Figuras da Lusofonia

Que Faremos com Esta Tradição? Ou: Relíquias da Casa Velha

QUE FAREMOS COM ESTA TRADIÇÃO?
OU: RELÍQUIAS DA CASA VELHA

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio

Dos heróis que cantaste, que restou
Senão a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
Os barões nos jazigos dizem nada.
É teu verso, teu rude e teu suave
Balanço de consoantes e vogais,
Teu ritmo de oceano sofreado
Que os lembra ainda e sempre lembrará.
Tu és a história que narraste, não
O simples narrador. Ela persiste
Mais em teu poema que no tempo neutro,
Universal sepulcro da memória.
Carlos Drummond de Andrade: "História, Coração, Linguagem", in A Paixão Medida

A motivação para o duplo título deste texto talvez pareça óbvio. O primeiro deles remete à peça de teatro de José Saramago (1979); o segundo à coletânea de contos de Machado de Assis (1906). Da peça Que Farei com Este Livro? recorto mais especificamente o oitavo quadro do segundo ato que a encerra, com Luís de Camões recebendo o primeiro exemplar de Os Lusíadas: "(Segurando o livro com as duas mãos) Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende ligeiramente os braços, olha em frente). Que fareis com este livro?" . Ao concluir a trama, o poeta aponta para a abertura de outra trama, indagando o destino histórico e a utilidade daquele que será o livro por excelência da cultura portuguesa. Ao passar da primeira para a segunda pessoa e olhar em frente (como indica a rubrica cênica), Camões interroga a posteridade sobre a recepção de sua epopéia, narrativa de fundação que possibilita inventar uma tradição, quando estabelece o lastro de uma história que - diz o poema de Drummond que nos serve de epígrafe - "persiste/ mais em teu poema que no tempo neutro,/ universal sepulcro da memória" . Do livro de contos de Machado, retenho o título Relíquias de Casa Velha que o escritor brasileiro associa, na "Advertência" que abre o volume, às lembranças que uma casa guarda, as tais relíquias com que metaforiza os inéditos que se tornavam públicos. Livros que falam de livros, ou de casa velha, são-me, aqui, metáforas para nomear uma tradição.

As duas referências, desta maneira, servem-me de mote para formular a questão que me mobiliza para homenagear a Professora Cleonice Berardinelli. Pergunto: o que faremos desta tradição, destas relíquias que recebemos de uma herança portuguesa, por via da história, ou através das lições de D. Cleo, que, conjugando "história, coração, linguagem" (como Drummond vê em Camões), a cultua e a vem transmitindo há já longos anos a muitas gerações? O "nós" indica, em primeira instância desta homenagem, os seus sempre alunos em quem ela imprimiu signos; nós que recebemos, como herança da Professora, uma cultura e uma literatura, de que ela é guardiã e cultivadora no Brasil; nós, que aprendemos com Mário de Andrade que "o passado é lição para se meditar, não para reproduzir" , nós - repito - enquanto continuadores da Professora, prosseguimos o seu trabalho, cuidando para que essa cultura e essa literatura tenham sua força em vigência num além-mar chamado Brasil, apesar das circunstâncias históricas nem sempre favoráveis. Em segunda instância, o nós, plural de sujeitos inseridos em outra cultura, a do Brasil, refere-se aos intelectuais, pensadores, escritores, artistas brasileiros que tiveram de enfrentar o problema da constituição de nossa identidade cultural e questionam, mais fortemente desde o Romantismo, o papel da herança colonial portuguesa na invenção de uma tradição (para usar a expressão de Eric Hobsbawm ) que nos constituiria. O que faremos desta tradição legada pelos portugueses para que possamos criar uma nacionalidade? A pergunta que se agudiza no Modernismo, quando proliferam as interpretações do Brasil, quando se redescobre o Brasil, ganha um novo componente: como tornar o Brasil um país moderno se somos produtos de uma tradição que complica nosso acesso à modernidade? Dotados de consciência histórica que permite saber, para além da afetividade, que somos produtos de uma tradição, esses pensadores podem analisar essa herança e perceber sua continuidade (mesmo que em diferença), ou propor romper com ela, considerando a ruptura como instrumento da razão crítica e assentando a negatividade como traço forte da modernidade.

Dizem os dicionários que a palavra tradição vem do latim traditio, que por sua vez remete ao verbo tradere: entregar, ceder, fazer passar algo a outra pessoa, ou transmitir algo de uma geração a outra. No sentido figurado, designa narrar, contar, ensinar. O verbo tradere relaciona-se ainda com o conhecimento oral e escrito, indicando que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue, é passado, de geração a geração. Assim, estamos instalados numa tradição, inseridos nela, que imprime um signo em nós, a ponto de revelar-se muito difícil desembaraçar-se de suas peias. Assim, através dessa transmissibilidade, dessa continuidade, a tradição, enquanto algo que permanece, é constituída e nos constitui.

Se os discursos produzidos sobre o Brasil durante o período colonial moldaram a percepção sobre a terra e o homem, domesticaram um imaginário e, com o correr do tempo, constituíram uma tradição, espécie de arquivo do passado brasileiro, transmitido de geração em geração, esta tradição acaba criando um problema para os românticos brasileiros. Assegura Antonio Candido , na Formação da Literatura Brasileira, que a proposta de nosso Romantismo era expressar uma nova ordem de sentimentos, que, marcada pelo orgulho patriótico, ressaltava o desejo de criar uma literatura independente que se traduzia na busca de modelos novos, cuja expressão foi o nacionalismo literário. Manifestava-se a consciência da atividade intelectual, não só como prova do valor brasileiro e o esclarecimento mental do país, mas também como tarefa patriótica na construção nacional, quando discutem o processo civilizatório que exige a fundação de nação e do Estado. Na proposta estava implícita a pergunta: que fazer da tradição colonial? Que papel teria esta tradição, quando a meta consistia em sustentar que possuíamos uma cultura autóctone a dar-nos identidade? O esforço romântico buscava, então, exteriorizar o interior, aquilo que dizia respeito ao nosso ser; buscava representar e identificar a nação como algo imanente, isto é, o que apontava para a identidade cultural e a nacionalidade como essência. Indicava tal proposta a recusa do exterior com que até então nos reconhecíamos.

Através dessa proposta ideológica, fundamenta-se o indianismo, maneira natural de traduzir em termos nossos a temática da Idade Média, característica do Romantismo europeu. Ao medievalismo dos franceses e portugueses, opúnhamamos o nosso preconcebido pré-cabralismo - como já se tornou lugar-comum nas histórias canônicas da literatura brasileira. Numa terra onde tudo era ainda conjetural, problemático e conjugado ao futuro, a vontade de afirmar-se projeta-se na invenção de uma tradição através de práticas discursivas de natureza simbólica que visavam a inculcar certos valores através da repetição, o que implicava, automaticamente, uma continuidade (artificial) em relação ao passado histórico apropriado. Essa invenção tem por propósito reagir a uma situação nova e assume a forma de referência a situações anteriores, ou estabelece o seu próprio passado. Sendo essencialmente um processo de formalização, essa tradição inventada atrela-se à transformação ampla do país motivada pela Independência política (1822), que requereu a tarefa patriótica de construir um Estado-nação unificado. A "tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade de nossa consciência nacional, sem lastro de tradições sedimentadas" , segundo a formulação de Augusto Meyer. O trabalho dos românticos, com destaque para José de Alencar, visava justamente a sedimentar as tradições inventadas, formando um lastro a ser legado às gerações vindouras. Esse afirmar-se enquanto síntese do que representaria uma "essência nacional" está atrelado, pois, a um paradoxo: nega-se uma tradição que, ao mesmo tempo, é reinterpretada na tentativa de preencher aquele vazio com narrativas, imagens, idéias que contribuiriam para a formação de mitos fundadores da nacionalidade.

Aqui talvez seja ocioso citar os romances indianistas e de fundação de Alencar que, utilizando elementos antigos na elaboração de nova tradição inventada, segue um movimento cronológico às avessas. O Guarani (1855), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) iluminam, respectivamente, três momentos históricos com os quais o autor pretende estabelecer o mapeamento simbólico da construção da nação: o Brasil histórico dos novos "senhores da terra" e a luta inglória dos índios contra os conquistadores portugueses nos primeiros séculos da colonização; o primeiro encontro de raças e fundação da raça brasileira por ocasião do descobrimento e início da colonização; e a pureza étnica dos tempos pré-cabralinos. As três narrativas ressemantizam essas matérias do passado sob o signo da conciliação, do recalcamento da violência, realçando o elemento autóctone, elevando-o ao nível do português heróico dos tempos da colonização, assinalando o que há de recordar e esquecer na construção histórica da nação.

Sabendo-se que o próprio conceito de nação é um artefato historicamente construído (Benedict Anderson ), o paradoxo apontado (negar uma tradição e reapropriá-la para inventar outra tradição, buscando uma continuidade com o passado) não deixa de salientar o dilema entre a necessidade de delinear-se uma imagem-síntese e as contradições históricas que a negam. A experiência colonial portuguesa no Brasil não contribui para essa busca de unidade, se levarmos em conta as distantes e atomizadas províncias, afinal "unificadas" no período imperial quando se cria o mito da nação brasileira, nos moldes da síntese romântica. Se como apontam Anderson e Renan "o esquecimento também é fator essencial na criação de uma nação", era preciso esquecer toda uma realidade "indesejável" de multiplicidade, de estranhezas mútuas, de conflitos e de afastamentos na elaboração de uma imagem única, totalizante, de uma nação reconciliada. A herança colonial portuguesa é submetida, assim, a um processo de ressemantização a serviço de um discurso ideológico que justifica e funda a jovem nação. Essa perspectiva possibilita também ficcionalizar as contradições da identidade nacional, nos discursos que advogam a fundação como origem e unidade simbólica. Se a nação é também constituída pela narração, como quer Homi Bhabha, a narrativa romântica brasileira, em particular a de feição indianista, propõe uma "comunidade imaginada" (Benedict Anderson) enquanto totalidade estável e a identidade cultural enquanto essência fundadora resultante da conciliação de colonizador e colonizado. Se a pergunta implícita era saber o que fazer da tradição, esta teria de ser necessariamente redimensionada em direção aos discursos que delineiam os contornos imaginários de uma comunidade, sua história, sua origem.

Esse mesmo dilema ganha feições mais dramatizadas entre os modernistas brasileiros. Marcados pelos traços vanguardistas, na busca do novo pelo novo, por uma estética de ruptura, que negava a tradição (o que chamavam pejorativamente de "passadismo"), também eles se colocaram a pergunta-problema quando se propunham a "descobrir" o Brasil, a oferecer interpretações para o país. Como interpretar o passado, vale dizer, a tradição, em função do presente? O que faremos com esta tradição, quando vislumbramos um futuro (utópico) que nos faria entrar na modernidade, superando o atraso que nos atrelava a um mundo velho? Tanto o projeto estético (a necessidade de uma escrita de vanguarda), quanto o ideológico (a necessidade de tornar o Brasil um país moderno, o que passaria infalivelmente pela industrialização e pela urbanização, isto é, o que asseguraria a passagem de país agrário para país industrial-urbano), ou de maneira mais abrangente o projeto cultural, viam a tradição como um problema a ser enfrentado. O que faremos com esta tradição que nos constitui, mas com a qual queremos romper, negá-la criticamente para conquistar e apossar-nos do futuro?

Muitos são os textos - ficcionais, poéticos, ensaísticos, de manifestos, de intervenção - que emblematizam essa atitude e que, ao mesmo tempo, expressam estratégias de identificação cultural, a exemplo do Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, com suas palavras de ordem: "Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres"; "Contra todas as catequeses", "Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas"; "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade". Ou o episódio emblemático de "Vei, a Sol", de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, em que essa representante dos trópicos se vinga do "herói de nossa gente", transformando-o no "brilho inútil das estrelas", por este ter preferido a varina portuguesa, elemento da cultura colonizadora, a uma das filhas de Vei, representante da civilização da luz.

Estes poucos exemplos servem para confirmar a versão canônica veiculada pelas instituições literárias, que privilegia a interpretação do Modernismo pelo viés da destruição, da vanguarda e da ruptura, em detrimento dos valores legados pela tradição. Estão neste caso pensadores como Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda, que se relacionam com as demandas modernizantes do modernismo paulista.

Paulo Prado, aristocrata cosmopolita, herdeiro de uma das famílias mais ilustres de São Paulo e um dos promotores da Semana de Arte Moderna, que descobre o Brasil em Paris (como outros intelectuais de sua classe, antes e depois dele) publicou o ensaio Retrato do Brasil , em 1928, influenciado pelo historiador Capistrano de Abreu e levado pela busca dos elementos que determinam os traços de nossa identidade como nação. Com seu projeto de investigar as origens da nacionalidade, intentava vislumbrar um momento inaugural de autonomia para o país: analisava o passado, a tradição, em função do presente, para programar o futuro. "Entendia o nacionalismo como o processo de tomada de consciência das limitações e virtualidades do corpo social que permitiria - como ele próprio afirma em artigo da revista Terra Roxa e Outras Terras - romper os laços que nos amarravam desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada" - sublinha Carlos Augusto Calil .

Para interpretar o Brasil do seu tempo, Paulo Prado traça o "retrato" sem as tintas do ufanismo e revela as mazelas do país, cujas causas vai buscar na história da formação política, social, racial, moral e cultural da nacionalidade, uma formação defeituosa, doente, que afeta a esfera pública. A visão pessimista detecta o estado do país como resultado dessa doença moral, perigosamente arraigada na tradição e obliterada por uma auto-imagem superestimada, herança do Romantismo. Eis a tese que abre o livro:

Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominaram toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a renascença fizera ressuscitar.

Partindo dessa premissa, o ensaio rastreia as raízes históricas dessa "doença", conseqüência do processo colonizador que leva a um sentimento generalizado de tristeza. Assim, como condicionadoras da adaptabilidade do português aos trópicos, associa cobiça, luxúria e tristeza a outros fatores de nossa formação: a mestiçagem, a preguiça como contrafação da ética do trabalho, o bovarismo e a melancolia que desorganiza a vontade que o Romantismo veio acentuar, o desapego à terra, o desordenado individualismo e a conseqüente não propensão à vida associativa, a hipertrofia do patriotismo indolente, o "vício da imitação" (p. 204). Disso resultou um "corpo mal organizado" que ainda "dorme o seu sono colonial" (p. 210) (as expressões são do autor).

O diagnóstico de Paulo Prado detecta a herança colonial e o que ela forjou em nossa formação como algo que se manifesta no atraso, impedindo o desenvolvimento e o progresso. Chega a propor a solução radical que poderia vir através da Revolução, a própria ruptura em ação a promover a mudança identificada ao progresso como gesto fundador da modernidade. Diz ele: "Força nova que surge como destruidora das velhas civilizações e das quimeras do passado. É a Revolução" (p. 210) (atente-se para um detalhe: o autor não é um pensador marxista). E conclui: "Apesar da aparência de civilização, vivemos assim isolados, cegos e imóveis, dentro da própria mediocridade em que se comprazem governantes e governados. Nesse marasmo podre será necessário fazer tábua rasa para depois cuidar da renovação total". Ao reivindicar um novo começo, o ensaísta está implicitamente respondendo à pergunta: "o que faremos com esta tradição?". Curioso é notar que, ao propor fazer "tábua rasa" de toda uma formação que ele vê negativamente, está, ao fim e ao cabo, sugerindo uma nova "catequese", como aquela outra da colonização, que, numa atitude etnocêntrica, via o índio como tabula rasa. Para Paulo Prado negar a tradição significava outro gesto inaugural, descontínuo, a barrar a permanência e a transmissibilidade. O gesto de ruptura apontava para o ingresso do Brasil no clube dos modernos e progressistas, para quem a tradição legada pela colonização é um empecilho. Na clave das metáforas patológicas e às vezes racistas disseminadas pelo texto, cuja força vem da "poetização" dos fatos, o mundo moderno seria uma manifestação de saúde: a Revolução encarregar-se-ia da higiene.

Talvez se pudesse dizer que o livro do historiador Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil (1936) dá continuidade, em diferença, à interpretação do país empreendida por Paulo Prado, no mesmo diapasão dos modernistas. Para o livro de Sérgio, vale o que ele próprio dissera de Gilberto Freyre: "os valores tradicionais só lhe interessam verdadeiramente como força viva e estimulante, não como programa" . Como afirma Antonio Candido , Raízes do Brasil constitui um ensaio de interpretação da formação brasileira, mas escrito com um olhar preso às tensões contemporâneas (a década de 30). A ótica adotada ancora-se em novos elementos que, a partir daí, se relacionam com nossas identificações, no momento em que os Estados Unidos se apresentam como herdeiros, ou mesmo a encarnação, da idéia de América. Frente a isto que é visto como nova civilização, impunha-se a nossa pergunta-guia: o que faremos da tradição que nos formou, se desejamos ingressar no mundo imaginado como moderno? Para equacionar o problema, o historiador vai buscar as "raízes", os fundamentos do nosso destino histórico, nos modos de ser ou na estrutura social e política, a partir da implantação da cultura européia no Brasil, que se dá em condições estranhas à sua (da Europa) própria tradição, o que redundaria numa vacuidade de um ser nacional marcado pelo signo de desterro. No momento em que o historiador busca nossas "raízes", afirma o nosso desenraizamento: "somos uns desterrados em nossa terra". A investigação, assim, coloca em pauta os modos como nos situamos na tradição européia. Ou nas palavras do autor: "caberia averiguar até que ponto temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e idéias de que somos herdeiros (...) através de uma nação ibérica" (p. 3). E continua mais adiante: "a verdade (...) é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma" (p. 11).

É justamente frente a essa "forma atual de nossa cultura", cujas raízes são investigadas, que cabe a pergunta - o que faremos dessa tradição, no momento em que se agudizam nossas contradições e se pretende formular um projeto moderno para o Brasil. Assim, sistematizando os traços da tradição brasileira que foram herdados, o historiador a vê historicamente formada na colonização que se pautou pelo personalismo tradicional atrelado às formas fracas de organização (associação que implique solidariedade e ordenação), à frouxidão das instituições e à falta de coesão social; pela visão hierárquica e autoritária da sociedade; pela falta de racionalização da vida, o que indica a repulsa da moral fundada no culto ao trabalho sistemático (característico da ética protestante); pela acentuação do afetivo, do irracional, do passional, logo a atrofia das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadas; pela civilização de raízes rurais que permite a autarquia da fazenda, em detrimento das cidades, da res-publica: a entidade privada precede sempre a entidade pública, o que, por sua vez, se conjuga ao patriarcalismo enquanto marca da velha ordem familiar, com o predomínio das vontades particulares que privilegiam os laços afetivos e de sangue, gerando a "cordialidade", marca do caráter brasileiro que ele associa a "condições particulares de nossa vida rural e colonial, que vamos rapidamente superando" (p. 313).

O prolongamento desses traços (aqui redutoramente sintetizados) são rastreados em função de um possível projeto moderno para o Brasil, a ser fundamentado na racionalidade da norma abstrata, na organização da esfera pública, adequada às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo (e não de sua marca pessoal e familiar, das opiniões nascidas na intimidade dos grupos primários - como sublinhou Antonio Candido ), o que implicaria pôr em causa os aspectos retrógrados, patriarcais e paternalistas que se estendem da casa-grande à sociedade como um todo. Frente a esse projeto, o historiador vê a herança da tradição como um entrave à tentativa de modernização racional do país, ainda alimentado pelas "raízes" de sua formação cultural, cujas características são avessas ao fenômeno moderno. A implementação desse projeto requereria a liquidação dessas "raízes" (as linhas tradicionais), em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita.

A proposta de dissolução da ordem tradicional ocasiona, entretanto, contradições não resolvidas, impondo um impasse: como liquidar as raízes culturais, se elas constituem uma "essência" que vem da origem? O impasse, então, coloca na encruzilhada dois tipos de cultura, duas alternativas mutuamente excludentes. O que se torna mais produtivo, porém, para o historiador é investigar uma outra perspectiva que contemple o próprio trânsito cultural, para ler o transplante da cultura européia, e portuguesa mais especificamente, e sua adaptação ao solo americano. O olhar crítico então escolhe veredas que possibilitem o apelo à tradição de fronteira como abertura à diferença e ao deslocamento, como estratégia para esfacelar uma posição fixa e essencialista, reivindicando pensar a dimensão do estranhamento entre culturas como algo constitutivo da identidade polifônica. É relendo a formação histórica de nossa cultura, é relendo a tradição, que ele busca em textos recolhidos em Caminhos e Fronteiras (1957), escritos entre os anos 30 e 40, desenhar identidades polifônicas oriundas da aventura colonial .

Se Sérgio Buarque propõe, contudo, em Raízes do Brasil, a superação de traços da herança ibérica, como condição para construir uma nação moderna, em contrapartida Gilberto Freyre inscreve-se num tipo de modernismo conservador que relê a tradição por uma clave altamente positiva, buscando contribuir para uma modernidade que não se funda na idéia de progresso. Em Casa-grande & Senzala (1933) , escreve o elogio da colonização portuguesa, ressaltando as vantagens da miscigenação, numa leitura eufórica do tipo de sociedade resultante da ação plástica e flexível do colonizador, que gera, segundo ele, uma "democratização social". Buscando em nossas características congênitas, oriundas da matriz lusitana, uma capacidade de acolher formas dissonantes, o sociólogo pernambucano condensa com a idéia de "plasticidade" as três características - mobilidade, miscibilidade e aclimatabilidade - que foram as condições para a expansão ultramarina portuguesa. Nas palavras de Ricardo Benzaquem Araújo, da miscigenação à plasticidade, a argumentação de Freyre "reforça aquela visão idílica da colonização portuguesa no Brasil, sustentada justamente pelo descarte dos conflitos e pela ênfase na adaptação, na tolerância recíproca e no intercâmbio - principalmente - sexual" . No dizer do historiador Evaldo Cabral de Mello, até os anos 30 deste século, a ideologia "nacional" (as aspas são dele) esbarrava sempre no pessimismo racial e nos ônus da colonização portuguesa. A partir dessa data, acrescenta, "o Brasil transitou do pessimismo entranhado à euforia irresponsável acerca do futuro nacional. Parte desta mudança de clima mental, deveu-se a Casa-grande & Senzala, obra que transformou a miscigenação e a colonização portuguesa, de passivos em ativos da história brasileira" .

Essa transformação de passivo a ativo da história brasileira, no balanço das visões ideológicas que atravessaram o nosso modernismo, o elogio da colonização portuguesa, ainda que em outro tipo de diapasão diferente do de Gilberto Freyre, é articulado na obra tardia de Oswald de Andrade, quando, depois de romper com o Partido Comunista, em 1945, retoma idéias suas dos anos 20, em particular a Antropofagia. Na série de artigos publicados em 1953, no jornal O Estado de S. Paulo, reunidos sob o título de A Marcha das Utopias , discorre sobre o ciclo histórico do pensamento utópico gestado a partir da descoberta da América. O principal alvo crítico é a mentalidade capitalista, associada à ética protestante. A ênfase não recai nos males da civilização cristã, de modo abrangente, nem nos efeitos repressivos da colonização portuguesa, como acontecia no manifesto de 1928 , que, sob as influências das vanguardas, pressupunha o contato com o estrangeiro, que seria "devorado e metabolizado" culturalmente, pois se não há nenhum interior prévio, nenhuma essência particular suficientemente forte para nos constituir, era necessário interiorizar o exterior em termos de formação cultural . Na retomada dessas idéias, a série A Marcha das Utopias, em sua revisão crítica, rejeita a mentalidade que se sedimenta com a Reforma, para valorizar, em contrapartida, o que nos chegou pela via da Contra-Reforma: a atitude plástica, compreensiva e aberta dos jesuítas, que já era fruto da miscigenação, que o português colonizador já trazia de sua formação híbrida. Ao vencer os holandeses (fato histórico que Oswald elege como marco referencial), o Brasil, através dos portugueses, rejeitaria a cultura racionalista e pragmática que marca a modernidade ocidental, ressaltando o iberismo de uma América que, portadora de uma matriz cultural pré-moderna intocada pela Reforma e pela Revolução Científica, preservou elementos de comunitarismo, de organicidade e de encantamento capazes de construir alternativa ao impasse do mundo anglo-saxão . Assim, reabilitando aspectos da nossa colonização, eclipsa a história interna no que corresponde a uma corrida atrás das conquistas e dos valores do mundo moderno nascido com a Reforma, e, assim, eclipsa, também, a idéia de atraso, o que possibilita tirar vantagens da noção de multiplicidade e simultaneidade temporal que nos caracterizaria, apontando sugestões de a cultura colonizada exercer um papel ativo para assinalar sua diferença. O ritual antropofágico da cultura brasileira instalado na transgressão ao modelo abre-se para a utopia que Oswald denomina "o matriarcado de Pindorama", o mundo do ócio contra o negócio, com a afirmação do "bárbaro tecnizado".

As contradições entre ruptura e tradição que, em largos traços, rastreamos até aqui, configuram, pois, o perfil do movimento modernista que, ao mesmo tempo, se ligava ao modelo de país politicamente ancorado no projeto de modernização autoritária e elitista. As leituras do movimento, entretanto, até pouco tempo, privilegiaram o viés da renovação estética sob o signo do experimento revolucionário e da vanguarda, em detrimento dos valores legados pela tradição. Levar em conta essa contradição permite recuperar as tensões que possibilitam depreender daí outros sentidos, ampliando as versões canônicas.

Nesta ótica, "o duplo caráter desse processo pode ser percebido na figura de Mário de Andrade e sua dupla posição diante do passado: utiliza-se tanto do mecanismo de 'traição da memória' como estratégia para apagar os rastros e esquecer lições herdadas da tradição, como revitalizar a memória dessa tradição, ao se empenhar na luta de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Como intelectual e homem público, colabora no Departamento Cultural do Município de São Paulo, no Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Capanema, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, elabora projetos e procura restaurar a 'fraca' memória do país" .

Nesta linha é que, a partir da viagem a Minas Gerais, em 1924, junto com a caravana modernista, que acompanha Blaise Cendrars na visita às cidades históricas, lança-se na construção de um retrato do Brasil que repercutirá na convivência do novo com o velho, com o barroco mineiro, ao mesmo tempo que traz a marca da tradição de herança portuguesa aqui miscigenada e do exotismo. Consegue associar o barroco mineiro, a tradição da arte brasileira, com a vanguarda européia, não mais representada pelo cubismo francês, mas pelo expressionismo alemão, criando uma terceira via configurada pelo paradoxo entre culturas .

Com o desenvolvimento do trabalho de intelectual e de artista, Mário busca a atualização do projeto moderno de construção da memória nacional pelo mapeamento das relíquias da velha casa nacional e da sistematização de um pensamento crítico brasileiro. Alargando o sentido de tradição para englobar não só a herança portuguesa, mas também o patrimônio brasileiro erudito e popular, vale para ele o que disse em carta de 1924 a Drummond: "Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la" .

A obra polimórfica e imensa de Mário de Andrade ajuda a perceber a permanência do discurso da tradição no modernismo que a revisão crítica dos ciclos de interpretação do movimento deixa ver, para além do ângulo de visão da vanguarda . É possível, então, perceber que já havia um lastro de tradição sedimentada que muitos modernistas vieram reciclar, reativando suas forças ainda vigentes, apesar das radicais palavras de ordem ao contrário. Assim, Manuel Bandeira, que afirma sua "libertinagem" poética com "basta" e com "estou farto" da tradição e grita "não quero mais saber do lirismo que não é libertação" (ver o poema "Poética"), alia, contraditoriamente, no correr de sua longa obra, os gestos de ruptura com a realocação dos traços da tradição do lirismo luso-brasileiro. Ou Vinicius de Moraes dialogando com o Camões lírico no seu Livro de Sonetos (1957). Ou Drummond, que, em atitude de homenagem, revisita o canto X de Os Lusíadas no poema "A Máquina do Mundo" (de Claro Enigma, de 1951), que lhe é revelada na "estrada de Minas, pedregosa". Ou João Cabral de Melo Neto que, em Morte e Vida Severina (1956), retoma a forma do auto medieval que fincou raízes no Nordeste brasileiro, para construir seu "Auto de Natal pernambucano", em que resgata o sentido original do ritual cristão, através do mergulho na realidade nordestina, mas, ao reciclar uma forma teatral que a tradição nos legou, põe todo esse lastro a favor de um projeto da modernidade, que aponta para a colonização do futuro (a expressão é de Octavio Paz) pela superação das condições negativas do presente. Negando o mundo da morte associado à condição severina, o poema a desnaturaliza e a mostra como histórica, produto das contingências sócio-econômicas; como tal, não permanente, possível de ser superada, quando o homem se torna sujeito da história.

Essa pequena mostra é apenas exemplificativa. A ela poderíamos acrescentar a permanência da tradição da literatura portuguesa na obra de Jorge de Lima, Murilo Mendes, ou Cecília Meireles.

A herança cultural a nós legada pela Professora Cleonice Berardinelli, funciona como lastro, estratégia ou cabedal que possibilita ler como a tradição circula, com o jogo intertextual, que se processa no diálogo fecundo entre a literatura portuguesa e a literatura brasileira. Voltar à pergunta "que faremos com esta tradição?", hoje, nos serve, ao mesmo tempo, para perceber a debilitação dos esquemas cristalizados de "unidade" e de "autenticidade", quando se sabe que, longe de ser uma construção nacional, a cultura configura-se cada vez mais como um processo de montagem multicultural, como atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade estão perdendo importância diante do caráter transnacional das tecnologias e do consumo de mensagens e produtos simbólicos. A tradição herdada e transmitida não pode mais assegurar a homogeneidade da cultura nacional, mas pode ser ressemantizada, reciclada pelas operações de transação cultural.

Nestes tempos em que "Iracema voou para a América" - como diz a recente canção de Chico Buarque, é impositivo e salutar reconhecer que as lições de D. Cleo nos dão instrumentos para ouvir o eco das palavras antigas, as tais relíquias da velha casa portuguesa. Ela, nossa Mestra, é também a história que narrou, não o simples narrador, como Drummond disse de Camões. A irmanar-nos, Mestra e discípulos, a cultura portuguesa e a cultura brasileira, há uma tradição: "história, coração, linguagem", título do poema que serve aqui de epígrafe. À Professora Cleonice Berardinelli cabe ainda esta outra iluminação com que o mesmo Drummond saúda o Poeta: "Luís de ouro vazando intensa luz/ Por sobre as ondas altas dos vocábulos" .