O Renascimento, retomando os gêneros clássicos, revaloriza a epopéia e excita nos poetas o desejo de realizá-la. Em Portugal, esse desejo é exacerbado pela consciência de haver o seu povo criado a matéria épica que urgia cantar. Os poetas se estimulam reciprocamente a empreender a tarefa, sabendo-se cada qual sem talento para fazer soar a "tuba canora e belicosa" (Lus.,I, 5). Luís Vaz de Camões, que até então só empunhara a "agreste avena ou frauta ruda" (Ibid.), irá embocá-la, criando o maior poema épico dos tempos modernos.
Os Lusíadas são o poema dos descobrimentos, do desvendamento dos mares e das terras, e da afirmação do poder do homem sobre os elementos, mas também da reafirmação dos valores cavaleirescos caracteristicamente medievais. Essa coexistência de valores se deve aos dois tempos principais em que decorrem as narrativas que se encaixam, formando o poema: o tempo presente, da viagem à Índia; o tempo passado, da história de Portugal; e não se esqueça ainda o tempo futuro, previsto pelas profecias.
Poema da época clássica, Os Lusíadas se compõem de dez cantos; a estrofe neles utilizada é a oitava real (ou oitava rima), de versos decassílabos dispostos segundo o esquema rímico abababcc. À imitação dos poemas homéricos e do vergiliano, Os Lusíadas começam por uma proposição, em que se declara o tema e se apresenta o herói, ou melhor, os heróis, "os barões assinalados" (I, 1) que incluem navegadores, soldados, colonizadores, reis, enfim todos que "se vão da lei da Morte libertando" (I, 2). Feita a Proposição, o Poeta invoca as Tágides e dedica o poema a D. Sebastião, equiparado aos deuses. É então que começa a narrativa da viagem ("in medias res", como preceituava Horácio) que será interrompida em Melinde, onde a palavra será dada a Vasco da Gama para narrar ao rei a história de Portugal, das origens até ao reinado de D. Manuel, e o início da viagem até ao ponto em que o primeiro narrador a começara no canto I. Este retoma a narrativa para relatar a continuação da viagem, interrompendo-se algumas vezes para fazer falar ora um personagem como Paulo da Gama, que voltará ao passado histórico, ora os que prevêem o futuro - a ninfa da Ilha dos Amores ou Tethys, Júpiter ou o Adamastor.
Se a viagem constitui o núcleo narrativo do poema, a história não pode ser dele excluída como aparato supérfluo, pois que funciona como fase de preparação, adestramento, enrijamento do espírito dos homens que serão capazes de cometer "O duvidoso mar num lenho leve" (I, 27). O Poeta prometeu cantar apenas façanhas verdadeiras, "tamanhas, / Que excedem as sonhadas, fabulosas" (I, 11) e cumprirá sua palavra, descrevendo batalhas - Ourique, Salado, Aljubarrota -, mostrando exemplos de heróica lealdade, de bravura, de justiça, de capacidade de sofrer, mas também - raros, é verdade - de injustiça e deslealdade.
Narrando a viagem, descreve o fogo de Santelmo, a tromba marinha, o escorbuto, as tempestades. Uma destas - a primeira - explica de modo verossímil o surgimento e a desaparição do mais original dos mitos criados no poema, o Adamastor, o gigante de duas faces - guardador temível do cabo das Tormentas, lançando maldições e profetizando desgraças, e amante infeliz de Tétis, chorando a sua desgraça.
A verdade do narrador histórico não exclui a "mentira" da mitologia, pois que esta funciona como elemento estruturador e decorativo indispensável dentro da mentalidade da época, contendo, em seu nível, a sua verdade. Assim, duas ações correm paralelas durante a viagem: a dos navegadores e a dos deuses. E somos levados pelo narrador ao alto Olimpo ou ao profundo palácio de Netuno, onde deusas e ninfas nos são descritas em esplêndida nudez que, no encontro de Vênus e Júpiter, é utilizada como elemento de sedução intensamente erótica. Tal realização acentuadamente pagã, só possível no plano mitológico, não atingido pela moral cristã, permitiu a Camões, e só a ele em Portugal, incorporar a sua obra mais essa faceta renascentista.
No plano divino, Baco arma ciladas aos portugueses, enquanto Vênus e as ninfas as destroem uma a uma; no plano dos homens, a perseguição e a proteção dos deuses lhes surgem como fenômenos da natureza ou reações humanas. Apenas na Ilha dos Amores, que é o prêmio concedido por Vênus a seus protegidos de volta à pátria, encontram-se os dois planos: deusas e homens confraternizam e amam-se, dando origem a "progênie forte e bela" (IX, 42), a afirmar o domínio do amor no mundo. Descrita a beleza incomparável da ilha - perfeito locus amoenus renascentista -, a sensualidade pagã dos encontros amorosos, o esplêndido aparato do banquete; apresentada e explicada por Thetys a máquina do mundo; previsto pela ninfa o futuro de Portugal (já passado em relação à feitura do poema), retomadas as naus para o regresso à Pátria, cala-se o narrador, mas o Poeta retoma a palavra para de novo dirigir-se a D. Sebastião, encerrando o poema. Se confrontarmos este epílogo com a Dedicatória, veremos que é nítida a diferença de tom entre ambos: os louvores inexcedíveis deram lugar ao conselho prudente; a promessa incondicional de cantar o rei é retomada sob condição: se "o vosso peito / Dina empresa tomar de ser cantada" (X, 155).
É, pois, o Poeta que, no início e fim do poema, como em muitas outras passagens constituídas de reflexões, queixas, exortações e críticas, na primeira pessoa do singular, se revela dando à sua epopéia um caráter pessoal, uma visão subjetiva que também se encontra em outros poemas épicos do Renascimento, constituindo o aspecto mais heterodoxo e mais válido da epopéia moderna. Com essa prevalência da enunciação, o autor questiona não somente o contexto que utiliza, como o enunciado que o fixa, afirmando a sua liberdade de juízo que se permite ao mesmo tempo valorizar e criticar um acontecimento, apontando para mais de uma verdade possível. Dentro dessa ambigüidade é que se pode entender que o poema épico, escrito para louvar os feitos heróicos do povo lusíada e, mais que todos, os dos navegantes que "Novos mundos ao mundo irão mostrando" (II, 45), contenha um personagem como o Velho do Restelo, cuja única função é contestar a validade do que se está cantando e isso com argumentos dificilmente refutáveis.
Epopéia de novos tempos, tempos contraditórios, Os Lusíadas adquirem modernidade e se afirmam como a grande epopéia do Renascimento europeu.
Principais edições:
A 1a edição de Os Lusíadas é de 1572, impressa por Antônio Álvares; a 2a edição sai, em 1584, da oficina de Manuel Lira: é a chamada edição dos Piscos, bastante alterada pela Inquisição. Há uma outra edição datada de 1572, e tão semelhante à 1a, que só no século XVII Faria e Sousa se deu conta de sua existência. As diferenças mais imediatamente visíveis são: a posição da portada da folha de rosto - o pelicano com o bico voltado para a esquerda do leitor na que hoje se considera a princeps e em posição contrária na outra - e o sétimo verso da primeira estrofe do poema: "E entre gente remota edificaram", na 1a, e "Entre gente remota edificaram" na outra, o que as fez abreviar em Ee e E, enquanto que a de 1584 se abrevia em P. A opinião mais aceita hoje é a de que E tenha sido impressa por Manuel Lira em 1584, juntamente com P (alterada e amputada e, pois, insatisfatória), na esperança, realizada como se viu, de que passasse despercebida. De 1584 a 1669 saíram catorze edições d'Os Lusíadas, que reproduziram ora Ee, ora E, ora a ambas. Das edições do século XX, as mais recomendáveis são: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, commentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias, 2. ed. melhorada, Porto, Cia. Portugueza Editora., 1916 - 1918. 2 vol. (há uma reprodução fac-similada editada pelo MEC, 1972); CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, com um prefácio de Carolina Michaëlis de Vasconcellos e notas de José Maria Rodrigues. Lisboa: Imprensa Nacional, [1931]; CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. In: ----. Obras completas, vol. IV e V, com prefácio e notas de Hernâni Cidade, 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1956; CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, edição organizada por Emanuel Paulo Ramos, 5. ed. Porto: Porto Editora, s.d.; CUNHA, A.G. (org.). Índice analítico do vocabulário de "Os Lusíadas". Introdução e fac-símiles. Rio de Janeiro: I.N.L., 1966. 3 vol.
Alguns estudos sobre Os Lusíadas [1] :
BELL, Aubrey. Luiz de Camões. Tradução do inglês de António Álvaro Dória. Porto: Ed. Educação Nacional, 1936; BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. Rio de Janeiro: MEC/UFF/FCRB, 1973; CIDADE, Hernâni, org. Prefácio à edição Obras completas, 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1956 e Luís de Camões: II - o épico, 2 ed. melhorada. Lisboa: Rev. da Faculdade de Letras, 1953; GENTIL, Georges le. Camoens. Paris: Hatier-Boivin, 1954; GIL, Fernando e MACEDO, Helder. Viagens do olhar. Retrospecção, visão e profecia no Renascimento Português. Lisboa: Campo das Letras, 1998; LOPES, Óscar. "Luís de Camões: 1. A grandeza do bicho da Terra tão pequeno; 2. Principais recepções d'Os Lusíadas de fins do século XVI a fins do século XX; 3. Camões - um pacto sumário de leitura". In: --. 5 Motivos de Meditação. Porto: Campo das Letras, 1999. LOURENÇO, Eduardo. "Camões". In: Poesia e metafísica. Camões, Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da Costa, 1983; MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes, 1980; SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Gradiva, 1997 e Estudos sobre a arte d'Os Lusíadas. Lisboa: Gradiva, 1992; SENA, Jorge de. A estrutura de "Os Lusíadas". Lisboa, Portugália, 1970; Trinta anos de Camões, 2 vol. Lisboa: Edições 70, 1980 e Estudos sobre o vocabulário de "Os Lusíadas". Lisboa: Edições 70, 1982; STORCK, Wilhelm. Vida e obras de Luís de Camões. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898 (há uma reprodução fac-similada editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda: Lisboa, 1980).