É este o amor que, de preferência, se canta na lírica camoniana da medida nova, o amor quase sempre inatingível ("Corro após este bem que não se alcança": Rh, 43) [1] , fonte de sofrimento que se renova sem cessar ("a dor de ver as mágoas que passara / Tenho pola mor mágoa que passei": Ri, 3), não mostrando ao amante "u'hora em que vivesse alegremente" (Ri, 98). O Poeta lamenta-se, clama contra sua desdita, mas prefere a prisão do amor à liberdade ("Do tempo que fui livre m'arrependo": Ri, 77); reconhecendo que as graças da mulher amada o aprisionam, compara-se ao preso que "Seu mal ao som dos ferros vai cantando" (DF2, 19). Está tão habituado à dor, que "Não o magoa a pena nem o espanta, / Que mal se estranhará o costumado." (Ri, 85).
Camões raramente busca no amor a correspondência gratificante; fá-lo em poucos poemas cujo tema é o carpe diem, tão presente no lirismo renascentista, mas quase ausente da lírica portuguesa da mesma época, incluída a camoniana. Originado num verso de Horácio em que o poeta, dirigindo-se a uma mulher, diz:
Seu plures hiemes seu tribuit Juppiter ultimam,
Quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, vina liques et spatio brevi
Spem longam reseces! Dum loquimur, fugerit invida
Aetas; carpe diem quam minimum credula postero. (Odes, I, 11, 8) [2]
o topos aparece com expressão diversa "Collige, virgo, rosas", num outro poeta latino do século IV, Ausônio, autor de Idílio das rosas, que se fecha pelo conselho dado a uma moça: "Jovem, colhe as rosas enquanto sua flor é nova e nova tua juventude, lembra-te de que vais passar tão rapidamente quanto ela." [3]
Bastante freqüente na poesia francesa do século XVI, este topos terá talvez o mais inspirado exemplo de seu emprego no belíssimo soneto de Ronsard a Helena, "Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle", em que, mais agressivo que os poetas latinos, o francês procura convencer a amada a viver o momento presente, assustando-a com a previsão da velhice solitária, apenas acompanhada por uma velha criada, quando ele já estará "sob a terra, fantasma sem ossos" e ela, "uma velha acocorada à lareira" arrependida de ter desdenhado o seu fiel amor. Bem melhor será atender ao seu apelo: "Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain: / Cueillez des aujourd'hui les roses de la vie." [4] Vinte e cinco anos antes, em pequenina ode à primeira grande inspiradora, Cassandre, ele dera o mesmo conselho, em graciosos octossílabos, mas com menos força de persuasão: "Cueillez, cueillez votre jeunesse: / Comme à cette fleur, la vieilesse / Fera ternir votre beauté." [5]
Raro embora, como se disse atrás, encontra-se encantadoramente expresso em Camões no soneto "Está-se a primavera trasladando", em que diz à amada:
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta,
Nas lindas faces, olhos, boca e testa,
Boninas, lírios, rosas debuxando.
De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta,
Que o monte, o campo, o rio e a floresta
Se estão de vós, senhora, namorando.
Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fruito destas flores,
Perderão toda a graça vossos olhos.
Porque pouco aproveita, linda dama,
Que semeasse Amor em vós amores,
Se vossa condição produze abrolhos. (Rh, [23])
Veja-se que, embora siga lato sensu o caminho já percorrido por antigos e contemporâneos, o Poeta cria a sua própria trilha. Nos quartetos, falava em várias flores, mas estas não estavam nos seus espaços habituais: trasladadas pela natureza para ela, para suas "faces, olhos, boca e testa", enamoravam "o monte, o campo, o rio e a floresta." Não são, pois, as flores apenas um comparante, senão parte integrante da mulher e, diversas das outras, darão fruto a ser colhido pelo amante, se ela o permitir; se não, ameaça-a ele, seus olhos perderão toda a graça. Não há muito, porém, a esperar de alguém que, como um terreno áspero, mesmo recebendo a semente do amor, só produz abrolhos. Não há aqui, portanto, o conselho a que aproveite o momento; há a expressão da desconfiança de que possa fazê-lo, dada a dureza da sua condição, o que não deixa de ser uma espécie de desafio a que o faça.
Mais próximo de Ronsard está nosso Poeta no soneto "Se as penas com que Amor tão mal me trata" - todo dirigido à sua senhora - muito bem estruturado: nos dois quartetos, as duas condições - "Se as penas com que Amor tão mal me trata" e "se o tempo, que tudo desbarata" -, nos dois tercetos, o que acontecerá se as hipóteses se tornarem realidade.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Quiser que tanto tempo viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata,
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;
Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança;
Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar se possa
Em vosso arrepender minha vingança. (Rh, 54)
Se Amor quiser que as penas por ele infligidas permitam que o Poeta viva o bastante para chegar a ver apagado o brilho dos olhos [6] da amada; se o tempo destruidor secar as rosas das suas faces sem as colher [7] , se embranquecer os seus cabelos, ela verá também mudada a sua aspereza, quando já de nada lhe valerá ter mudado. Será para o Poeta o momento da vingança. E pergunta-se (-lhe) o leitor: "De que lhe valerá essa vingança?"
Poeta do amor irrealizado ou do que, realizado, não dura, porque o apartamento, temporário ou definitivo, tira a amada de seus braços, tenta contentar-se com "o gosto de ser triste" [8] ou de saber que seu sofrimento é lenitivo para outros amantes. Nenhum poema o dirá melhor do que o seguinte soneto:
Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas que não cansam de cansar-me,
Pois não abranda o fogo em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar,
Não canse o cego Amor de me guiar
A parte donde não saiba tornar-me,
Nem deixe o mundo todo de escutar-me
Enquanto me a voz fraca não deixar.
E se em montes, rios, ou em vales,
Piedade mora, ou dentro mora amor
Em feras, aves, prantas, pedras, ágoas,
Ouçam a longa história de meus males
E curem sua dor com minha dor,
Que grandes mágoas podem curar mágoas. (Rh, 65)
Soneto maneirista dos mais bem realizados pelo lúdico jogo de palavras: o mesmo verbo no mesmo ou em mais de um tempo verbal e com sujeitos diversos - "meus olhos não cansam", "tristezas que não cansam de cansar-me", "não abranda o fogo", "eu jamais pude abrandar", "piedade mora, ou dentro mora amor" -, ou o mesmo substantivo referido a mais de um possuidor - "curem sua dor com minha dor" -, e substituído por um quase sinônimo, tomado em sentido amplo - "grandes mágoas podem curar mágoas".
Esses são os consolos do sujeito lírico. Mas há as exceções em que vem à tona o Poeta feito "de carne e de sentidos", aquele que cria n'Os Lusíadas a Ilha dos Amores e a súplica de Vênus a Júpiter. Não com o mesmo desnudamento dos sentidos (ou do corpo), que a ação mitológica autorizava, mas com bastante realismo, o Poeta aborda o tema do desejo em alguns de seus poemas, dos quais destacamos o soneto "Pede o desejo, Dama, que vos veja" (Rh, 26), e as canções "Fermosa e gentil dama, quando vejo" (Rh, I) e "A instabilidade da Fortuna" (Rh, II).
No soneto, um dos mais belos de Camões, o desejo é de ver a Senhora: não apenas contemplá-la "dentro na [sua] alma" ("Dai-me ua lei, senhora, de querer-vos", Rh, 66), mas vê-la, o que implica um contato sensorial, seja ele apenas o da visão [9] :
Pede [10] o desejo, dama, que vos veja;
Não entende o que pede, está enganado;
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer, logo, o desejo o desejado,
Porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mi se dana,
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
Assi o pensamento (pola parte
Que vai tomar de mim, terreste, humana)
Foi, senhora, pedir esta baixeza.
Duas forças opostas atuam sobre o amante: a lúcida consciência de que o desejo se mata ao realizar-se - tal como a esperança, o desejo só existe in fieri - e a incapacidade de resistir ao apelo do amor, que o atrai tão inevitavelmente como o centro da Terra atrai a pedra lançada.
De início, é bastante puro o desejo expresso de ver, mas a insistência com que aparece este substantivo e seus cognatos (desejo, deseja, desejo, desejado, desejar) acompanhado do verbo pedir (três vezes) cria o tom do desejo obsessivo que arde por transformar "este amor tão fino e tão delgado" em "baixeza". O desejo pressiona o amante a que veja, mas este sabe que a fineza e pureza do amor o impedem de saber o que realmente quer. Sabe também que, para não faltar, o desejo não pode obter o desejado. Sabe ainda que este puro afeto se contamina do que o amante tem de humano e terreste, levando-o a "pedir esta baixeza" que é ainda vê-la, com um ver que perdeu a pureza inicial.
O soneto é estruturalmente cíclico. O primeiro e o último versos repetem-se quase integralmente: "Pede o desejo, dama, que vos veja", e: "Foi, Senhora, pedir esta baixeza". O mesmo verbo principal, o mesmo locutor, a mesma alocutária. Muda, porém, o sujeito, muda o tempo do verbo. No v.1, é o desejo o agente; no v. 14, é o pensamento, o que agrava a responsabilidade do amante-sujeito lírico, consciente de que pede e do que pede. O verbo, no início, está no presente: "Pede [...] que vos veja.", mas um presente que contém em si embutido um futuro - se pede é porque ainda não a viu, mas possivelmente a verá -; no fim, está no passado - em que também se embutiria um futuro que não se sabe se se realizou - "foi pedir". Assim, o soneto pode ser lido indefinidamente, recriando a obsessiva busca da realização amorosa, que não se efetua, pois, ao tentá-la, o amante a sente e qualifica como baixeza.
No soneto, como vimos, há um sentimento de culpa excessivo, pois que o máximo do desejo está - pelo menos no nível do explícito - em ver. Não é isso que encontramos nas supra-citadas canções. Em ambas o Poeta, ainda que seja por um momento, é arrastado a um desejo mais forte que o de apenas ver o objeto amado.
Entretanto, a canção ("Fermosa e gentil dama, quando vejo"), começa pela descrição da mulher e a afirmação do Poeta de que "De meu não quero mais que meu desejo, / Nem mais de vós que ver tão lindo gesto". Diz ainda - e parece-nos que pela única vez em sua obra - que se enamora de si mesmo por saber amá-la e "fico por mim só perdido de arte / Que hei ciúmes de mim por vossa parte". A vista dela lhe dá a vida e só de si se queixa por não conter "bem de tanto preço." Só então surge a terceira estrofe, que altera o fluir desse amor semelhante a tantos outros, irrompendo com violência inesperada:
Se, por algum acerto, Amor vos erra
Por parte do desejo, cometendo
Algum nefando e torpe desatino,
Se ainda mais que ver, enfim, pretendo,
Fraquezas são do corpo, qu'é de terra,
Mas não do pensamento, que é divino. (Rh, fo. 22 v) (Grifos meus)
Consciente da "baixeza" do desejo, busca desculpar-se com a beleza dela:
Se tão alto imagino
Que de vista me perco, peco nisto,
Desculpa-me o que vejo;
Que se, enfim, resisto
Contra tão atrevido e vão desejo,
Faço-me forte em vossa vista pura,
E armo-me [11] de vossa fermosura. (Ib.)
A canção se estende ainda por três estrofes e um commiato, mas o erotismo que se anunciara dilui-se, para reaparecer discretamente na última estrofe e no commiato no qual o Poeta usa de metalinguagem, referindo-se aos próprios versos como mezinha paliativa para o seu mal:
[...] não se ganha
Cum paraíso outro paraíso:
E assi, de enleada, a esperança
Se satisfaz co bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remédio,
Sabe, Canção, que porque não vejo,
Engano com palavras o desejo. (Rh, fo. 23 v)
Mais uma vez, como em tantas outras, o Poeta prefere o engano à dolorosa verdade. Não era isso que implorava o gigante, no "fim do mar": "Que te custava ter-me neste engano?"
A segunda canção, "A instabilidade da Fortuna", se compõe de sete estrofes e um commiato. As duas primeiras introduzem o poema, falando de temas que obsidiam o Poeta: "A instabilidade da Fortuna, / Os enganos suaves d'Amor cego", o desconcerto do Amor, as suas sem-razões. Nas estrofes seguintes, enumeram-se as ousadias do amante, o "baixo pensamento", o "baixo atrevimento", o "humano desejo", o fingimento, cada uma das quais terá castigo tremendo, só comparável aos dos personagens mitológicos que cometeram grandes faltas, como Tântalo: "De sede morto estou posto num rio, / Onde de meu serviço o fruito vejo; / Mas logo se alça se a colhê-lo venho, / E foge-me a ágoa, se beber porfio" (Rh, fo. 24 v); como Ixião, que, louco de amor, tomou a nuvem por Juno, iludiu-se e "A nuvem do contino pensamento / M'afigurou nos braços, e assi a tive, / Sonhando o que acordado desejei" (Rh, fo. 24 v); como Tício, cujo fígado e entranhas são devorados por um insaciável abutre, tem o coração continuadamente devorado pelo pensamento: "Assi que pera a pena estou vivendo, / Sou outro novo Tício e não m'entendo" (Rh, fo. 25); como Sísifo, deve "subir / Ao monte da aspereza que em vós [na amada] vejo, / Co pesado penedo do desejo" (Rh, fo. 25).
A palavra que se repete a cada estrofe é desejo, que na sétima é adjetivado com força extrema:
Destarte o sumo bem se me oferece
Ao faminto desejo, porque sinta
A perda de perdê-lo mais penosa. (Rh, fo. 25 v)
E a canção se encerra com a reafirmação da dor maior, a de descer ao inferno conhecendo as delícias do Paraíso:
Como o avaro a quem o sonho pinta
Achar tesouro grande, onde enriquece
E farta sua sede cobiçosa,
E acordando com fúria pressurosa
Vai cavar o lugar onde sonhava,
Mas tudo o que buscava
Lhe converte em carvão a desventura;
Ali sua cobiça mais se apura,
Por lhe faltar aquilo que esperava:
Destarte Amor me fez perder o siso.
Porque aqueles que estão na noite escura,
Nunca sentirão tanto o triste abiso,
Se ignorarem o bem do Paraíso. (Rh, fo. 25 v)
Como no soneto que comentamos, também nesta canção está presente o movimento cíclico do penar amoroso, pois todos os comparantes têm penas eternamente renovadas. Sofrimento reiterado, nestes casos, não pelo amor "limpo e puro", mas pelo desejo ardente, que "detença / Nunca sofreu" e que "sem tento / M'abre as chagas de novo ao sofrimento." (Rh, fo. 38).
[1] A transcrição dos textos camonianos será feita a partir das edições indicadas à frente das citações.
[2] "Que Júpiter te conceda ainda muitos invernos, ou que seja o último este em que, hoje, o mar Tirreno corrói as rochas que o limitam, sê prudente, filtra teus vinhos e reduz tuas longas esperanças à medida de tua breve vida. Enquanto falamos, fugirá, invejosa, a hora. Colhe o dia, fiando-te o menos possível no amanhã." (HORACE. Oeuvres. Paris: Garnier-Flammarion, 1967). (Grifo meu).
[3] RONSARD. Poésies choisies, I, p. 39. Classiques Larousse. Paris Vie: Librairie Larousse, s.d.
[4] "Vive, se crês em mim, não esperes por amanhã. Colhe desde hoje as rosas da vida." Ibidem, II, p. 53.
[5] "Colhe, colhe, tua juventude: como a esta flor, a velhice fará embaçar tua beleza." Ibidem, I, p. 39.
[6] São freqüentes na lírica camoniana as metáforas: estrelas = olhos, rosas = faces.
[7] Note-se que o Poeta não se refere apenas a estarem secas as rosas - seria impossível, decorridos os anos, manter-se a frescura das faces -; acrescenta "sem colhê-las", o que significa o terem ficado abandonadas, deixadas sós, sem a mão que as colhesse, abrigasse, afagasse, sem que o amor se realizasse. Ficara sem resposta o convite: "Collige, virgo, rosas."
[8] Canção X, v. 160 (Rh, fo. 40 v).
[9] Um dos sonetos em que canta as contradições do amor, "Tanto de meu estado m'acho incerto" (Rh, 3), fecha-o o Poeta pelo terceto: "Se me pregunta alguém por que assi ando, / Respondo que não sei; porém sospeito / Que só porque vos vi, minha senhora." Cito-o para assinalar a semelhança entre este e aquele: em ambos se afirma a importância do ver como realizador do desejo e criador da perplexidade amorosa.
[10] Em Rh está "Pede-me o desejo", verso hipermétrico, corrigido em Ri para "Pede-me o desejo". Neste passo seguimos Ri.
[11] Neste verso segue-se a 2ª ed., datada de 1598, por não fazer sentido a forma da 1ª ed.: "E arma-se de vossa formosura."