Estudos Camonianos

"Junto dum seco, fero e estéril monte"

Têm em comum as dez Canções camonianas publicadas na edição de 1595 a necessidade de desabafo das penas amorosas, mais ou menos explícito, mais ou menos intenso. A desventura amorosa só momentaneamente se abranda pela fuga ao passado "Em saüdades brandas e suaves" (v. 105) [1] ou pelo fingimento da felicidade desejada, que alimenta o Poeta de enganosas esperanças. A beleza ideal da mulher amada, a dureza de alma que a faz inatingível são a causa do tormento infindável do amante, mas também de aguçar-se-lhe o desejo de vê-la, sabê-la a lembrar-se dele e mesmo de tê-la nos braços. A confissão de tal desejo, natural em um Poeta que se sabe "homem de carne e osso", de "carne e sentidos", é das notas mais convincentes da sua lírica; é na Canção II ("A instabilidade da Fortuna") que este sentimento aparece mais significativamente adjetivado:

Meu humano desejo, de atrevido,

Cometeo, sem saber o que fazia,

O cego moço, [...] (II, vv. 66-8)

e significativamente concretizado numa imagem de inspiração mitológica:

O vingativo Amor me fez sentir

Fazendo-me subir

Ao monte da aspereza que em vós vejo,

Co pesado penedo do desejo,

Que do cume do bem me vai cair. (II, vv. 88-92)

Não é nelas uma constante a presença da natureza, mas esta aparece com certa freqüência (Canções III, IV, VI, VII), sempre caracterizada por pássaros voando com "suave e doce melodia"(III, v. 13), em "florida terra, / Leda, fresca e serena" (IV, vv. 14-15), onde corre "rio fermoso e claro" (VI, v. 92) e "fontes cristalinas" (VII, v. 37). Nestas descrições se reconhece sem hesitação o locus amoenus que, "desde a época imperial até ao século XVI, constitui o motivo principal de toda descrição da Natureza" [2] . Os epítetos utilizados não são senão tons e semitons de uma escala de amenidade, indicadora da natureza típica do gosto da época, indiferenciada. Só a Canção IX, "Junto de um seco, fero e estéril monte", se distingue entre as mais, por apresentar a descrição do que oprime e esmaga o Poeta. Também na Canção VI ele se referira a um lugar preciso, que se supõe ser a ilha de Ternate, e nele assinalara o calor extremo, logo, porém, amenizado pela alusão ao inverno que "os campos reverdece" (VI, v. 6) e ao rio que as terras rodeia com suas "marítimas ágoas saüdosas" (VI, v. 11). Não assim na descrição do Monte Félix (o Ras Alfil dos Árabes), próximo ao cabo Guardafui (Canção IX).

As três primeiras estrofes da canção são a recriação poética da região inóspita aonde o Destino o arrastou, e tal recriação, forte, impressiva, se deve sobretudo a uma adjetivação abundantíssima e reveladora da visão pessoal do Poeta afetado em sua funda sensibilidade. Excedendo as habituais fronteiras renascentistas [3] , Camões foge aqui aos epítetos sinônimos. Acumula-os, sim, sobre o monte aziago (vv. 1-6), que, paradoxalmente, se chama Félix [4] (vv. 7-8), mas cada um deles acrescenta alguma coisa à idéia, ou a intensifica: os oito adjetivos contidos nos vv. 1-3 são completados pelas orações adjetivas dos vv. 4-6, numa correlação de movimento pendular: nele "nem rio claro corre ou ferve fonte" (seco e estéril), "nem verde ramo faz doce ruído" (despido, calvo), "nem ave voa ou fera dorme". Os adjetivos valorativos fero e inútil resumem os aspectos parciais de fereza e inutilidade decorrentes ou causadores de ser o lugar "da natureza em tudo aborrecido" (v. 3). De todos estes epítetos, o mais carregado de emoção é inútil, pois que antecipa a negação de vida contida nos versos 4-6: nem vida animal (ave ou fera), nem vegetal (ramo), nem aquilo que no reino mineral dá vida e a simula em sua manifestação viva de som ou movimento: o rio, a fonte, o vento. Por isso é o monte inútil e informe, rocha apenas, mais nada.

Expressivos de per si, os adjetivos se vão carregando de conotações, em cadeia que se intensifica à medida que se lhe acrescentam elos; para tal contribuem os efeitos sonoros: a dureza dos é abertos no v. 1: "fero", "estéril"; a variedade de fonemas tônicos nos vv. 1-2: u, ê, é, õ, u, i, a, ó; a repetição das tônicas u-i no meio do v. 2 e no fim dos vv. 3 e 7: "inútil e despido", "em tudo aborrecido", "do vulgo introduzido"; as alterações onomatopéicas (vv. 4-6) "ave voa", "rio claro corre, ou ferve fonte, / Nem verde ramo faz doce ruído". Ainda adjetivas são as orações contidas nos vv. 7-15 e ainda nelas persistem as aliterações: as dentais t e d e as bilabiais m, p e b, acentuando a dureza; as líquidas r e l, abrandando-a com a presença da água que se afirma nos aa: "Situou junto à parte / Onde um braço de mar alto reparte / Abássia da Arábica aspereza".

A funda impressão que causou ao Poeta a terra adversa leva-o a retomar pouco adiante (vv. 26-27) a adjetivação múltipla ("nesta remota, áspera e dura / Parte do mundo") para acentuá-la com a idéia - ainda não mencionada - da distância e, portanto, da solidão. Para lá o levou a "fera ventura" e lá gastou [5] dias (v. 31) que se contaminaram do ambiente e foram "Tristes, forçados, maos e solitários, / Trabalhosos, de dor e de ira cheos" (vv. 32-33); tudo lhe era hostil: "A vida, o sol ardente e águas frias [6] , / Os ares grossos, férvidos e feos" (vv. 35-36), nos quais se resumem os quatro elementos constitutivos do universo, segundo o conceito dos antigos: terra, fogo, água e ar, e este último, que a tudo envolve, penetra e vitaliza, ao homem se oferece grosso (espesso, denso de impurezas, pesado), férvido e feio [7] : aos epítetos sensoriais segue-se o valorativo feio, que traduz um conceito predominantemente subjetivo. O Poeta tenta fugir à reflexão que o acabrunha, pela recordação de outros tempos vividos, mas o próprio pensamento o aflige: a fuga ao passado lhe traz à memória "Algua já passada e breve glória" (v. 41) e o confronto com o presente fá-lo sofrer com a idéia freqüente em sua lírica e à qual Dante dera forma definitiva: "Nessun maggior dolore / Che ricordarsi del tempo felice / Nella misèria" [8] .

Desde o v. 22 - logo em seguida à identificação do monte e do cabo - Camões repete anaforicamente aqui (vv. 22, 26, 31, 46, 52, 55, 106). Dever-se-á concluir daí que ele escrevesse o poema na região descrita? Nada nele nos afirma ou nega [9] tal hipótese; parece-nos, contudo, que a lembrança de tempos tão intensamente sofridos, e tão necessariamente enformados pela natureza ambiente, os trouxe a Camões, presentes e atuais, a ponto de transitar do passado ao presente nos tempos verbais da estrofe 5 [10] . À progressiva interiorização corresponde a intensificação da expressão poética, culminando com a concretização da alma do Poeta numa imagem extremamente forte:

Aqui, a alma cativa,

Chagada toda, estava em carne viva,

De dores rodeada e de pesares,

Desamparada e descoberta aos tiros

Da soberba Fortuna,

Soberba, inexorável e importuna (vv. 55-60)

e nesta outra bastante ousada:

Não tinha parte donde se deitasse [a alma],

Nem esperança algua onde a cabeça

Um pouco reclinasse, por descanso. (vv. 61-63)

A este passo segue-se o v. 64, da edição de 1595, que aqui seguimos, vem: "Todo lhe é dor" (corrigido por nós para "Tudo lhe é dor", considerando que houve uma gralha); em 1598, vem "Tudo dor lhe era" [11] ; além de eufonicamente superior, parece-nos mais válida dentro do  contexto a primeira forma, com o verbo no presente:

Tudo lhe é dor e causa que padeça,

Mas que pereça não, porque passasse

O que quis o destino nunca manso. (v. 64-66) (Grifo nosso)

Ainda no presente continua a estrofe até ao fim (vv. 67-75), em queixa dramática contra o Destino - Estrela, Fado, Céu - que ele não pode dominar com a sua voz de novo Orfeu, capaz de amansar o "irado mar" e os ventos desenfreados. Tal destino já aparecera como ventura - fera ventura - e Fortuna, esta adjetivada expressivamente, não só pelo número e qualidade dos epítetos, mas pela repetição do primeiro em versos sucessivos: "da soberba Fortuna; / Soberba, inexorável e importuna" (vv. 59-60) processo antes usado nos vv. 31-32, com referência a dias: "uns tristes dias, / Tristes, forçados, maos e solitários", como se o Poeta quisesse pôr em relevo, equiparando-os, os dias de sua vida.

Desprendendo-se da realidade, o Poeta dá asas ao sonho e nele supõe a amada menos dura, "Tornada (inda que tarde) piadosa" (v. 88), e, num desabafo amoroso e terno, que ele sabe sem eco e sem resposta, diz-lhe, simples e espontâneo:

Ah! Senhora, Senhora, que tão rica

Estais, que cá, tão longe, de alegria,

Me sustentais cum doce fingimento! [12] (v. 94-6)

Começa a última estrofe o v. 106, onde aparece, pela última vez, o advérbio aqui; nos vv. 109 e 112, surgirá ali, de difícil interpretação [13] . Onde o localizar? Citemos a passagem:

Aqui co eles fico preguntando

Aos ventos amorosos que respiram

Da parte donde estais por vós, Senhora,

Às aves que ali voam, se vos viram (vv. 106-109);

e mais adiante:

Ali [14] a vida cansada, que melhora,

Toma novos espritos, com que vença

A Fortuna e trabalho,

Só por tornar a ver-vos,

Só por ir a servir-vos e querer-vos. (vv. 112-116)

Dentro do contexto, o único lugar onde o Poeta poderia melhorar "a vida cansada" e tomar "novos espritos" seria junto da sua Senhora, mas esta possibilidade seria negada pelo uso de um advérbio da terceira pessoa, em vez de um da segunda: . Como, pois, encontrar a amada onde ela não está realmente? No sonho, no fingimento do amante [15] onde chegam os ventos vindos de onde ela está, onde voam as aves que a viram, e aos quais ele pergunta em alvoroço crescente, traduzido no ritmo que se acelera e revela, a nosso ver, o ciúme que o punge:

Às aves que ali voam, se vos viram,

Que fazíeis, que estáveis praticando,

Onde, como, com quem, que dia e qu'hora? (vv. 109-111)

uma pergunta no primeiro verso, duas no segundo, cinco no terceiro! Do alto do pensamento despenha-se na realidade, como já lhe sucedera nos vv. 48-50: "caía / (E vede se seria leve o salto!) / De sonhados e vãos contentamentos", e sente reabrirem-se-lhe as chagas. Resta-lhe o commiato, que resume o seu drama de amor, o círculo vicioso em que o Desejo e o Sonho se disputam a sua pobre alma apaixonada: um, abrindo-a em chagas, outro, curando-as, para que "padeça, / Mas que pereça não" (vv. 64-65), na eternidade do sofrimento de amor:

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,

Canção, como não mouro,

Podes-lhe responder que porque mouro.

SOBEJANO, Gonzalo. El epíteto en la lírica española. Madrid: Ed. Gredos, 1956.

DANTE, Divina Comédia, Inferno, V, 121-3. Milano: Ulrico Hoepli, 1913.

FARIA e SOUSA

CAMÕES, Luís de. Rimas. Prefácio, seleção e notas de A. J. da Costa Pimpão. Clássicos Portugueses. Lisboa: Atlântida, 1943



[1] As referências aos versos das canções serão feitas da seguinte forma: o algarismo romano representará o número da canção, acompanhado de seu respectivo verso, em arábico, segundo a edição de 1595 (Rh). No caso específico da canção IX, "Junto dum seco, fero e estéril monte", indica-se apenas a numeração dos versos.

[2] CURTIUS, E. R. Literatura e idade média latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957 p. 202.

[3] Cf. SOBEJANO, Gonzalo. El epíteto en la lírica española. Madrid: Ed. Gredos, 1956.

[4] A pintura de traços pesados com que o Poeta nos apresenta o Monte "Por antífrase [...] Félix, infelice" (v. 9) -   retratando-lhe a natureza inóspita e agredindo-a com seus versos - será  determinada  pelo próprio exílio e afastamento da mulher amada, mas também, talvez (permita-se-nos a suposição), por estar sepultado "no mar de Monte Félix" seu amigo Pero Monis, a quem dedica um soneto-epitáfio, escrito na primeira pessoa, que foi incluído em Ri, sob o número 100: "No mundo poucos anos e cansados"; cf. PEREIRA FILHO, Emmanuel. As Rimas de Camões (Cancioneiro de ISM & Comentários). Fac-símile, Lição dos manuscritos e Comentários por [...]. Edição preparada e organizada por Edwaldo Cafezeiro e Ronaldo Menegaz. Rio de Janeiro: J. Aguilar; Brasília: INL, 1974, p. 99.

[5] Note-se a expressividade do verbo: os dias aí passados sem alegria, sem vontade, em penosa solidão e revolta, ele não os viveu, mas gastou; o mesmo verbo na mesma acepção voltará no v. 47.

[6] Dois epítetos típicos, que a antítese de certo modo valoriza.

[7] Atente-se para a aliteração f, v.

[8] DANTE, Divina Comédia, Inferno, V, 121-3. Milano: Ulrico Hoepli, 1913.

[9] Diz FARIA e SOUSA: "Escriviòla el P. en Goa, despues de aver venido de la Arabia Felix." (Rimas, 2ª parte, p. 67).

[10] A Canção, que consta de nove estrofes mais commiato, tem duas partes diversas: a primeira (estr. 1-5), que se processa no sentido de uma sempre maior interiorização, parte da natureza para o Poeta, é sobretudo narrativa; a segunda (estr. 6-9), optativa, exprime o sonho do amante infeliz.

[11] Adotado por Hernâni Cidade e Costa Pimpão.

[12] Já que procuramos dar especial realce à fuga aos epítetos típicos, na primeira parte da canção, queremos aduzir que, na segunda parte, suavizada momentaneamente a pena pelo devaneio, o Poeta neles recai: claros olhos, triste voz, doces errores, saudades brandas e suaves, etc.

[13] Cf. CAMÕES, Luís de. Rimas. Prefácio, seleção e notas de A. J. da Costa Pimpão. Clássicos Portugueses. Lisboa: Atlântida, 1943, p. 84, nota ao v. 112.

[14] O grifo é nosso.

[15] Em abono da nossa interpretação, citamos passos das Canções I, II, IV, V, VII e VIII; Elegia III e "Oitavas sobre o desconcerto do mundo", em que o advérbio ali se refere a abstrações: "ali (no meu desejo) me manifesto", "ali (no ver tão lindo gesto) me inflamo" (C. I, vv. 7 e 8); "ali (no descontentamento de se ver logrado) sua cobiça mais se apura" (C. II, v. 97); "Oh! quem me ali (no esperar) dissera" (C. IV, v. 59); "Não que acabasse ali (na sua alma [dela])" (C. VIII, v. 43); "ali contemplo o gosto já passado", "ali vejo caduca e débil glória", "ali me representa esta lembrança"; em todos estes, ali = na fantasia. (Eleg. III, vv. 28, 31 e 34); "ali outrem ninguém me conhecera", "ali, enquanto as flores acolhesse"; nestes dois, ali = num lugar ideal, aonde o leva a fantasia (Oit. I, vv. 181 e 209).