Estudos Camonianos

O amor no teatro camoniano

Camões, que soube permanecer fiel à tradição medieval, glosando motes, vilancetes e cantigas, utilizando os versos de arte-menor (redondilha maior e menor), ao mesmo tempo em que tirava todo o partido do decassílabo italiano em obras primas dos gêneros de importação recente - sonetos, canções, elegias, odes, éclogas etc. -, como autor teatral filiou-se à Escola Vicentína.

Seus três autos - Enfatriões, El-Rei Seleuco e Filodemo [1] - são totalmente (E), ou quase (F, ERS) [2] , escritos em redondilha maior, como a maioria dos autos vicentinos. Em Camões, todavia, notamos um empobrecimento rítmico, pela não utilização dos pés quebrados (de 3 ou 4 sílabas) que Mestre Gil largamente usou, como o próprio Camões, na sua lírica da medida velha. Os assuntos tratados não pediam a solenidade da arte-maior (que, aliás, não foi cultivada pelo nosso Poeta na lírica nem na épica), mas vale registrar que no auto de El-Rei Seleuco, quando entra o Representador,  antes de anunciar a peça - o que fará em prosa - diz quatro versos de arte-maior:

É lei de direito, assaz verdadeira,

Julgar por si mesmos aquilo que vêem;

Pelo que, se cuidam que zombo de alguém,

Eu cuido que zombam da mesma maneira. (ERS, p. 92)

 

A dignidade que têm esses versos no nível prosódico (e, pois, da expressão) contrasta com o Argumento que precedem e que é uma burla ao leitor ou ouvinte da peça, parecendo anunciar o que nela não virá.

Uma inovação camoniana será a introdução de trechos em prosa: inexistentes em Enfatriões, constituem as partes inicial e final de El-Rei Seleuco, e falas bastante extensas do Filodemo, além do seu Argumento.

Tanto Enfatriões e El-Rei Seleuco, que desenvolvem assuntos clássicos, como Filodemo, têm como tema central uma (ou mais de uma) história de amor:  o sentimento amoroso, a "fantesia", a ousadia, o desatino são a mola que faz mover-se a peça "a razon dela", como nas cantigas de amor;  melhor diríamos:  principalmente "a razon dela", pois que também elas se enamoram.  Assim, o amor é o fulcro do teatro camoniano, que se apresenta, em parte, como uma extensão da sua lírica.

Nos três autos, trata-se de amores impossíveis:  nos Enfatriões, por ser adulterino o amor de Júpiter por Almena; no El-Rei Seleuco, por ser também adulterino e quase incestuoso o amor do príncipe Antíoco por sua madrasta Estratônica;  em Filodemo, por serem os dois pares de amantes (Filodemo-Dionisa, Venadoro-Florimena) separados pela diferença social.  Em cada um deles, porém, a solução vem, sob medida, propiciar um final feliz.  Para os dois primeiros, o desfecho já estava no modelo que tomou Camões - em Plutarco, para o Auto de El-Rei Seleuco, e em Plauto, para os Enfatriões -;  para Filodemo, que não se sabe se tem intriga original do Poeta, encontraria a solução, entre outros, no próprio teatro vicentino (em D. Duardos, por exemplo).  Essa possibilidade de realizar-se no amor é que marcaria a divergência entre o lirismo de 1o grau [3] das Rimas e o de último grau do teatro de Camões:  lá, a tônica é a impossibilidade de realizar-se amorosamente, que permanece e se agrava;  aqui, o impossível se torna possível, pela intervenção de um deus ex machina, em sentido próprio ou figurado.

Na lírica da medida velha, todavia, onde o Poeta se mostra mais coloquial e familiar - até por causa do metro tradicional em que escreve -, encontramos redondilhas em que o amor não é levado tão a sério, apresentando também o seu lado picante, em linguagem que, por ser rara no lírico, não é menos expressiva.  É o caso das voltas ao mote:  "Catarina bem promete;  / Eramá!  como ela mente!" [4] em que, além da interjeição popular eramá, vemos um epíteto grosseiro aplicado à mulher amada:  "Jurou-me aquela cadela / De vir, pela alma que tinha", ou o das maliciosas voltas ao mote:

Deu, senhora, por sentença

Amor, que fôsseis doente,

Pera fazerdes à gente

Doce e fermosa a doença." [5] ,

 

onde, na última copla, se lê:

Que eu por ter, fermosa Dama,

A doença que em vós vejo,

Vos confesso que desejo

De cair convosco em cama. (Ib.)

 

Estes e outros exemplos de tratamento faceto do amor constituem, insistimos, exceções, bastante numerosas para serem significativas, mas sempre em minoria no conjunto da lírica.

O que possibilita uma maior variedade de enfoques do amor é exatamente a pluralidade dos sujeitos da enunciação - os personagens.  De várias classes sociais, de ambos os sexos, essas mesmas diferenças se refletem no tipo de amor que buscam ou despertam e na linguagem que empregam para expressá-lo.  Assim, dividiríamos basicamente os personagens em amos e criados, os primeiros deixando transparecer em sua fala o convívio com Petrarca, Garcilaso e Boscán (como aponta Duriano), proclamando as excelências do amor platônico que da amada não pretende "mais que o não pretender dela nada" (F, p.153), como diz Filodemo;  os segundos, misturando declarações de amor com pragas - "Pola sua negra vida" (F, p. 143), "Ó diabo que o eu dou" (F., p. 170) - e dele pretendendo coisa mais palpável - "Dous abraços" (F., p. 202) pede Vilardo a Solina, um, pede Feliseu a Brômia (E, p. 8) e  Mercúrio, disfarçado em Sósia, conta a Brômia que sonhou com ela:  "Soñaba que te tenia... / No me atrevo a decir más." (E, p. 29). 

No grupo dos amos temos um amador em Enfatriões,  Júpiter;  no Auto de El-Rei Seleuco, o príncipe Antíoco;  no Filodemo, este e Venadoro [6] .  Dos quatro, o que mais longamente disserta sobre os efeitos do amor, dialogando ou monologando, é Filodemo;  o auto de que é personagem-título é o mais extenso, sendo a(s) intriga(s) amorosa(s) a sua única substância.

No El-Rei Seleuco mais de um terço do auto (em prosa) é a cena que o introduz e o fecha, num processo também utilizado pelo Chiado no Auto da Natural Invenção, em que se tem a representação de uma peça dentro da outra:  os personagens são os criados [7] da casa onde será levado o auto, alguns convidados e o Representador;  no epílogo, também estará o Dono da casa.  Durante essas falas, de diálogo vivo e gracioso, o amor só aparece como tema de uma trova jocosa da autoria do Moço (criado) que a apresenta como difícil de entender, e mais ainda a volta em que a glosou e que é, segundo ele, "muito funda [...] que nem de mergulho a entenderão." (Ib., p.88).  O que está em jogo não é o sentimento inspirador dos versos:  "Por pesar de vós, Briolanja, / Ando eu morto, / Pesar de meu avô torto." (Ib., p. 87), mas os próprios versos feitos por alguém que, na opinião do Mordomo: "ua trova fá-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado" (Ib., p. 86).  A mania de fazer copras e as cantar foi ridicularizada por Gil Vicente, Camões e outros autores da Escola Vicentina, como o será mais tarde por Molière.

Nos Enfatriões, a par do caso amoroso - a paixão de Júpiter por Almena e a decorrente atitude de Anfitrião - há a série de quiproquós provocados pela duplicidade de Sósias e Anfitriões, que constituem a parte verdadeiramente cômica do auto.

No Filodemo só se fala de amor, só se age por amor.  Se, nos Enfatriões, Júpiter dele se mostra entendedor, reconhecendo-lhe a força -

Oh!  potência tão profana!

Que a seta de um minino

Faça que meu ser divino

Se perca por cousa humana! (F, p. 12) -,

  

percebendo que amor e razão são incompatíveis - "Quem em baixa cousa vai pôr / A vontade e o coração,  / Sabe tão pouco de Amor / Quão pouco Amor da rezão." (Ib.) - e, aproveitando a referência que faz Mercúrio à sua mudança de aspecto, responde ambiguamente - "Não no faz senão o Amor, / Que nisto pode mais que eu." (Ib., p. 23) -;  se Antíoco sofre as penas do amor e mais as de ter que silenciá-lo - "Bem-aventurada a pena / Que se pode descobrir!" (Ib., p. 98) -, se se contenta com ser da mulher amada "o mor mal de [s]eu tormento" (Ib., p. 107), se sonha com a realização do seu desejo, para se ver desenganado ao acordar - "o sono quieto e manso, / Que os outros têm por descanso, / Me vem a mi por trabalho." (Ib., 119) -, se  (sintetizando) Júpiter e Antíoco, em situações bem diversas, experimentam "o veneno amoroso", é Filodemo quem nos dá mais ampla conta da extensão e da qualidade de seu sentimento, feito da ousadia que dá asas à imaginação:

Ora bem, minha ousadia,

Sem asas, pouco segura,

Quem vos deu tanta valia,

Que subais a fantesia

Onde não sobe Ventura? (Ib., p. 131),

 

Essa imaginação (fantesia, imaginar) que, no lírico das Canções, sobretudo, é o único caminho para o alto onde ela está  - "e vede se seria leve o salto!" [8] -, afirma-se em voz alta nos solilóquios de Filodemo:  "Triste do que vive amando / Sem ter outro mantimento, / Com que estê fantesiando!" (Ib., p. 130).  Significativo é que a causa de tanto amor tenha o mesmo mantimento:  Solina, criada de Dionisa, revela a Filodemo que vira sua ama

[...]o outro dia

Um poucochinho agastada,

Dar no chão com a almofada,

E enlevar a fantesia,

Toda noutra transformada! (Ib., p. 161) (Grifo nosso)

 

e a própria Dionisa, recusando alimento, diz:  "Irei, mas não por jantar;  / Que quem vive descontente / Mantém-se de imaginar" (Ib., p. 178) (Grifo nosso).

O ser ousado (Dionisa fala no atrevimento dele) justifica-se talvez porque nunca se viu amor "Que se guie por rezão" (Ib., p. 140), mas não o exime da dúvida:  "[...] se é amor, / Se por dita é desatino?", "Se é doudice [...]?" (Ib., 137).  E convém que se esclareça que o ousar e o imaginar do apaixonado Filodemo nunca vão além dos limites marcados pelo platonismo ou, pelo menos, disso ele se procura convencer e aos interlocutores, como Duriano: "[...] eu não pretendo dela mais que o não pretender dela nada, porque o que lhe quero, consigo mesmo se paga;  que este meu amor é como a ave Fênix, que de si só nace, e não de nenhum outro interesse." (Ib., p. 153).  Essa ousadia de amá-la não a pode ofender:  ofensa maior seria vê-la e não ousar;  "logo, nem o meu amor pode ser pouco, nem fazer menos [...]" (Ib., p. 174).  O amor platônico, que não quer "fim" (Ib., p. 140) é na verdade uma atitude literária, de influência petrarquiana, de que se acha embebido Filodemo;  mas isso não obsta a que tudo se encaminhe para o casamento que não se realiza em cena, mas é anunciado por Lusidardo, ao final do auto.  A expressão de tal sentimento se faz através de jogos de palavras e de antíteses que continuam a linguagem do Cancioneiro Geral, carregando-se das tendências maneiristas de Camões.  Aliás não é outra a linguagem de Venadoro que, menos atuante no desenvolvimento da peça, é uma réplica reduzida de Filodemo, não perdendo para o primo (antes excedendo-o) no manejo da língua poética que exprime a dialética amorosa do tempo.  Filodemo joga com cuidado, substantivo e verbo:

Amor [...]

[...]

Tem por ventura ordenado

Que mereça o meu cuidado,

Só por ter cuidado nele? (Ib., p. 132)  (Grifos nossos);

 

com criado e cativo, em sentido próprio e figurado:  "Creríeis que foi ousado / Em este vosso criado / Tornar-se vosso cativo?" (Ib., p.134);  com antônimos:  "Assi que me dais a vida / Somente por me matar." (Ib., p.  140), "Mas o que mais posso crer, / Que nem pera lhe esquecer / Lhe passo pela memória." (Ib., p. 145) e outros mais.  O uso dos antônimos é o preferido por Venadoro:  no seu primeiro diálogo com Florimena, opõe perder a achar e ganhar, servindo-lhe de pretexto a frase de Florimena: "Se andais por dita perdido, / Eu vos encaminharei", a que responde:

Senhora, eu não vos pedia

Que ninguém me encaminhasse;

Que o caminho que eu queria,

Se o eu agora achasse,

Mais perdido me acharia.

 

Não quero passar daqui;

E não vos pareça espanto,

Que em vos vendo me rendi;

Porque, quando me perdi,

Não cuidei de ganhar tanto. (Ib., p. 188) (Grifos nossos)

 

E pouco adiante insiste:  "Permitiu meu Fado assi, / Que, andando dos meus perdido, / Me venha perder a mi." (Ib., p. 189).  Este é o exemplo mais expressivo do jogo de homônimos combinado com o de antônimos na fala de Venadoro e essa mesma combinação acentua as contradições do amor, pois que os próprios homônimos, iguais no significante, a polissemia os faz diversos no significado.

Os antônimos também aparecem associados ao mesmo verbo, que se repete, mudando-se-lhe a voz:

Oh!  que tirano partido,

Que quem o cervo feriu,

Vá como cervo ferido!

 

Ambos feridos num monte,

Eu a ele, outrem a mi.

Ua diferença há aqui:

Que ele vai sarar à fonte,

E eu nela me feri. (Ib., p. 189)

 

 Nos versos proferidos por Venadoro, a todo momento nos lembra a lírica:  "Consenti-me que vos siga:  / Vá o corpo onde àlma vai." (Ib., p. 190) que aparece em inúmeros poemas;  "Quereis-me deixar a pena, / E levar-me a causa dela?" (Ib., p. 188), em que ressoam os versos de "Sobre os rios":  "Nunca em mim puderam tanto / Que, posto que deixe o canto, / A causa dele deixasse" [9] .

Se assim se apresenta o amor nos homens de categoria social elevada, vejamo-lo nas mulheres. Cientificada de que Antíoco a ama, Estratônica quer que "A morte que o levar, / Me leve também a mim." (Ib., p. 113), para que "Sejamos juntos na morte, / Pois o não somos na vida." (Ib., p. 114);  pouco mais diz, pois seu papel é pequeno no menor dos autos de Camões;  Almena tem mais oportunidades de falar do marido cuja falta lamenta:

Ausentes duas vontades,

Qual corre mores perigos,

Qual sofre mais crueldade:

Se vós entre os enemigos,

Se eu entre as saüdades?

 

Que a Ventura, que vos traz

Tão longe de vossa terra,

Tantos desconcertos faz,

Que, se vos levou à guerra,

Não me quis deixar em  paz.

Brómia, quem, com vida ter,

Da vida já desespera,

Que lhe poderás dizer?" (Ib., p. 1-2) (Nossos grifos acentuam

os processos utilizados).

 

Dionisa, que ama Filodemo, embora o negue a princípio, porta-se como a Aônia, de Menina e Moça, erguendo-se em camisa para ouvir tanger o amado que, por sua vez, como Binmarder, dava-se todo ao seu cuidado:  "Se esquecia do cantar, / Por se enlevar no cuidado." (Ib., p.158).  Envergonhada de querer bem a quem supõe que lhe é socialmente inferior, procura justificar-se com a vida reclusa e sedentária da mulher do seu tempo:

Bofé, que estava cuidando

Que é muito pera haver dó

Da mulher que vive amando.

Que um homem pode passar

A vida mais ocupado;

Com passear, com caçar,

Com correr, com cavalgar,

Forra parte do cuidado.

 

(aqui, mais uma vez, vem-nos à memória a novela de Bernardim, quando a Menina e Moça faz reflexões sobre a tristeza que aflige as mulheres);  e continua:

Mas a coitada

Da mulher sempre encerrada,

Que não tem contentamento,

Não tem desenfadamento,

Mais que agulha e almofada?

Então isto vem parir

Os grandes erros da gente:

Em que já antigamente

Foram mil vezes cair

Princesas de alta semente. (Ib., p. 172-173) [10]

 

A outra donzela do Auto de Filodemo é Florimena, cuja primeira fala é um melancólico solilóquio em que ela põe em confronto o renovar-se da natureza e a imobilidade da sua vida:

Por este fermoso prado,

Tudo quanto a vista alcança

Tão alegre está tornado,

Que a qualquer desesperado

Pode dar certa esperança.

O monte e a sua aspereza

De flores se veste ledo;

Reverdece o arvoredo.

Somente em minha tristeza

Está sempre o tempo quedo. (grifos nossos) (Ib., p. 183)

 

Às palavras apaixonadas de Venadoro, ela responde com extrema dignidade:

Também quem na serra mora

Tanto estima a honestidade,

Que antes toma ser pastora,

Que perder a castidade,

A troco de ser senhora. (Ib., p. 190)

 

Embora assistamos ao casamento de Venadoro e Florimena, e não ao de Filodemo e Dionisa, daquela só sabemos que consente em casar, enquanto que esta se confessa confusa e apaixonada, como já vimos, e ainda veremos nestes versos:

Oh!  Solina, minha amiga,

Que todo este coração

Tenho posto em vossa mão!

Amor me manda que diga,

Vergonha me diz que não.

Que farei?

Como me descobrirei?

Porque a tamanho tormento

Mais remédio lhe não sei,

Que entregá-lo ao sofrimento. (Ib., p. 197)

 

que merecem de Solina a resposta algo impudente:  "Mais vale vergonha no rosto, / Que mágoa no coração." (Ib., p. 198).

Esta Solina, confidente de Dionisa, é na verdade uma personagem curiosa, viva, inteligente, pouco escrupulosa (faz-se pagar, ao mesmo tempo, de sua senhora e de Filodemo, merecendo que Vilardo a chame de Celestina), mostra-se, por outro lado, virtuosa ao repelir as entradas de Duriano:  "Que é isso?  Tirai lá a mão!" e "Olhai que pouca vergonha!  / I-vos de i, boca de praga!" (Ib., p. 169),  chegando mesmo a bater-lhe.

Como se vê por essas abordagens a Solina, Duriano está longe de ser um amoroso na linha de Venadoro ou Filodemo.  Sua função na peça é bem nítida:  é o antiplatônico convicto e confesso, que zomba daqueles que se comprazem com a tristeza - "não darão meia hora de triste pelo tesouro de Veneza" (Ib., p. 150) -, dos que amam pela passiva e dizem "que o amor fino como melão não há-de querer mais de sua dama que amá-la" (Ib., p. 153-4)  e cita como patronos de tal atitude "o vosso Petrarca, e o vosso Petro Bembo, atoado a trezentos Platões" (Ib., p. 154).  Põe em dúvida a atitude passiva de tais amantes e afirma a sua:  "eu já de mi vos sei confessar que os meus amores hão-de ser pela activa, e que ela há-de ser a paciente e eu  agente, porque esta é a verdade." (Ib., p. 154)  E que não mente podemos ver pela cena com Solina, a que já nos referimos, e na qual o atrevimento excede [11] o de qualquer outro personagem do teatro da época;  além de pedir à moça beijos e abraços, e agarrá-la, ainda lhe ousa dizer:

[...]creio

Que vós falais dentro em mi,

Como esprito em corpo alheio.

E assi que em estas piós

A cair, Senhora, vim,

Bem parecerá entre nós,

Pois vós andais dentro em mim,

Que ande eu também dentro em vós. (Ib., p. 168),

 

a que ela riposta vivamente:  "E bem, que falar é esse?" (Ib.) [12]   Tal realismo de linguagem, ele o retoma para resumir a história dos amores que deram origem aos gêmeos Filodemo e Florimena:

Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que El-Rei de Dinamarca lhe fizera, meteu-se de amores com ua sua filha, a mais moça;  e como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher abalam, desejou ela de ver geração dele;  senão quando - livre-nos Deus! - se lhe começou de encurtar o vestido, que estas cidras não se desistem em nove dias, senão em nove meses;  foi-lhe a ele então necessário acolher-se com ela, porque não colhessem a ela com ele." (Ib., p. 220-1)

Os dois amantes sofreram um naufrágio do qual só escapou "[...] a princesa com o que trazia na barriga [...] Saiu, finalmente, a moça na praia, [...] dando-lhe as dores de parto junto de ua fonte, aonde em breve espaço lançou duas crianças, macho e fêmea, como visagras." (Ib., p. 221).

Apontando um detalhe trivial - o encurtar do vestido -, usando o jogo de palavras com os verbos acolher e colher, que insiste sobre o ridículo a que poderiam estar expostos os dois namorados, as expressões prosaicas - "com o que trazia na barriga" e "macho e fêmea, como visagras" - Duriano desmitifica as aventuras amorosas que constituíam o cerne das novelas de cavalaria e, pois, o amor cortês e se torna a mais original criação do teatro camoniano, aquele que denuncia - não o tomando a sério - o código cavaleiresco.

E aqui cabe retomar uma observação que fizemos, no início deste estudo, sobre a utilização de trechos de prosa bastante extensos no Filodemo:  além do Argumento, são em prosa todas as cenas em que aparece Duriano, exceto aquela em que finge amor a Solina, a pedido de Filodemo.  Poder-se-á depreender desse fato a homologia (válida só para Duriano):  verdade está para prosa assim como mentira está para verso?  E concluir que Camões, pela adequação  do conteúdo a uma forma de expressão específica, estaria assumindo a denúncia de Duriano?  Se dissemos deste que é o antiplatônico (opondo-se ao conceito predominante do amor);  se se diz que o Velho do Restelo é, n'Os Lusíadas, o anti-épico (opondo-se ao expansionismo e seus perigos), será possível sugerir outra homologia:  Duriano está para  amor cortês assim como o Velho do Restelo está para expansão ultramarina, e alargar ao teatro de Camões o que já dissemos sobre Os Lusíadas, isto é, que o Poeta não ficou preso às ideologias, mas as questionou através de seus versos e, já aqui, também de sua prosa?  Por enquanto, vamos respondendo como o Monteiro a Duriano, nesse Auto Chamado de Filodemo:  "Esses são outros quinhentos"...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BERARDINELLI, Cleonice.  "Fernando Pessoa".  In:  CIDADE, Hernâni.  Os Grandes Portugueses. Lisboa: Arcádia, s.d., vol. II



[1] Citam-se aqui os autos pela edição de CIDADE, Hernâni (org.) CAMÕES, Luís de. Obras completas, vol. III, "Autos e cartas". Lisboa: Sá da Costa, 1946. Usaremos as seguintes abreviaturas: El-Rei Seleuco (ERS), Filodemo (F), Enfatriões (E).

[2] Nestes autos há também passagens em prosa.

[3] BERARDINELLI, Cleonice.  "Fernando Pessoa".  In:  CIDADE, Hernâni.  Os Grandes Portugueses. Lisboa: Arcádia, s.d., vol. II, p. 411: "conviria precisar o que entende ele [F. Pessoa] por poesia lírica:  da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua.  Com efeito, e indo às mesmas origens da poesia dramática - Ésquilo, por exemplo - será mais certo dizer que encontramos poesia lírica posta na boca de diversos personagens.  O 1o. grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento."

[4] CAMÕES, Luís de.  Obras completas, com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade.  Lisboa: Sá da Costa, 1946, vol. I, p. 65.

[5] Ib., p. 75 - 76.

[6] Não incluímos Anfitrião, pois a sua atitude é sobretudo de perplexidade diante do que ele supõe a loucura da mulher.

[7] A Introdução do auto é feita pelo Mordomo ou Dono da casa.

[8] Cf. a canção "Junto dum seco, fero, estéril monte": CAMÕES, Ib., vol. II, p. 289.

[9] Ib., vol. I, p. 106.

[10] Esta queixa assemelha-se às queixas de Isabel, no Auto de "Quem tem farelos?" e de Inês Pereira, no auto do mesmo nome, de Gil Vicente, embora o tom seja outro.

[11] Aproximamos deste passo a cena final do Auto da Feira, de Gil Vicente, em que se travam, entre os jovens compradores e as jovens vendedoras, diálogos divertidos e cheios de malícia, onde a bissemia está carregada de erotismo.

[12] V. também p. 169, vv. 23-5.