Figuras da Lusofonia

Tríades

TRÍADES

Eduardo Prado Coelho
Universidade Nova de Lisboa


Na impossibilidade de apresentar um trabalho sistematicamente articulado (como se diz na linguagem do Brasil: "fico devendo", e adiante veremos como a questão da dívida é fundamental), o que era sem dúvida aquilo que eu gostaria de fazer em relação a Cleonice Berardinelli, porque sei, claramente sei, que ela o merece, nessa impossibilidade, repito, apresento apenas algumas notas para um trabalho futuro.

Mas, porque de Cleonice se trata, partirei da literatura brasileira, de que ela se diz modestamente "diletante". O primeiro texto é "A Terceira Margem do Rio", incluído nas Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa. E a minha pergunta, a minha única pergunta, é: que significa a designação do Terceiro quando se fala, por exemplo, na "terceira margem do rio"? Será que a configuração de um Terceiro, no desenho movente das tríades possíveis, significa sempre o mesmo? Ou será que o Terceiro pode ser umas vezes metáfora da totalidade (do anel do saber), outras vezes metáfora da neutralidade (por exemplo, o "chão mineral" da poesia, de que fala Melo Neto), outras vezes ainda metáfora da exclusão (o terceiro excluído), ou, como em Guimarães Rosa, metáfora da impossibilidade (lógica, e, portanto, impossibilidade da própria lógica)? E haverá algo em comum entre estas figuras? Não será sempre o Terceiro metáfora da metáfora, isto é, linha de intensidade, isto é, Deus seduzido e reconduzido ao curso da pura imanência?

Voltemos a Guimarães Rosa. Havia um Pai, havia a Mãe, e havia três irmãos. A família, a casa. O pai era "cumpridor, ordeiro, positivo". Um dia resolveu mandar fazer uma canoa (e talvez o segredo de tudo tivesse ficado no "homem que para ele aprontara a canoa", mas esse homem morreu e nada disse) e despediu?se sem mais. Entrou na canoa, com o filho vendo, "e a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feita um jacaré, comprida longa". O "nosso" pai, digamos assim, pretendia ficar no rio, dentro da canoa, "de meio a meio". Diz Guimarães Rosa: "a estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente". De meio a meio, imóvel, ele aproximava?se da terceira margem do rio.

O que resulta destas imagens é uma serenidade sem mácula - ali, "só assim, ele no ao?longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio". A este movimento de reentrar em si, nessa reentrância do viajar, que se opõe à errância de outros viajares, se deve dar a dimensão calculadamente reflexa: como diz Guimarães Rosa, "nosso pai se desaparecia", apenas, "sem fazer conta do se?ir do viver".

Há aqui dois pontos que eu pretendia sublinhar. O primeiro é que, à medida que "nosso" pai se desaparecia, o narrador nos diz que "eu ia ficando mais parecido com nosso pai", isto é, diremos nós, "eu me ia aparecendo meu pai". Há aqui um processo de transmissão (que provavelmente se faz sempre em torno de um Terceiro: o Pai, Eu, e o Lugar do Pai). Mas, sublinhe?se, transmissão do intransmissível - porque dádiva de nada.

Em segundo lugar, não apenas dádiva, que é já algo que quebra o circuito da troca, mas também dívida (a dívida de que falei no início, e que todos temos em relação a Cleonice). E, como inevitavelmente sucede no salto das gerações, a transmissão do intransmissível gera uma dívida infinita. O narrador poderá trazer comida todos os dias para alimentar o pai. No entanto, nada apaga nele um sentimento de culpa, e diz: "Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência - e o rio?rio?rio, o rio pondo perpétuo." E mais à frente: "Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras".

Aí ele tenta pagar a dívida infinita propondo?se ocupar o lugar do Pai. Mas compreende que, sem nunca ter quebrado a continuidade da sua viagem imóvel, sem nunca ter agitado, nem sequer pela respiração, as águas do rio, o Pai passara, ensinando a passar, do aquém para o além ainda aqui. E o filho recua - é porção de ser humano ter medo e recuar. "Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado." Assim se fez a troca dos bens invisíveis: o Pai ensinou a passar, o Filho aprendeu a ser mortal. Todos "nessa água que não pára, de longas beiras: e eu, rio abaixo, rio afora, rio a dentro - o rio". Note?se esta forma de deslizar: de "eu no rio" passa-se para "eu?o rio". O sujeito, no limite do três, torna?se zero - lugar da paz, da evidência do que é. Assim se confirma uma das nossas hipóteses: há uma indeterminação e instabilidade do Três, que tende a rodar no sentido do Zero, ou da oscilação Três?Quatro (mas aqui recompõem-se as díades: o Quatro é Dois mais Dois) ou do Infinito.

Sublinhemos dois pontos (e provavelmente isto acarretará passarmos para um segundo e um terceiro textos).

O primeiro ponto é o seguinte. Uma das questões essenciais em Guimarães Rosa é a que se formula numa frase com que o narrador comenta a decisão do pai: "Aquilo que não havia, acontecia".

Trata-se do acesso ao simbólico, não no sentido tradicional do termo, mas naquele que irrompe na tríade nuclear proposta por Jacques Lacan: o Real, o Imaginário e o Simbólico. Um exemplo, que vem do próprio autor citado (e da minha experiência pessoal, em viagem de automóvel por uma estrada de Espanha): uma coisa é abrir o porta?bagagens do meu carro e verificar que ele está vazio: nada está lá dentro; outra coisa é colocar lá dentro a minha mala; mas outra coisa ainda, a terceira nesta estória, é abrir a bagageira e ver o vazio da mala roubada que não está lá. É o mesmo nada, claro, mas de modo algum eu posso ver esse nada como o mesmo: é um nada "residual", como diz Guimarães Rosa, um nada que só se obtém por um processo de abstracção (eu parto da imagem da mala que devia lá estar e não está, e vejo nitidamente o vazio dessa mala). É a terceira margem do vazio.

Temos assim uma cadência tripartida: primeiro, acontece o que há; depois, não há o que acontece; por fim, acontece o que não há. Donde, repetindo Guimarães Rosa: "aquilo que não havia, acontecia".

Disso falou o próprio Guimarães Rosa numa outra estória admirável e fulgurante a que deu o nome de "Nenhum, Nenhuma". É o relato de alguns factos, que são grandes, porque irrompem vindos do indescoberto: "irreversos grandes factos - reflexos, relâmpagos, lampejos - pesados em obscuridade". Eu conto, saltando sobre o secundário, mas com a consciência de que nesta tramitação nada é secundário: um menino entra num quarto. No quarto, há um homem sem aparência - supomo?lo de costas, ele estará sempre de costas, como num quadro de Caspar David Friedrich (aproximamo?nos pé ante pé do romantismo alemão). E há uma data ilegível para a criança: será talvez 1914. Mas há sobretudo o cheiro das madeiras: "o cheiro, do qual nunca mais houve". Esse homem não tem aparência - parece um velho tio, parece mas não é, é mas não aparece. E há a Moça - a "Moça, imagem", escreve Guimarães Rosa: "a lembrança em torno dessa Moça raia uma tão extraordinária, maravilhosa luz, que, se algum dia eu encontrar, aqui, o que está por trás da palavra 'paz', ter?me?á sido dado também através dela".

Mas de tudo isto é difícil falar - porque apenas surge na crista frágil do "difícil clarão reminiscente". Embora o narrador se interrogue se infância é coisa , vai dela contar como se de coisa se tratasse, assim: "ultramuito, porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde o luar do meu mais longe, o que certifico e sei."

Havia a Moça, havia o Moço, e havia uma criança que é o terceiro excluído do amor desta estória. A Moça e o Moço se olhavam, olhos nos olhos, até ao fundo, ávidos de transparência: mas, diz Guimarães Rosa, "nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não." Donde, como escreveu Hegel, uns olhos que olham outros olhos vêem?se de repente na "noite do mundo" - quem de tão longe alguma vez regressa? O menino pretendia que eles nunca deixassem de se olhar assim - a paz dependia disso. Mas de repente intromete-se "a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos".

Havia também a Velha, no quarto de início proibido: velha de tão velha que o nome se gastara e ficara Nenha. A velha sentada diante da morte - imóvel, cor de cidra. O menino pergunta: "ela bela?adormeceu?". A Moça beija o menino. Naquele quarto, diz o narrador, "a vida era o vento querendo apagar uma lamparina. O caminhar das sombras de uma pessoa imóvel". Donde, já não acontecia o que há: "eram coisas que paravam já à beira de um grande sono".

E por aqui se avança no caminho da grande abstracção: aí, até ao lugar onde acontece o que não há. Diz Guimarães Rosa: "Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena: é uma ponte ponte - mas que, a certa hora, se acabou, parece'que. Luta?se com a memória." E vemos o menino "tornado quase incônscio, como se não fosse ninguém, ou se todos, uma pessoa, uma só vida, fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho, e a Nenha, velhinha - em quem trouxe os olhos.". Ou uma só pessoa - um rio correndo pela margem terceira de si mesmo.

Aqui cada um era já, na nitidez de o ser, nenhum, nenhuma. Primeiro, o mundo do tamanho do que é; depois, mais pequeno, do tamanho de não ser. Por fim, infinito, sendo ainda, ou já, o que não é. É este o terceiro pensamento. Escreve Guimarães Rosa: "Tem horas em que, de repente, o mundo vira pequenininho. Mas noutro de?repente ele já torna a ser demais de grande, outra vez. A gente deve de esperar o terceiro pensamento".

Regressado à cidade, o menino vê seu pai, homem de bigodes. O pai dava ordens para se construir um muro. A mãe, beijando?o, queria saber se ele não rasgara a roupa, ou se ainda tinha no pescoço os santos das medalhinhas. Viviam apenas no que há. E entre o menino e os pais ergue?se o intransmissível. Porque eles não sabem; mas, sobretudo, porque eles não sabem que não sabem. E o conto termina assim: "eu precisei de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: 'Vocês já não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...'. E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram. Porque eu desconheci meus Pais - eram?me tão estranhos: jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?".

Chego agora ao terceiro ponto - e ao terceiro texto de Guimarães Rosa. Trata-se do livro intitulado Tutaméia, mas que tem o subtítulo de "Terceiras Estórias". Note?se de passagem que há aqui um enigma, apontado por Paulo Rónai em pergunta ao próprio autor: "Por que Terceiras Estórias" se não houve as segundas?". Guimarães Rosa, depois de relatar explicações de outros que já tinha ouvido, acrescentou: "o autor não diz nada". Perguntemos: será que as Terceiras Estórias se designam assim porque são "estórias do Terceiro"? A questão teórica subjacente pode?se colocar nestes termos: o elemento terceiro é sempre o que Hegel designou como síntese? Por vezes é; por vezes não é. De qualquer modo, a história das tríades passa certamente por um permanente confronto com a dialéctica, ou as dialécticas - basta enumerar os pensadores fascinados por tríades para vermos a variedade de figuras que desfilam: Santo Agostinho e mestre Eckhart, Plotino ou São Tomás, Kant, Hegel ou Kierkegaard, Peirce ou Bergson ou Deleuze... E para nos darmos conta de que, não apenas o Terceiro pode ser algo que difere da noção de síntese, como, muitas vezes, é algo que se contrapõe ostensivamente a essa ideia - a partir de uma lógica, ou de uma economia, deliberadamente diferente. Poderia dar um exemplo, ou mesmo dois, ou mesmo três: o Sublime de Kant, o Witz dos românticos alemães, o Inconsciente de Freud.

Leia-se em Guimarães Rosa o texto "Aletria e Hermenêutica" (título onde se rastreia a instância da letra) - prefácio (um dos prefácios, são quatro, como os três mosqueteiros). Aqui Guimarães Rosa propõe-nos, à maneira de Freud, uma série de anedotas a que ele chama, reparem, "anedotas de abstracção". Elas funcionam, como o Witz romântico, como "catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não?prosaico" - "uma anedota é como um fósforo", porque "escancha os planos da lógica, propondo?nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento".

O que mais me interessa nesta proposta é evidentemente o modo como se desfaz -poderíamos dizer "desconstrói"? - "a goma arábica da língua quotidiana ou o círculo-de-giz-de-prender-perú". Mas é sobretudo o modo como uma continuidade se quebra (arde a cabeça do fósforo) sem se quebrar a continuidade maior que nela se ilumina. E daí o acesso a um outro plano - ou plano do Outro (com maiúscula) expresso por Guimarães Rosa nestes termos: "a busca de Deus ou de algum Éden pré?prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais". Fala?se num nada residual, e Guimarães Rosa invoca Bergson: "porque a ideia do objecto 'não existindo' é necessariamente a ideia do objecto 'existindo', acrescida da representação da exclusão desse objecto pela realidade actual tomada em bloco".

Fazendo um inventário de piadas, graças ou anedotas, Guimarães Rosa dá?nos sucessivos exemplos do que os românticos alemães chamaram o Witz, que o autor, sem nunca neles falar, explica deste modo: "por onde, pelo comum, poder?se corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá?los ao sublime; seja daí que seu entrelimite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso ("disjuntivo", teria dito Deleuze), ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso".

São múltiplos os exemplos que o próprio Guimarães Rosa inventa. Assim, ao perguntar: "Os dedos são anéis ausentes?". Reparem: primeiro, os dedos sem anéis; depois, os dedos com anéis; em terceiro lugar, ausência dos anéis restituindo os dedos nus como outros dedos (a continuidade rompeu?se no invisível de uma cerzidura mágica). Ou então Guimarães Rosa conta?nos a estória do homem que, depois de pedir à telefonista várias vezes um número certo, e verificar que ela sempre se engana, pergunta: "Não me pode dar um 'número errado' errado?". Ou esta frase sobressaltada: "Entre Abel e Caim, pulou?se um irmão começado por B". Ou esta frase extasiada: "Há uma rubra ou azul impossibilidade no roxo (e no não roxo)". Ou por fim: "O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber" (espero que a frase se possa aplicar também a esta comunicação).

Em carta a Niethammer, de 24 de Fevereiro de 1796, Hölderlin dizia: "Pretendo encontrar o princípio que me explique as separações nas quais pensamos e existimos, mas que seja também capaz de fazer desaparecer o conflito entre o sujeito e o objecto, entre o nosso eu e o mundo, e mesmo entre a razão e a revelação". No prefácio à penúltima versão do Hyperion, de 1795, Hölderlin havia escrito: "Não teríamos nenhum conhecimento dessa infinita paz, desse ser no sentido único do termo, não nos esforçaríamos para unir a nós a natureza, não pensaríamos e não agiríamos, nada seria em geral (para nós), nós mesmos nada seríamos (para nós), se aquela infinita união, aquele ser, no sentido único do termo, não estivesse presente. Ele está presente - como beleza." E um poema de Hölderlin dá?nos a palavra da síntese e pacificação: "ciência e ternura".

Permito-me sugerir que a paz que nos chega das imagens do velho pai na canoa do rio, ou do rosto silencioso da Moça na sua luz de olhos sem fundo, são pressentimentos desta paz de que fala Hölderlin, e que poderíamos definir deste modo: o lugar onde todas as dívidas se transformam em dádivas. Em relação a Cleonice, esse lugar é o da fórmula que o próprio Hölderlin nos propõe: ciência e ternura. E todos nós, unidos como os anéis do Ion, presos apenas de se tocarem pelo magnetismo do que não há, todos nós, rio abaixo, rio afora, rio adentro, o rio.