Eneida Leal Cunha
Universidade Federal da Bahia
Gosto de sentir a minha língua roçar
a língua de Luís de Camões
Caetano VelosoO meu país não é a minha língua,
mas levá-la-ei para aquele que encontrar.
Maria Gabriela Llansol
Nesta fala lusófona convivem muitos, em que pese a firmeza de seu centro. Aliás, é mesmo a tensão entre uma centralidade resistente e histórias que são órbitas, em tempos diversos, o objeto principal deste ato de fala, sobre "figuras" da Lusofonia. É também este texto uma homenagem, um depoimento e um transitar entre macro e micro histórias sobre como tornar-se - ou sobre como podemos tornamo-nos - lusófonos.
Entre a homenagem e o depoimento, começo declarando que, ao contrário de muitos aqui, esta é a primeira vez que experimento a honra e a alegria de, em presença, fruir e fazer refluir o conhecimento doado por Cleonice Berardinelli. A alegria e - por que não o dizer? - o breve temor que sempre nos invade quando palavras lidas reaparecem acompanhadas de voz, corpo e rosto, da figura humana - em presença - que as pensou e escreveu.
Não fui aluna de Cleonice Berardinelli. Talvez porque tenha chegado à PUC do Rio de Janeiro em um dos breves intervalos, naquela casa, de seus muitos anos de docência. Talvez porque até o início da década de 80, a Literatura Portuguesa tenha sido, para mim, apenas aquele item obrigatório que compõe o currículo dos estudantes de Letras Vernáculas no Brasil - obrigatório, mas ainda assim, à época, questionado pelo ímpeto de uma brasilidade fundada em 1922. Talvez porque o curso oferecido pelo Jorge da Silveira àquele ano de 1986 na PUC, sobre "A mais estrangeira das literaturas", parecesse, por seu título, mais adequado ao meu desconhecimento.
A minha tardia iniciação na Literatura Portuguesa teve, em seu benefício, a assistência da palavra daqueles que julgo o que há de melhor em duas gerações de professores brasileiros: Jorge da Silveira, mais próximo, a desafiar-me em suas aulas; Cleonice Berardinelli, a distância, protegendo-me com a lucidez generosa de seus escritos.
Jorge da Silveira a seduzir-me com a apresentação de romances portugueses contemporâneos, a inquietar-me com a exposição dos veios intertextuais por onde fluíam versos e imagens da "clareira tutelar", de Os Lusíadas, confrontava-me com a autoreferencialidade intensa que, penso, é um modo peculiar de existência dos textos portugueses.
Cleonice Berardinelli, nos seus Estudos Camonianos, apontou-me mais que um viés, uma abertura para penetrar n'Os Lusíadas. Entre os estudos camonianos então lidos, o primeiro - "Os Excursos do Poeta n'Os Lusíadas" - teve o poder de transportar-me desde o estranhamento provocado por aquela palavra inicial, tão pouco usada, à mais prazerosa familiaridade, fraternidade mesmo, eu diria, com as vozes, ou o fingimento das muitas vozes do Poeta.
Naquele ensaio, Cleonice Berardinelli inicia a leitura da epopéia camoniana valendo-se de operadores analíticos privilegiados aos anos 70, as funções referencial e poética da linguagem, conforme Roman Jakobson:
Uma epopéia é basicamente uma narrativa, e como tal importa o que nela se narra: o contexto, a matéria épica. Se, porém, ela atinge um nível de literariedade que a torna digna de permanecer, é porque o acento foi posto na mensagem propriamente dita.
O "acento na mensagem" é lido na freqüente intervenção dos excursos, nas "reflexões, exortações, queixas - explícita ou implicitamente expressos na primeira pessoa pelo Poeta" . Mais ainda, na mutabilidade - ou na duplicidade, como quer a autora - de pontos de vista expressos através desses excursos. Lendo Os Lusíadas como um texto "não uno", que repousa "sobre uma ideologia dupla", Cleonice flagra a "ambigüidade que enriquece o poema". Ou ainda, chega a
[..] uma das razões da grandeza do poema, que, à medida que se faz, questiona não somente o contexto que utiliza, mas o próprio enunciado que consagra esse contexto. A matéria épica, apesar da visão crítica do poeta, apesar das tremendas acusações do Velho do Restelo, permanece válida, mas não indiscutida: há pelo menos duas verdades possíveis. Serão por isso Os Lusíadas menos epopéia que a Odisséia ou a Eneida? Nem menos, nem mais. Os Lusíadas são a epopéia de novos tempos, tempos contraditórios. Alimentado de tais contradições o poema adquire modernidade e se afirma como a única epopéia representativa do Renascimento europeu.
Em outro texto, sobre "A Estrutura d'Os Lusíadas" , Cleonice Berardinelli volta a insistir no mesmo aspecto, retoma a leitura anterior e reafirma que a grande inovação da epopéia camoniana está nos excursos, nas reflexões sobre a história, o poema e a própria vida e missão do poeta, que "questiona até mesmo os heróis que canta". São esses excursos que tornam o poema "portador de uma 'bissemia' altamente significativa" .
Nós, professores, investigadores e críticos literários, não estamos imunes às angústias da influência, e quando vamos integrar uma comunidade de leitores de algum grande texto, somos compelidos a escolher entre duas alternativas: ou a instauração de uma ruptura, pelo contraste e pelo conflito, que diferenciará a nossa leitura de leituras precedentes; ou a opção pela continuidade, que nos faz levar adiante, ampliado ou deslocado, o alcance de uma boa sugestão interpretativa, recebida de um leitor anterior. Aprendendo a ler Os Lusíadas àquela altura, eu não lograria sequer verossimilhança, se tentasse empreender o primeiro caminho; mas bem poderia, como parte de uma geração formada para acentuar a natureza "aberta" das obras, para cultivá-las como incessantemente "re-escrevíveis", ter lido Os Lusíadas, ampliando a "bissemia" e a "duplicidade" detectadas por Cleonice Berardinelli na epopéia, para transformá-las no grandioso lugar-comum da polissemia do signo literário.
Não foi esse, entretanto, o meu percurso. Preferi um modo de vincular-me à tradição que Cleonice representava, radicalizando a "bissemia" flagrada, mesmo correndo o alto risco de, à primeira vista, soar a ouvidos meus contemporâneos como uma perspectiva reducionista. Quis ler n'Os Lusíadas, rigorosamente, a exacerbação da estrutura binária que ela apontava, a qual, a meu ver, tinha o poder de esvaziá-lo do compromisso com a função representacional, em relação ao seu contexto histórico ou, como diz Cleonice, ao seu referente, à matéria narrada.
Ao percorrer os versos d'Os Lusíadas com essa inspiração, encontrei a pequenez mesquinha e a grandeza heróica, o peito assinalado e o seio ferido, o sonho pragmático de D. Manuel e a viagem ideal dos segundos argonautas, a conquista do comércio e a dilatação da fé, a ambição desenfreada e a humildade religiosa, a missão cristã e a assistência dos deuses pagãos, a coragem e a debilidade de reis e guerreiros lusos, a contingência histórica e o desígnio divino.
Fora dos domínios do narrado, falavam-me também n'Os Lusíadas as vozes que faziam a exaltação e a condenação da conquista; ocupavam-se tanto da adesão entusiasta à causa e à casa portuguesa, como da crítica dura e sofrida à mediocridade dos espíritos e à corrupção desenfreada da sociedade; enalteciam a aventura e a audácia dos homens jovens, ao mesmo tempo que valorizavam a experiência sedentária e a sabedoria do homem velho; por fim, vozes que transitavam desde a euforia do canto até o desencanto das últimas estrofes do poema.
Mas, para além de perceber ou arrolar a multiplicidade dos conteúdos narrados e das emissões que comentam a empresa épica e poética, interessou-me o jogo relacional desses elementos que compõem a estrutura textual. Da combinatória formal de contrastes e de contradições, resultava, a meus olhos, muito mais do que a impossibilidade de um sentido último ou estável para o poema. Ao aproximar e articular contrários, numa composição paradoxal, pude ler, n'Os Lusíadas, a interdição da univocidade, pude lê-lo como um gerador eficaz de pluralidades, de valores e de sentidos, como uma obra, diríamos nós hoje, virtual, cuja potencialidade semântica extraordinária - como diria Mukarovsky - resiste às diferenciadas contextualizações históricas, culturais e estéticas que atravessa há quase cinco séculos.
A leitura da epopéia camoniana concedendo atenção privilegiada aos excursos, como aprendi com Cleonice Berardinelli, contornou a minha recusa em aceitar a posição central d'Os Lusíadas na textualidade portuguesa como a paralisação em um tempo e glória pretéritos, como continuidade indiferenciada ou repetição do Mesmo - da "essência" ou da "alma portuguesa", como muitas vezes ouvira. Eu, não portuguesa, precisava compreender em diferença, nietzschianamente, o "eterno retorno português" àqueles versos. A leitura da épica camoniana fazendo-a ultrapassar - e extravasar - os limites da tradição imperial, onde até então, para mim, estivera, instigou-me também a repensar a mim mesma, revendo as circunstâncias histórico-culturais e imaginárias da produção da brasilidade.
Passados mais de dez anos, nesta homenagem a Cleonice Berardinelli, volto a Os Lusíadas e aos excursos em busca de uma outra coisa. Não se trata mais de compreender Portugal, como fiz num texto sintomaticamente intitulado "As Malhas que o Império Tece", escrito em 1989; já não se trata, também, de reinterpretar, a partir de Os Lusíadas, a fundação do imaginário brasileiro, móvel principal da minha tese de doutoramento, de 1993. Trata-se sim, nesta circunstância contemporânea que nos absorve e intriga, de tentar apreender algumas das muitas significações difusas e das várias vontades conflitantes que hoje se nos expõem na insistência de uma palavra, quase tornada o multivalente signo da nossa convivência atual: Lusofonia.
A Lusofonia da qual nos falam tanto os discursos oficiais, a programática da política externa e das políticas culturais do governo português hoje, quanto, em perspectiva antagônica, a Lusofonia que ouvimos nas vozes dos migrantes atuais, que confrontam a institucionalidade portuguesa. O apelo à Lusofonia que leio, por exemplo, nas páginas de um pequeno jornal intitulado Sabiá, o qual se quer porta-voz das diásporas mais audíveis em Portugal, cujos sujeitos são cidadãos brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, da Guiné Bissau, de São Tomé e Príncipe, em suas vivências desterritorializadas.
Talvez para a institucionalidade portuguesa, a Lusofonia signifique uma possibilidade de redimensionar-se e de atenuar a difícil existência semi-periférica - como querem alguns - do Estado Nacional Português no interior da globalizada União Européia, assegurando alguma centralidade a Portugal em um outro recorte - em um outro bloco econômico e cultural - da geopolítica contemporânea.
Do outro extremo, as populações transmigradas, indivíduos entre a antiga metrópole e as ex-colônias, quando se apresentam como Lusófonos, recorrem aos contornos do antigo império e evocam a sua velha companheira - a língua - para refazerem nexos de pertencimento que recobrem as nacionalidades de origem, com a ênfase nessa componente mais estritamente simbólica. Para esses, a reiteração da Lusofonia como estratégia de resistência e base para reivindicação de direitos em território português parece ser, como diriam os textos seiscentistas, uma ação "dos contrários".
Mas a ênfase na língua comum - somos todos Lusófonos - não neutraliza o fato de que já não conseguimos, por exemplo, dispensar a distância crítica das aspas, quando referirmo-nos aos laços de familiaridade com Portugal que deram forma ao imaginário nacional nosso, brasileiro, como uma "retórica da fraternidade". A ênfase na língua comum não atenua nem faz cessarem, para os agentes diplomáticos da CPLP, por exemplo, os dilemas que afloram quando a matéria em pauta é o acordo ortográfico. A certeza na língua comum não contradiz a experiência de expatriação da imigrante brasileira em Lisboa, Isis Alves da Silva, que escreve: "Afinal, é justamente quando abrimos a boca que a nossa condição de 'expatriados' se revela" . A língua comum é, na maioria das vezes, o lugar onde de imediato se expõem as diferenças entre portugueses, brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos etc. - e é do estranhamento dentro da própria língua, oficialmente compartilhada, que nasce a certeza de sermos diversos e estrangeiros uns para os outros, embora tenhamos algo em comum, algo que, parece-me, desejamos preservar como uma grandeza inefável.
As identidades nacionais modernas já foram descritas como "tradições inventadas" (por Eric Hobsbawm), "comunidades imaginadas" (por Benedict Anderson), "artefatos lingüísticos" (por Immanuel Wallerstein), "ficções credíveis" (por Wallace Stevens), ou "etnicidades fictícias" (por Etienne Balibar). Em quase todas essas formulações analíticas dos processos de configuração dos Estados-Nação ressalta, como requisito para sua existência eficaz, a interiorização socializada das imagens instituintes da nacionalidade, organizadas pelas narrativas que as articulam e lhes dão forma.
Nas reconfigurações de identidades e pertencimentos que se processam atualmente, nesta contemporaneidade transnacionalizada, dispensa-se o estatuto de uma ficção coercitiva e homogeneizadora, sempre empenhada em assegurar o poder encantatório do "como se" fôssemos todos unos. Buscam-se contemporaneamente constructos identitários abertos, negociáveis e negociados entre diferentes etnicidades, culturas, tradições, comunidades e falas, que estão a partilhar territórios reais ou vias virtuais.
Mas, como as modernas identidades nacionais, as reconfigurações identitárias pós-nacionais que se dão em nosso tempo não podem dispensar uma referência primordial a uma narrativa que as organize. Contra as expectativas mais ideologica ou historicamente marcadas, talvez seja n'Os Lusíadas, quando lido ao modo bissêmico e neutral indiciado por Cleonice Berardinelli, que poderemos encontrar - ainda uma vez - uma narrativa de origem que nos comporte - a nós, antiga metrópole e antigas colônias, que esta é a referência pretérita e inelutável -, a nós, todos, diferenciados, conflitantes e recentes lusófonos.
A Lusofonia pode amparar-nos e aludir ao partilhamento da herança camoniana apenas quando compreendemos Os Lusíadas, a "nossa intrínseca e gloriosa ficção", como "sinfonia e requiem" do antigo império - como afirma Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade, em um trecho transcrito por Cleonice Berardinelli nas suas considerações sobre as intertextualidades entre o poema épico de Camões e os ambíguos versos da Mensagem, de Fernando Pessoa.
Pois a Lusofonia, penso, é muito mais do que o plasmado no "esboço de definição", proposto por Fernando Cristóvão, em "A Língua Portuguesa, a União Européia, a Lusofonia e a Interfonia" - ou seja, é mais do que "um sistema de comunicação lingüístico e cultural na Língua Portuguesa", capaz de abarcar as "variedades lingüísticas, geográficas e sociais, pertencentes a vários povos de que ela é instrumento de expressão materna ou oficial" .
A Lusofonia também não equivale à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", pois tensões e conflitos de interesses, antigos e atuais, e ainda muito desconhecimento recíproco fazem-nos suspeitar da continuidade cultural ou civilizacional pressuposta na palavra 'comunidade'. A Lusofonia, ao contrário, pede palavras que reproduzam a experiência da descontinuidade - "pontes", "figuras", "plataformas", "convergências" - bem como a deliberação de reconstruir, reinventar nexos.
A Lusofonia hoje é um modo de com-viver, que requer a aprendizagem de ampla tolerância para com o Outro; exige apreço pela diversidade das falas, das culturas e dos desejos que se expressam na Língua que, por direitos de ancestralidade, é Portuguesa, mas já não é pátria, é pacto de convivência.
Ser Lusófono não é uma prerrogativa natural dos falantes de Língua Portuguesa, mas é possível - e necessário, mesmo urgente - aprender a sê-lo. Parte dessa aprendizagem também podemos fazer através da leitura dos textos escritos por Cleonice Berardinelli, os quais delicadamente divergem, desviam-se da tradição lida em busca de seu próprio caminho, rigorosamente submetidos a uma ética e a uma fraternidade intelectual. Mais pontualmente ainda, podemos tornarmo-nos Lusófonos apreendendo o significado maior de sua insistência no valor dos excursos na epopéia camoniana.
Os dicionários nos ensinam que excurso significa digressão, divagação, desvio - do tema ou assunto principal. Para a Física - a ciência que acreditamos mais exata do que as nossas -, excurso é o caminho que descreve um corpo afastado de seu ponto de repouso para voltar a esse mesmo ponto.
Assim é o modo de tornar-se, hoje, Lusófono: existir e estar dentro desta língua portuguesa e da tradição lusíada como "convivente" - palavra usada por Cleonice Berardinelli -, refazendo-as, como excursos: construir o próprio caminho, a individual história, a diversa sensibilidade, a singular fala, sem esquecer que
Tudo é incerto [...]
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Notas: