrever que, por cima de quadros teóricos e metodológicos bem afastados, de pressupostos culturais e ideológicos que talvez não o sejam menos e de recolhas de dados feitas com critérios quase opostos, tanto uma como o outro estão de acordo quanto à vastidão do distanciamento linguístico que observam dentro da língua portuguesa (ou entre as línguas portuguesas) e quanto à natureza progressiva e inelutável desse distanciamento. É uma lição a tirar pelos construtores de políticas. E um convite à aceitação igualitária entre variantes, pois a compreensão e as possibilidades de entendimento não dependem só, nem principalmente, da língua.

Poderíamos perguntar a Cleonice Berardinelli o que pensa a respeito de tudo isto. Mas aqui ela foi o informante, e informante não tem direito a opinião [quando muito, a reclamação, como não deixou de fazer]. Isto faz-me pensar, tarde de mais, que professor não é o melhor informante linguístico que se possa escolher. Bem o advertia Celso Cunha, recordando como Sílvio Elia achara exagerado dizer-se que o ditongo [ow] estava monotongado no Brasil. "Confesso - palavras de Sílvio - que, na minha pronúncia de falante carioca, o ditongo não desapareceu de todo. E não sou caso isolado". Ao que Celso juntava, sem disfarçar a ironia: "E realmente não é um caso isolado. Também na nossa pronúncia, na dos Professores Rocha Lima, Antônio Houaiss, Antônio Sales, Antônio José Chediak, Wilton Cardoso, Evanildo Bechara e outros professores brasileiros percebe-se claramente a articulação [ow], na fala tensa, principalmente em final absoluta: estou, vou, etc." E concluía que só os professores é que guardavam o ditongo, pois todas as pessoas de idêntico nível cultural na região do Rio de Janeiro o monotongavam (Cunha, 1985:36).

Não foi esta a única vez que o ditongo [ow] provocou interrogações quanto à variação linguística. No poema que lerei como epílogo, é a contraditória mudança de [ow] para [oi] e de [oi] para [ow] em vocábulos contemporâneos que parece surpreender o poeta, aquele poeta que Cleonice e eu, de braço dado e imitando Faria e Sousa, temos algum direito de chamar "o nosso poeta". Mas o ditongo não passa de um pretexto para ele falar, também em modos de apropriação, daquilo que pertence a Cleonice, a todos nós e, sublimemente, a ele mesmo.

A nossa magna lingua portugueza
De nobres sons é um thesouro.
Seccou o poente, murcha a luz represa.
Já o horizonte não é oiro: é ouro.

Negrou? Mas das altas syllabas os mastros
Contra o ceu vistos nossa voz affoite.
O claustro negro ceu alva azul de astros.
Já não é noute: é noite. [60A-30r: 26-8-1930]

 


Referências bibliográficas

Celso Cunha, 1981: Política e cultura do idioma, Língua, Nação e Alienação, Rio de Janeiro, Nova Fronteira
Celso Cunha e L. F. Lindley Cintra, 1984: Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, João Sá da Costa.
Celso Cunha, 1985: A Questão da Norma Culta Brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro
Charlotte Galves, 1998: A gramática do português brasileiro, Línguas e Instrumentos Críticos, Campinas, nº 1, Jan-Junho.
Paul Teyssier, 1989: Manual de Língua Portuguesa (Portugal-Brasil), Coimbra, Coimbra Ed.