Estudos Camonianos

"Sobre os rios": a mudança da mudança

Não renegando a tradição lírica medieval, Camões leva ao mais alto grau a redondilha - maior e menor -, apenas não utilizando, da "medida velha", o verso de arte-maior [1] , e isso talvez porque julgasse que o substituíra o decassílabo italiano que largamente empregou, na esteira de Petrarca, Garcilaso e Boscán. Assim, a redondilha (sobretudo a maior) e o decassílabo são os pés métricos das duas vertentes da lírica camoniana: a medieval e a renascentista. Esta, bem mais extensa, inclui, além de parte da lírica, a épica; naquela, se incluem os três autos.

Dificilmente se poderia estabelecer o ponto mais alto das obras da "medida nova", enquanto que ninguém hesitaria em afirmar que a "medida velha" o encontra nas redondilhas de "Sobre os rios", que pretendemos analisar [2] .

Como a maioria dos poemas de tipo tradicional, este é a glosa de um mote [3] : o Salmo 136, cujos versículos o estruturam. Seus 365 versos, dispostos em 36 décimas e mais uma quintilha [4] , glosam os nove versículos, que transcrevemos, indicando os versos que lhes correspondem:

SALMO 136

1. Junto dos rios de Babilônia, ali nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião (1-45).

2. Nos salgueiros que lá havia, penduramos as nossas cítaras (46-120).

3. Os mesmos que nos tinham levado cativos pediam-nos que cantássemos [os nossos] cânticos. E os que à força nos tinham levado diziam: "Cantai-nos um hino dos cânticos de Sião". (121-40).

4. "Como cantaremos o cântico do Senhor em terra estranha?" (lhes respondemos) (141-80).

5. Se me esquecer de ti, Jerusalém, ao esquecimento seja entregue a minha direita (181-90).

6. Fique pegada a minha língua às minhas fauces, se eu não me lembrar de ti, se não me propuser Jerusalém como principal objetivo da minha alegria (191-280).

7. Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom, os quais, no dia [da ruína] de Jerusalém, diziam: "Destruí, destruí, até os fundamentos" (281-310).

8. Filha desgraçada [população] de Babilônia, bem-aventurado o que te der o pago do que nos fizeste sofrer (311-25).

9. Bem-aventurado o que apanhar às mãos, e fizer em pedaços contra uma pedra os teus filhinhos (326-65).

(Trad. do Pe. Matos Soares)

Que elementos fornece o salmo ao Poeta? O exílio da pátria, acarretando a cessação do canto, e o desejo de punição dos opressores. Dessa problemática coletiva dos filhos de Sião parte o Poeta para o seu problema pessoal - a busca da verdade única e essencial através de suas três verdades existenciais: a do poeta (cantor), a do amante, a do crente, que se refletem no poema em três áreas semânticas de extensão diversa, onde predomina largamente a do canto [5] . E o canto não é um só, mas dois - o do amor terreno e o do amor divino - inseridos no canto-poema; para simplificar as referências a uns e outros, usaremos as convenções: canto-poema = canto; canto do amor terreno = canto 1; canto do amor divino = canto 2; amor terreno = amor 1; amor divino = amor 2. No v. 335 surgirá a "cabeça do canto" [6] . Posto isso, esquematizemos o poema, mantendo a divisão básica dos versículos motivadores:

                                                         pranto (anos ð mudanças ð danos)

Versíc. 1, vv. 1-45: desterro em Babilônia ô

                                                         canto

("vejo-me a mim que espalho

   tristes palavras ao vento" 39-40)

 

Versíc. 2, vv. 46-120: cessação do canto 1 ï amor 1

("nunca em mim puderam tanto

   que, posto que deixe o canto,

   a causa dele deixase" 108-10)

                                                                                     pena cansa

Versíc. 3 e 4, vv. 121-80: questionamento da cessação do canto 1

                                                                                     menória não cansa;        voa      ð Sião

Versíc. 5-9: pragas contra os meios de comunicação do canto 1: canto 1           ð canto 2

                                                                                 frauta           ð lira dourada

 

 

 

 

Assim esquematizado, o poema revela que se estrutura em um jogo de oposições ou diferenças que se vão resolvendo pela absorção ou substituição do primeiro termo pelo segundo, considerados na ordem em que surgem no poema. São substituídos: o canto 1, pelo canto 2; a memória, pela reminiscência; a confusão, pela paz; a tristeza, pela alegria. São absorvidos, permanecendo nos que os absorvem e, sobretudo, servindo-lhes de degrau (vv. 244-50): o amor 1, pelo amor 2 e a particular beleza, pela beleza geral. Poderíamos propor uma série de homologias, cujos primeiros termos seriam a situação passada (lembrada pela memória) e a futura (desejada através da reminiscência):

  (1)          (2)            (3)        (4)        (5)          (6)

canto 1 =    memória     = confusão =  tristeza  =      amor 1 = beleza particular

canto 2                       reminiscência     paz        alegria         amor 2        beleza geral

e, nelas atentando, verificar que se podem reduzir a uma só:

canto 1  =         amor 1 ,

canto 2  amor 2

pois que a razão (2) contém, como acabamos de ver, o meio de atingir as outras; as razões (3) e (4) são apenas o sentimento provocado pela (5), causada esta, por sua vez, pela razão (6). O poema decorre, pois, desta homologia básica, não esquecendo, porém, que ela não é perfeita: enquanto na primeira razão houve substituição de um termo pelo outro (canto 1 por canto 2), na segunda houve absorção do amor terreno pelo divino (amor 1 por amor 2).

Insistindo ainda no binarismo da composição de "Sobre os rios", lembramos que o poema tem 365 versos e está dividido ao meio em duas situações: a primeira (vv. 1-175), temporal; a segunda (vv. 181-360), espacial. Os versos mediais (vv. 176-80) marcam a transição entre as duas situações, assim como os quase finais (vv. 356-60) que assinalam a passagem para a solução definitiva (confirmativa da segunda situação), também encarecendo a idéia de subida (vv. 179-80: "não canse para voar / a memória em Sião" e vv. 359-60: "tanto sobe o entendimento, / que fará se em ti se achar?"). Os cinco últimos versos resumem o desejo de beatitude que se veio exprimindo desde o verso 316. Um gráfico bastante simples ajudará a ver a mudança de eixo no meio do poema:

 

Nesta mudança do eixo temporal antes / agora para o eixo espacial aqui / ali, notamos que também se verifica o duplo fenômeno de substituição / absorção que tínhamos assinalado atrás: a Babilônia temporal se insere na terra de dor, enquanto que a Sião-tempo passado é substituída pela terra de Glória. A homologia

antes = aqui

agora ali

poderia ser considerada como contínua [7] , tanto o aqui e o agora se confundem:

     antes      =  aqui/agora

aqui/agora       ali

E se o antes é o passado trazido ao presente pela memória que o quer esquecer, o ali é o ante-passado, trazido ao presente pela reminiscência que o quer realizar num futuro eterno e, pois, atemporal. Num levantamento dos tempos verbais no poema, vê-se que predomina o passado: a princípio, quase único tempo usado; depois, cedendo o passo ao futuro, reforçado este pelos imperativos optativos. Os presentes são quase todos de aspecto durativo e, portanto, atemporal; muito poucos apontam para o aqui / agora (chamar-lhes-emos presentes temporais). Aquilo mesmo que o Poeta diz ser "o mal presente" (Babilônia) já é apresentado no perfeito do indicativo, pois que, presente em relação ao passado mais remoto (Sião), é anterior ao momento da enunciação que surge com nitidez da diferença entre as formas vi, usada oito vezes, e vejo (v. 39), acentuada por espalho e banho (vv. 39 e 42). É neste passo que, em metalinguagem feita no próprio discurso poético, o Poeta denuncia o que atrás chamamos canto-poema, de que é sujeito e objeto, este, a seu turno, sujeito do canto 1: "vejo-me a mim, qu'espalho / tristes palavras ao vento" ( vv. 39-40).

Do ponto espacial em que se coloca no enunciado, vê Babilônia tempo presente ali (vv. 6, 11, 16, 26), lugar onde em "sonho imaginado" relembra o passado, para voltar à triste realidade. O presente temporal voltará a surgir na segunda parte do poema e com ele a metalinguagem, desta vez remetendo ao canto 1 (v. 234) e ao canto 2 (vv. 235, 239, etc.). Deste presente se volta o Poeta para o futuro situado no não-tempo (pois que é o tempo da Eternidade), cuja presença se afirma sobretudo num espaço superior aonde se chega subindo (vv. 359, 364). Esse lugar da realização plena do homem, também o situa o Poeta ali, o que possibilita a inclusão de mais um membro na série homológica:

  ali 1  ,

  ali 2

não tão diversos como parecem à primeira vista, pois que o primeiro é degrau para o segundo na medida em que naquele o Poeta, depois de ter a ilusão da felicidade num espaço de sonho, que tudo mudou; mais ainda, que tudo muda inexoravelmente, com o passar do tempo: "E vi que todos os danos / se causavam das mudanças, / e as mudanças, dos anos" (vv. 21-3); ainda mais: "vi ò bem suceder mal, / e ò mal, muito pior" (vv. 24-5). Da certeza de que no ali terreno não há senão enganos, lhe vem o desejo de outro ali, onde, deixado para sempre o cansaço do mundo, "descanse eternamente" (v. 365).

Como se vê, Camões aqui insiste no tema da mudança, tão freqüente na sua lírica, em progressão cuja razão é sempre negativa, como nos versos acima: de bem para mal; deste, para pior. [8] Se nos restantes poemas é essa gradação descendente que fica como mensagem, em "Sobre os rios" ela só vale para a sua primeira metade; quando gira o eixo temporal sobre o espacial, Sião - "bem passado" que, lembrado no presente, "não é gosto, mas é mágoa" - perderá a notação de tempo e se identificará com a terra de Glória. Aliás, o momento de rotação é marcado pela ambigüidade, nos níveis do significante e do significado. Em nota aos versos 178-80, escreve o Prof. Hernâni Cidade:

A Sião que até aqui tem sido o tempo passado, passa agora a ser a felicidade futura, na glória de Deus? Eis duas questões a pôr: é já a Sião deste último verso a terra bem-aventurada ou da Glória, a Jerusalém celeste, a que se alude nas estrofes seguintes, desde o primeiro verso da imediata? E como se deu o salto de uma esfera de preocupação para outra?

Supôs o Dr. J. M. Rodrigues um intervalo de tempo entre a elaboração de uma e outra parte da poesia que explicasse tal surto do pensamento. Para o Dr. Agostinho de Campos, foi a doutrina platônica que sugeriu o novo rumo do vôo. O Dr. Salgado Júnior (Camões e "Sobre os rios", separata da revista Labor, 1956) é na própria ordem do Salmo que encontra a explicação da marcha ideológica.

E acrescenta seu próprio ponto de vista:

Todavia, na vaguidade desta composição bíblica, não é sensível o desnível dos dois planos. A sinonímia Sião-Jerusalém não há ali palavra que a impeça, e assim é atribuível à originalidade do Poeta, tanto o que em riqueza de conteúdo pessoal e humano meteu nas duas partes consideradas do Salmo, como a transição de plano para plano, independentemente do texto inspirador. [9]

A nosso ver, o salto foi antes uma rotação, como já dissemos, e o jogo com o significante pena o motivou: se cansar a pena (o canto 1) de cantar o que sente o coração (o amor 1), restam ao Poeta os segundos termos da homologia básica: amor 2 e canto 2. A pena que escreve, tornada pena de asa, pede o espaço em que voar, e voa, feita memória, para Sião (os dois significantes - pena e memória - remetem para um mesmo significado: que voa). Há que notar que o vôo da memória se processa segundo o eixo horizontal (temporal), aparentemente ainda em direção à Sião terrestre que, no verso seguinte, é chamada "terra bem-aventurada" (v. 181) e mais adiante (v. 201) "terra de glória", lembrada pela reminiscência. Este último significante é o primeiro a fazer cessar a ambigüidade, que se instalara no primeiro (Sião) e começara a desvanecer-se no segundo (terra bem-aventurada), e essa faixa de ambigüidade corresponde à passagem de um plano a outro, quando ainda não há nitidez de linhas e, surgida no nível da expressão, comunica-se ao do conteúdo.

Mas retomemos o fio interrompido pela tentativa de justificar o mecanismo da mudança de planos, voltando ao que dizíamos: que só na primeira parte do poema se constata uma progressão descendente. Na verdade, a partir do verso 180, e por um processo de despojamento gradativo das coisas terrenas e assunção de compromissos para com as divinas, transita-se da tristeza para a alegria, da confusão, para a paz. E vale ressaltar que, entre as coisas terrenas que é preciso alijar - os afeitos, a carne, os pensamentos recentes -, não se inclui o amor que, sublimado, fará "grao para a virtude". Assim, pois, encontramos excepcionalmente em Camões a mudança do mal para o bem, neste incluído o amor à "humana figura" da mulher amada, tomada embora - e apenas - como "sombra daquela idea / qu'em Deos está mais perfeita" (vv. 224-5).

Poderemos considerar este poema como representativo da mais plena afirmação das três verdades existenciais - a do poeta, a do amante, a do crente -, transpostas as duas primeiras para a última, única capaz de realizar em plenitude o homem? Parece-nos que sim: que só a mão do "senhor e grão capitão / da alta torre de Sião" (vv. 276-7) poderá sustê-lo na mudança em declive e levá-lo a gozar, uma vez ao menos, a mudança da mudança.

 

"Sobre os rios"

(Rh, fo. 135 r - 139 r)

 


      Sobre os rios que vão

      por Babilônia m'achei,

      onde sentado chorei

      as lembranças de Sião,

5    e quanto nela passei.

      Ali o rio corrente

      de meus olhos foi manado;

      e, tudo bem comparado,

      Babilônia, ao mal presente,

10   Sião, ao tempo passado.

     

      Ali lembranças contentes

      n'alma se representaram,

      e minhas cousas ausentes

      se fizeram tão presentes

15   como se nunca passaram.

      Ali, depois de acordado,

      co rosto banhado em ágoa,

      deste sonho imaginado,

      vi que todo o bem passado

20   não é gosto, mas é mágoa.

     

      E vi que todos os danos

      se causavam das mudanças,

      e as mudanças, dos anos;

      onde vi quantos enganos

25   faz o tempo às esperanças.

      Ali vi o maior bem

      quão pouco espaço que dura,

      o mal quão depressa vem,

      e quão triste estado tem

30   quem se fia da ventura.

     

      Vi aquilo que mais val,

      que então se entende milhor

      quando mais perdido for;

      vi ò bem suceder mal,

35   e ò mal, muito pior.

      E vi com muito trabalho

      comprar arrependimento;

      vi nenhum contentamento,

      e vejo-me a mim, qu'espalho

40   tristes palavras ao vento.

     

      Bem são rios estas ágoas

      com que banho este papel;

      bem parece ser cruel

      variedade de mágoas

45   e confusão de Babel.

      Como homem que, por exemplo

      dos trances em que se achou,

      despois que a guerra deixou,

      pelas paredes do templo

50   suas armas pendurou,

     

      assi, despois que assentei

      que tudo o tempo gastava,

      da tristeza que tomei

      nos salgueiros pendurei

55   os órgãos com que cantava.

      Aquele instrumento ledo

      deixei da vida passada,

      dizendo: música amada,

      deixo-vos neste arvoredo

60   à memória consagrada.

     

      Frauta minha, que, tangendo,

      os montes fazíeis vir

      pera onde estáveis, correndo,

      e as ágoas que iam decendo

65   tornavam logo a subir,

      jamais vos não ouvirão

      os tigres, que se amansavam,

      e as ovelhas, que pastavam,

      das ervas se fartarão,

70   que, por vos ouvir, deixavam.

     

      Já não fareis docemente

      em rosas tornar abrolhos

      na ribeira florescente,

      nem poreis freo à corrente,

75   e mais, se for dos meus olhos.

      Não movereis a espessura,

      nem podereis já trazer

      atrás vós a fonte pura,

      pois não podestes mover

80   desconcertos da ventura.

     

      Ficareis oferecida

      à fama, que sempre vela,

      frauta de mim tão querida,

      porque, mudando-se a vida,

85   se mudam os gostos dela.

      Acha a tenra mocidade

      prazeres acomodados,

      e logo a maior idade

      já sente por pouquidade

90   aqueles gostos passados.

     

      Um gosto que hoje se alcança

      amanhã já o não vejo:

      assi nos traz a mudança

      de esperança em esperança

95   e de desejo em desejo.

      Mas em vida tão escassa

      que esperança será forte?

      Fraqueza da humana sorte

      que, quanto da vida passa,

100 está receitando a morte.

     

      Mas deixar nesta espessura

      o canto da mocidade,

      não cude a gente futura

      que será obra da idade

105 o que é força da ventura:

      que idade, tempo, o espanto

      de ver quão ligeiro passe,

      nunca em mim poderam tanto

      que, posto que deixe o canto,

110 a causa dele deixasse.

     

      Mas, em tristezas e enojos,

      em gosto e contentamento,

      por sol, por neve, por vento,

      terné presente a los ojos

115 por quien muero tan contento.

      Órgãos e frauta deixava,

      despojo meu tão querido,

      no salgueiro que ali estava,

      que para trofeo ficava

120 de quem me tinha vencido.

     

      Mas lembranças da afeição

      que ali cativo me tinha

      me preguntaram então

      que era da música minha,

125 que eu cantava em Sião.

      Que foi daquele cantar

      das gentes tão celebrado?

      Por que o deixava de usar,

      pois sempre ajuda a passar

130 qualquer trabalho passado?

     

      Canta o caminhante ledo

      no caminho trabalhoso,

      por antr'o espesso arvoredo,

      e de noite o temeroso,

135 cantando, refrea o medo.

      Canta o preso docemente,

      os duros grilhões tocando;

      canta o segador contente

      e o trabalhador, cantando,

140 o trabalho menos sente.

     

      Eu, qu'estas cousas senti

      n'alma de mágoas tão chea,

      como dirá, respondi,

      quem tão alheo está de si,

145 doce canto em terra alhea?

      Como poderá cantar

      quem em choro banh'o peito?

      Porque, se quem trabalhar

      canta por menos cansar,

150 eu só descansos enjeito.

     

      Que não parece razão,

      nem seria cousa idônea,

      por abrandar a paixão,

      que cantasse em Babilônia

155 as cantigas de Sião.

      Que, quando a muita graveza

      de saüdade quebrante

      esta vital fortaleza,

      antes moura de tristeza

160 que por abrandá-la cante.

     

      Que, se o fino pensamento

      só na tristeza consiste,

      não tenho medo ao tormento;

      que morrer de puro triste,

165 que maior contentamento?

      Nem na frauta cantarei

      o que passo e passei já,

      nem ao menos o escreverei,

      porque a pena cansará

170 e eu não descansarei.

     

      Que, se vida tão pequena

      s'acrescenta em terra estranha

      e se amor assi o ordena,

      rezão é que canse a pena

175 de escrever pena tamanha.

      Porém, se pera assentar

      o que sente o coração

      a pena já me cansar,

      não canse para voar

180 a memória em Sião.

     

      Terra bem-aventurada,

      se, por algum movimento,

      d'alma me fores mudada.

      minha pena seja dada

185 a perpétuo esquecimento.

      A pena deste desterro,

      que eu mais desejo esculpida

      em pedra, ou em duro ferro,

      essa nunca seja ouvida,

190 em castigo de meu erro.

     

      E se eu cantar quiser

      em Babilônia sojeito,

      Hierusalém, sem te ver,

      a voz, quando a mover,

195 se me congele no peito.

      A minha língua se apegue

      às fauces, pois te perdi,

      se, enquanto viver assi,

      houver tempo em que te negue

200 ou que me esqueça de ti.

     

      Mas ó tu, terra de glória,

      se eu nunca vi tua essência,

      como me lembras na ausência?

      Não me lembras na memória,

205 senão na reminiscência.

      Que a alma é tábua rasa,

      que, com a escrita doutrina

      celeste, tanto imagina,

      que voa da própria casa

210 e sobe à pátria divina.

     

      Não é logo a saüdade

      das terras onde nasceo

      a carne, mas é de ceo,

      daquela santa cidade,

215 donde esta alma descendeo.

      E aquela humana figura,

      que cá me pôde alterar,

      não é quem s'há de buscar,

      é raio da fermosura

220 que só se deve de amar.

     

      Que os olhos e a luz que atea

      o fogo que cá sojeita,

      não do sol, mas da candea,

      é sombra daquela idea

225 qu'em Deos está mais perfeita.

      E os que cá me cativaram

      são poderosos [a]feitos

      que os corações têm sojeitos:

      sofistas que m'ensinaram

230 maos caminhos por direitos.

     

      Destes o mundo tirano

      me obriga, com desatino,

      a cantar ao som do dano

      cantares de amor profano

235 por versos de amor divino.

      Mas eu, lustrado co santo

      raio, na terra de dor,

      de confusão e d'espanto,

      como hei de cantar o canto

240 que só se deve ao Senhor?

     

      Tanto pode o benefício

      da graça, que dá saúde,

      que ordena que a vida mude:

      e o que tomei por vício

245 me fez grao pera a virtude.

      E faz que este natural

      amor, que tanto se preza,

      suba da sombra ao Real,

      da particular beleza

250 para a beleza geral.

     

      Fique logo pendurada

      a frauta com que tangi,

      ó Hierusalém sagrada,

      e tome a lira dourada

255 para só cantar de ti,

      não cativo e ferrolhado

      na Babilônia infernal,

      mas dos vícios desatado

      e cá desta a ti levado,

260 pátria minha natural.

     

      E se eu mais der a cerviz

      a mundanos acidentes,

      duros, tiranos e urgentes,

      risque-se quanto já fiz

265 do grão mundo dos viventes.

      E, tomando já na mão

      a lira santa e capaz

      doutra mais alta invenção,

      cale-se esta confusão,

270 cante-se a visão de paz.

     

      Ouça-me o pastor e o Rei,

      retumbe este acento santo,

      mova-se no mundo espanto,

      que, do que já mal cantei,

275 a palinódia já canto.

      A vós só me quero ir,

      senhor e grão capitão

      da alta torre de Sião,

      à qual não posso subir

280 se me vós não dais a mão.

     

      No grão dia singular

      que na lira o douto som

      Hierusalém celebrar,

      lembrai-vos de castigar

285 os roins filhos de Edom.

      Aqueles que tintos vão

      no pobre sangue inocente,

      soberbos co poder vão,

      arrasai-os igualmente,

290 conheçam que humanos são.

     

      E aquele poder tão duro

      dos efeitos com que venho,

      que encendem alma e engenho,

      que já me entraram o muro

295 do livre alvidrio que tenho,

      estes que, tão furiosos,

      gritando, vêm a escalar-me,

      maos [e]spíritos danosos,

      que querem, como forçosos,

300 do alicerce derrubar-me,

     

      derrubai-os, fiquem sós,

      de forças fracos, imbeles,

      porque não podemos nós

      nem com eles ir a vós,

305 nem sem vós tirar-nos deles.

      Não basta minha fraqueza

      para me dar defensão,

      se vós, santo capitão,

      nesta minha fortaleza

310 não poserdes guarnição.

     

      E tu, ó carne, que encantas,

      filha de Babel tão fea,

      toda de misérias chea,

      que mil vezes te levantas

315 contra quem te senhorea,

      beato só pode ser

      quem, co'a ajuda celeste,

      contra ti prevalescer,

      e te vier a fazer

320 o mal que lhe tu fizeste;

     

      quem, com disciplina crua,

      se fere mais que ua vez,

      cuja alma, de vícios nua,

      faz nódoas na carne sua

325 que já a carne n'alma fez;

      e beato quem tomar

      seus pensamentos recentes

      e, em nascendo, os afogar,

      por não virem a parar

330 em vícios graves e urgentes;

     

      quem com eles logo der

      na pedra do furor santo

      e, batendo, os desfizer

      na pedra que veo a ser

335 enfim cabeça do canto;

      quem, logo quando imagina

      nos vícios da carne má,

      os pensamentos declina

      àquela carne divina

340 que na cruz esteve já;                               

     

      quem do vil contentamento

      cá deste mundo visível,

      quanto ao homem for possível,

      passar logo o entendimento

345 para o mundo inteligível,

      ali achará alegria,

      em tudo perfeita e chea

      de tão suave harmonia,

      que nem por pouca recrea,

350 nem por sobeja enfastia.

     

      Ali virá tão profundo

      mistério na suma alteza,

      que, vencida a natureza,

      os mores faustos do mundo

355 julgue por maior baixeza.

      Ó tu, divino aposento,

      minha pátria singular,

      se só com te imaginar

      tanto sobe o entendimento,

360 que fará se em ti se achar?

 

      Ditoso quem se partir

      para ti, terra excelente,

      tão justo e tão penitente,

      que, despois de a ti subir

365 lá descanse eternamente.


 

 

 

edição da Aguilar (CAMÕES, Luís de. Obra completa. Organização, introdução, comentários e anotações do Prof. Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963

In: MENÉNDEZ PELAYO, Antología de los poetas líricos castellanos. Santander: Aldus S.A., 1944-5, vol. IV

SILVEIRA, Sousa da. Textos quinhentistas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945,

(Caldas Aulete)

[1] CIDADE, Hernâni, org. Obras completas de Luís de Camões, vol. I, 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1954,



[1] Apenas duas vezes o usou: na parte inicial de El-rei Seleuco e nas "Endechas" iniciadas pelo v. "Vós sois ua dama" (CAMÕES, Luís de. Obras completas, com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, vol. I, 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1954, pp. 166-75), que, na edição da Aguilar (CAMÕES, Luís de. Obra completa. Organização, introdução, comentários e anotações do Prof. Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963, p. 647), são intituladas "Estanças na medida antiga que têm duas contrariedades, louvando e deslouvando ua Dama".

[2] V. o poema em apêndice a este ensaio. Usamos o texto da edição das Rhythmas (1595), modernizando a grafia e pontuando discretamente (cf. Introdução a este volume). So recorremos à 2a. edição (Rimas, 1598) em alguns versos onde esta nos pareceu nitidamente melhor: vv. 100, 213, 227, 248.

[3] Usamos mote em sentido amplo, pois que, a rigor, o mote só poderia ter um ou dois versos; se tivesse dois ou três, chamar-se-ia vilancete e, se fosse de quatro ou mais, cantiga (cf. ENZINA, Juan del. "Arte de poesía castellana". In: MENÉNDEZ PELAYO, Antología de los poetas líricos castellanos. Santander: Aldus S.A., 1944-5, vol. IV, p. 42).

[4] Nas duas primeiras edições, no entanto, a copla iniciada no v. 331 prolonga-se até ao v. 345; do v. 346 até ao fim (v. 365), formam-se duas coplas de dez versos. Alguns editores das Rimas agruparam erroneamente os versos em quintilhas, mas já se recuperou há bastante tempo o recorte original, com a correção das estrofes finais. Na terminologia da época, que encontramos em ENZINA, op. cit., p. 39, chamava-se ao que hoje chamamos verso; verso, ao conjunto de pés (até seis); ao acoplamento de versos, dava-se o nome de copla. Poderíamos, pois, dizer que o nosso poema se compõe de trinta e seis coplas de dois versos de cinco pés e mais um verso de cinco pés (cf. "A dimensão tradicional na poesia lírica camoniana", neste volume.)

[5] O substantivo canto aparece quatro vezes, cantigas uma vez, os instrumentos musicais - frauta, órgão, lira, instrumento - onze vezes e o verbo cantar dezenove. Na mesma área semântica, mas mais especificamente referidos ao verso escrito, temos escrever e assentar (uma vez cada), versos (uma) e pena (quatro vezes). E ainda as partes do corpo que possibilitam a comunicação oral: voz e língua, explícitas no texto, e a dextra, explícita no texto bíblico e aqui implícita na pena.

[6] "Cabeça do canto é o caput anguli do Salmo CXVII, 22: 'Lapidem quem reprobaverunt aedificantes, hic factus est in caput anguli', isto é, 'a pedra que os edificadores rejeitaram, esta foi convertida em cabeça do canto (ou 'do ângulo').' explica Fillion (Le nouveau psautier du Bréviaire Romain, Paris, 1920, p. 50): 'Caput anguli. C'est à dire une pierre qui, placée à l'angle de deux murs, les relie l'un à l'autre et en soutient les fondements: elle joue donc un rôle important dans un édifice.' O mesmo Fillion ensina que, 'em sentido mais perfeito, mais completo, era a figura do próprio Cristo.'" In: SILVEIRA, Sousa da. Textos quinhentistas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 53.

[7] Proporção contínua: "Progressão em que o conseqüente de cada razão é igual ao antecedente da seguinte." (Caldas Aulete)

[8] Razão positiva, só a vê o Poeta na natureza em que, pelo eterno retorno das estações, é possível reencontrar, depois do inverno, a primavera; e o confronto entre a natureza e o homem não faz senão agravar-lhe a dor da irrealização.

[9] CIDADE, Hernâni, org. Obras completas de Luís de Camões, vol. I, 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1954,  p. 109-10.