Estudos Camonianos

Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual

um Jogo Intertextual

     

Dois poemas, dois poetas. Quatro séculos de permeio. O primeiro, a lançar sobre os pósteros a sombra incômoda de sua glória - Luís Vaz de Camões -; o segundo, mal ocultando a dificuldade de suportar-lhe a grandeza, na previsão da vinda de um poeta máximo, um super-Camões em que facilmente o descobrimos sob o transparente disfarce - Fernando Pessoa.

Eis o que este escrevia, aos vinte e quatro anos, nas páginas da revista A Águia:

A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que encarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. [...] Super-Camões lhe chamamos, e lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça favorecer, antes amesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta. (NPP, p. 78) [1]

Atente-se para este breve texto e destaquem-se dois vocábulos compostos, inventados por Pessoa: "Super-Camões" e "ainda-primeiro". O Poeta que foi até então o primeiro, deixará de sê-lo quando, "proximamente vindouro", chegar o que encarnará o auge da poesia portuguesa, o que lhe será superior em grau e ordem. Mesmo considerando as restrições aqui feitas, em que se diz que o novo poeta será de grau e de ordem superiores ao antigo - o que já estaria explícito no prefixo super-, usado na sua nomeação -, a só escolha deste Poeta como elemento de comparação coloca-o no ponto mais alto em relação a todos os que o precederam e seguiram, até ao momento da enunciação. Estar acima de alguém que não está no topo pode ainda ser  estar abaixo de quem nele está; portanto, o ponto de referência para o novo poeta não nomeado que estará surgindo - e não é difícil decifrar o enigma - é ainda e sempre Camões. Incomodado pela grandeza do Poeta, não consegue contudo escapar ao seu fascínio. Uma pequena descoberta que fiz entre os papéis deixados por Pessoa, e que constituem o Espólio III da Biblioteca Nacional de Lisboa, parece-me confirmar o que digo. Numa página atribuída a Álvaro de Campos, na qual ele dá breves definições de grandes homens, não apenas poetas, entre os quais estão Dante e Shakespeare, por exemplo, encontra-se, brevíssima e muito possivelmente interrompida, a de Camões: "Camões, nau a meio caminho", corrigida na linha superior a palavra caminho por carinho, o que dará a leitura: "Camões, nau a meio carinho". Não há data na página. Nenhuma indicação no papel, que possibilite datá-lo. Mais um mistério indecifrável: quando terá Pessoa, pela voz de Campos, feito este retrato enternecido em que o Poeta cantor de naus é nau ele mesmo, a navegar, não por um caminho, como todas as naus, mas por um carinho daquele que, num sonho megalômano, aspira a superá-lo?  E não se esqueça que é Álvaro de Campos quem o diz, aquele dos heterônimos em quem pôs Pessoa "toda a emoção que não [deu] nem a [si] nem à vida" e que, por isso mesmo, é capaz de ter e de exprimir o carinho pelo Poeta maior.

Na obra poética pessoana Camões não é citado. No entanto, com nenhum outro estabeleceu o poeta tão patente intertextualidade, perceptível por qualquer leitor d'Os Lusíadas que se depare com o pequenino volume de Mensagem.

Em ambos os poemas patenteia-se o orgulho da expansão de Portugal em versos como este de Camões:<ME=24,EL=1,MP=0> "E, se mais mundo houvera, lá chegara." (VII, 14), ou estes de Fernando Pessoa: "<ME=24,EL=1,MP=0>O mar com fim será grego ou romano: / O mar sem fim é portuguez." (M, p. 54)

Fácil será àquele que se inicia na leitura de Os Lusíadas prever, pelo título, a matéria do poema. De portugueses e, conseqüentemente, de Portugal é que se fala. Não tão óbvia a conclusão em se tratando de Mensagem, a não ser que se saiba que o primeiro título escolhido para o pequeno volume de versos foi Portugal. Se este tivesse sido mantido, o jogo intertextual começaria a existir nos títulos. Os Lusíadas, isto é, os habitantes, no poema do século XVI; Portugal, o país, no poema do século XX. No primeiro, o Poeta se diz motivado por

[...] amor da pátria não movido

De prémio vil, mas alto e quasi eterno,

Que não é prêmio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno. (Lus., I, 10)

no segundo, o poeta apresenta a visão da pátria, tal como a vê "um nacionalista místico, um sebastianista racional".

Seguindo o tradicional encadeamento da narrativa épica, desde Homero, Camões inicia o poema in medias res, isto é, não pelo princípio, cronologicamente, mas pelo momento fundamental em que os portugueses já estão a caminho de Melinde, onde serão bem acolhidos pelo rei e pela gente, esperançosos de deles receber o piloto hábil e seguro que os há de levar à Índia. O rei indaga de Vasco da Gama quem são estes navegantes que ali acabam de aportar:

Mas antes, valeroso Capitão,

Nos conta, lhe dizia, diligente

Da terra tua o clima e região

Do Mundo, onde morais, distintamente,

E assi de vossa antiga geração,

E o princípio do Reino tão potente,

Cos sucessos das guerras, do começo,

Que, sem sabê-las, sei que são de preço. (Lus., II, 109)

Detém o Poeta a narração para invocar Calíope, a musa da epopéia, a rainha das musas, e passa a palavra a Vasco da Gama, que será o narrador de toda a história de Portugal, começando por situar no mundo a Europa, e nela os vários países e povos, até chegar à península ibérica, seu extremo ocidental, caracterizada "como cabeça ali de Europa toda". Nesta cabeça estão vários povos que habitam a península, até chegar a Portugal:

Eis aqui, quasi cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano,

Onde a Terra se acaba e o Mar começa

E onde Febo repousa no Oceano. (Lus., III, 20)

No primeiro poema de Mensagem, Pessoa assim apresenta a Europa:

A Europa jaz, posta nos cotovellos:

De Oriente a Occidente jaz, fitando,

E toldam-lhe romanticos cabellos

Olhos gregos, lembrando.

 

O cotovello esquerdo é recuado;

O direito é em angulo disposto.

Aquelle diz Italia onde é pousado;

Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

 

Fita, com olhar sphyngico e fatal,

O Occidente, futuro do passado.

 

O rosto com que fita é Portugal. [2] (M, p. 15)

"Quase cume da cabeça", "onde a terra se acaba e o mar começa", diz Camões; "rosto com que fita o Occidente", diz Pessoa. A este Occidente buscado com olhos portugueses chegarão os navegantes peninsulares, saindo da praia "onde a terra se acaba" e seguindo pelo mar, a transpô-lo, para por ele chegar ao "futuro do passado". E é bom que nos lembremos de que neste Occidente e, pois, neste futuro estamos nós.

N'Os Lusíadas, há dois momentos em que se narra a história de Portugal desde as suas raízes: longamente, no primeiro, abreviadamente, no segundo. No primeiro, fala Vasco da Gama ao rei de Melinde, começando, como vimos, pela localização da terra pátria, e continuando por dar-lhe a origem mítica:

Esta foi Lusitânia, derivada

De Luso ou Lisa, que de Baco antigo

Filhos foram, parece, ou companheiros,

E nela antão os Íncolas primeiros. (Lus., III, 21);

no segundo, Paulo da Gama começa a explicar ao Catual o significado histórico das bandeiras que estão na sua nau, novamente voltando à origem:

Este que vês é Luso, donde a fama

O nosso Reino Lusitânia chama. (Lus., VIII, 2)

Segue-se-lhe imediatamente Ulisses, caracterizado como aquele que "Cá na Europa Lisboa ingente funda". (Lus., VIII, 5).

No relato de Vasco da Gama, este, ao historiar as lutas de Afonso Henriques contra os mouros para reconquistar-lhes os territórios em que se instalaram, vai descendo de Norte a Sul, chegando a Lisboa, à qual se dirige, fazendo-a sua alocutária, lembrando-lhe também que foi edificada pelo "facundo" Ulisses, de cujo nome se deriva o seu (em sua forma antiga, Ulissipo ou Olissipo, tal semelhança é realmente grande):

E tu, nobre Lisboa, que no Mundo

Facilmente das outras és princesa,

Que edificada foste do facundo

Por cujo engano foi Dardânia acesa,

Tu, a quem obedece o Mar profundo,

Obedeceste à força Portuguesa

Ajudada também da forte armada

Que das Boreais partes foi mandada. (Lus., III, 57)

Em Mensagem, na genealogia fundadora de Portugal, não se fala em Luso: Ulisses é o único na origem mítica da Pátria. A ele é dedicado o primeiro poema, que tem seu nome e cujo primeiro verso, de extrema e expressiva concisão, já se tornou axiomático: "O mito é o nada que é tudo."

N'Os Lusíadas, bem antes do Gama, que de Luso não falará, Júpiter, no Consílio do Olimpo, designa os portugueses como a "forte gente de Luso" e, num processo retórico bastante usado, louva-os no seu passado, a dizer que o não faz:

Deixo, Deoses, atrás a fama antiga,

Que co'a gente de Rómulo alcançaram,

Quando com Viriato na inimiga

Guerra Romana tanto se afamaram. (Lus., I, 26)

Ainda não portugueses, mas lusitanos, sob o comando deste herói, não mais lendário, mas ainda pré-histórico em relação a Portugal, pois que anterior a este como nação, lutam esses homens por sua independência.

Na Mensagem, "Viriato" é o segundo castelo, poema em três quartetos; no último, a sua definição altamente poética:

Teu ser é como aquela fria

Luz que precede a madrugada,

E é já o ir a haver o dia

Na antemanhã, confuso nada. (M, p. 20)

Passando pela origem mítica e pela que chamei pré-histórica, chega Fernando Pessoa à proto-história, com o Conde D. Henrique: ainda não existe Portugal, apenas um Condado, o Portucalense. Citam-no os dois narradores camonianos: Paulo chama-lhe "O grão progenitor dos Reis primeiros" (Lus., VIII, 9); Vasco diz "Que do Mundo os mais fortes igualava, / Que de tal pai tal filho se esperava." (Lus., III, 28)

Pessoa faz de D. Henrique um agente inconsciente da vontade divina, a perguntar-se o que fazer:

À espada em tuas mãos achada

Teu olhar desce.

"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a e fez-se. (M, p. 21)

Assim, imprime Fernando Pessoa a marca da predestinação na história de Portugal, como, aliás, já fizera na epígrafe geral ao poema: "Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum." Marcados com o sinal; Camões chamara-lhes "assinalados". Com D. Tareja forma D. Henrique o par de que se origina a primeira dinastia de Portugal, a de Borgonha, e Pessoa só vê nela a "mãe de reis e avó de imperios". Não a vemos assim n'Os Lusíadas, poema que enquadro em duas das linhas que chamei "linhas mestras da literatura portuguesa": o nacionalismo laudatório e o nacionalismo crítico, mesmo ciente de que só o relato laudatório dos fatos e dos personagens históricos se coaduna com o conceito clássico de epopéia. Se se apontam no conde apenas qualidades, D. Tareja é julgada com severidade extrema: mãe "que tão pouco o parecia, / A seu filho negava o amor e a terra.", que "erra / Contra Deus, contra o maternal amor"; mãe que "peca muito mais" que Progne ou que Medéia, pois suas causas principais de erro são carregadas de "incontinência má, cobiça feia".

Estamos diante da primeira rainha de Portugal, aquela em que Pessoa apenas vê a "mãe de reis e avó de impérios". E Camões se permite acusá-la do crime maior numa mulher - o não saber ser mãe. Até então, o poema se poderia inscrever na linha mestra do nacionalismo laudatório; aqui já se inclui na do nacionalismo crítico, que se manifestará ao longo do poema com crescente intensidade, o que contribui para que a epopéia deixe de sê-lo stricto sensu, até porque nela se imiscui o Poeta - não apenas narrador em verso, mas sujeito poético, denunciando-se como tal, e por vezes tão participante que se projeta entre os personagens narrados / cantados. A isso se há de voltar.

O primeiro momento da história propriamente dita de Portugal vem com o seu primeiro rei, Afonso Henriques, cantado por Camões em cinqüenta e cinco oitavas - mais que qualquer dos seus descendentes. A ele Pessoa dedica um dos seus mais breves, mas mais incisivos poemas - dois quartetos - em que se dirige a ele, pedindo-lhe:

Pae, foste cavalleiro.

Hoje a vigilia é nossa.

Dá-nos o exemplo inteiro

E a tua inteira força! (M, p. 24)

A partir de Afonso Henriques, Camões vai apresentando, um a um, todos os reis. Pessoa salta por cima dos quatro seguintes, detendo-se em D. Dinis. Neste louva Camões a liberalidade, o florescimento do reino, a implantação da paz, a construção de fortalezas e castelos, o estímulo aos estudos, criando a primeira Universidade portuguesa, tudo em três estrofes de tom bastante contido. Não ressalta as duas funções que lhe deram os epítetos pelos quais ficou mais conhecido: rei trovador e rei lavrador. Pessoa, sem citá-los, faz deles a matéria de um dos mais perfeitos poemas de Mensagem:

Na noite escreve um seu cantar de amigo

O plantador de naus a haver,

E ouve um silencio murmuro comsigo:

É o rumor dos pinhaes que, como um trigo

De Imperio, ondulam sem se poder ver.

 

Arroio, esse cantar, jovem e puro,

Busca o oceano por achar;

E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,

É a voz presente desse mar futuro,

É a voz da terra anciando pelo mar. (M, p. 25)

Poeta, o rei faz versos-arroios que buscam o oceano e planta pinhais que serão futuras naus; aos seus ouvidos chega um silêncio múrmuro feito do rumor dos pinhais, do marulho do oceano e - não dito, mas sentido - da melodia dos versos. Neste som misto e consonante estão o poeta e o lavrador, o presente e o futuro, a terra e o mar, está todo Portugal.

Prossegue Camões em sua rota, enumerando todos os reis: Pessoa deixa de lado Afonso IV, Pedro e Fernando, passando em branco o episódio dos amores de Pedro e Inês, e indo deter-se em D. João I e sua mulher, D. Filipa, unindo-os num novo par gerador de príncipes de uma nova dinastia, a de Avis. A D. João dedicam Os Lusíadas cinqüenta estrofes (quase tantas quantas mereceu D. Afonso I) onde se glorifica o rei, dando particular realce à batalha de Aljubarrota. De D. Filipa nada se diz; na verdade, há no poema bem pouco espaço para rainhas, exceção feita para a dura acusação a D. Tareja e a simpática atuação de D. Maria, filha de Afonso IV e mulher de Afonso XI de Castela, intercedendo junto ao pai a favor do marido, na luta contra os mouros. A grande figura feminina no plano dos humanos é Inês; as outras pertencem ao plano dos deuses. Na Mensagem, só há duas mulheres: Tareja e Filipa, duas rainhas, definidas como geratrizes de impérios. Não se nota, nos dois poemas que lhes são dedicados, a distância moral que há entre as duas: uma, marcada pelo erro, pelo pecado; outra, pela virtude. É mesmo surpreendente que a D. Tareja toque um poema de quatro estrofes e a D. Filipa, de apenas duas. O segundo, porém, a caracteriza por um sintagma muito simples, que perfeitamente lhe convém, "rosto sério", e por um belo e expressivo epíteto, que dela faz alguém muito especial: "Princeza do Santo Graal". Ouçamos o poema:

Que enigma havia em teu seio

Que só genios concebia?

Que archanjo teus sonhos veio

Vellar, maternos, um dia?

 

Volve a nós teu rosto sério,

Princeza do Santo Gral,

Humano ventre do Imperio,

Madrinha de Portugal! (M, p. 27)

Ao passo que Camões continua metodicamente a sua lista de reis, que o levará até D. Manuel, Pessoa interrompe a sua seqüência real ao fim dos Castelos, e passa às quinas que são os quatro filhos de D. João I (Camões deles disse "Ínclita geração, altos infantes!"), mais D. Sebastião. Destes, só o primeiro e o quinto são reis. Une-os a todos, porém, o fato de serem, os cinco, aqueles que passaram à história não pelo vencer, mas pelo suportar; não pela glória, mas pelo sacrifício. Por isso são quinas, não castelos. A D. Duarte consagra Camões três estrofes de que ressalta a tristeza e o desconsolo:

Não foi do Rei Duarte tão ditoso

O tempo que ficou na suma alteza,

Que assi vai alternando o tempo iroso

O bem co mal, o gosto coa tristeza. (IV, 51)

Pessoa retoma este sentimento, mas encontrando algo de muito positivo na reação do rei que é o sujeito lírico:

Firme em minha tristeza, tal vivi.

Cumpri contra o Destino o meu dever.

Inutilmente? Não, porque o cumpri. (M, p. 31)

A simulação de diálogo interno, com questionamento e resposta de alta dignidade, faz-nos lembrar Mar portuguez: "Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena." (M, p. 64). O cumprimento do dever está acima do resultado que se possa ou não alcançar.

Assim são os príncipes simbolizados nas quinas: "compra[m] a glória com desgraça". (M, p.16). D. Fernando, o infante Santo, diz: Deus "sagrou-me seu em honra e em desgraça" (M, p. 32); D. Pedro, o infante "das sete partidas", reconhece: "Não me podia a Sorte dar guarida / Por não ser eu dos seus." (M, p.34); o infante D. João, o menos conhecido dos filhos de D. João I, define-se, com imensa tristeza:

Não fui alguem. Minha alma estava estreita

Entre tam grandes almas minhas pares,

Inutilmente eleita,

Virgemmente parada [...] (M, p. 35)

e D. Sebastião:

Louco, sim, louco porque quis grandeza

Qual a sorte a não dá.[...]

 

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadaver adiado que procria? (M, p. 36)

Da má sorte e conseqüente tristeza destes cinco príncipes, Camões apenas destaca a que afligiu D. Duarte, causada sobretudo por ver "cativo o santo irmão Fernando", só aí citado no poema; de D. Pedro, falará brevemente Paulo da Gama, apontando a bandeira:

Olha cá dous Infantes Pedro e Henrique

Progênie generosa de Joane:

Aquele faz que fama ilustre fique

Dele em Germânia, com que a morte engane. (Lus., VIII, 37)

Do Infante D. João nada se diz. Que dizer de um príncipe de vida tão discreta num poema que deve cantar feitos pátrios? A D. Sebastião o Poeta cantará em "som alto e sublimado", em "estilo grandíloco e corrente", pondo-o mesmo a par dos deuses. Não se esqueça que o rei é seu contemporâneo, que a ele é dedicado o poema, que ainda não houve a batalha e o desastre de Alcácer-Quibir. O sonho de reconquista do norte da África ainda povoa as mentes. D. Sebastião ainda é o herói épico, embora em potencial. O ponto de vista de Fernando Pessoa, à distância de mais de três séculos, teria de ser diferente, mesmo que os poetas o não fossem. O herói foi destroçado, a pátria posta em perigo. O sonho se desfez, restou apenas a loucura que lhe deu origem, loucura positiva, sem a qual o homem permanece "em casa, contente com o seu lar", "vive porque a vida dura", sem descobrir que "ser descontente é ser homem".

Morto D. Duarte, Vasco da Gama passa rapidamente por Afonso V e mesmo por D. João II, a vontade realizadora que,

[...] por haver fama sempiterna,

Mais do que tentar pode homem terreno,

Tentou, que foi buscar da roxa Aurora

Os términos que vou buscando agora. (Lus., IV, 60)

Deter-se-á o narrador bem mais em D. Manuel, o que se justifica plenamente, já que este foi o rei que lhe confiou a grande missão que está cumprindo, de chegar à Índia.

Para Pessoa, no entanto, o promotor maior das navegações foi D. João II. Por isso, aparece explicitamente em dois poemas e implícito num terceiro; são eles: "Uma Asa do Grypho", "O Mostrengo" e "Antemanhã". No primeiro,

Seu formidavel vulto solitario

Enche de estar presente o mar e o céu,

E parece temer o mundo vario

Que elle abra os braços e lhe rasgue o véu. (M, p. 44)

No segundo, "O Mostrengo" - a versão pessoana do Adamastor, num jogo intertextual bastante estreito - interpela o homem do leme (n'Os Lusíadas é ele o interpelado), que lhe responde, duas vezes, a tremer:

"Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?"

E o homem do leme disse, tremendo,

"El-Rei D. João Segundo!"

 

"Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguem me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?"

E o homem do leme tremeu, e disse,

"El-Rei D. João Segundo!" (M, 56-7)

para, enfim, assumir a importância do seu papel:

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse ao fim de tremer três vezes,

"Aqui ao leme sou mais do que eu;

Sou um Povo que quere o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo! (M, p. 57)

Tecendo o roteiro dos reis, no intuito de entretecer semelhanças e diferenças entre os tratamentos que lhes dão os dois poetas que vimos relendo, apreendi na minha rede uma das figuras mais fortes do poema camoniano, o Adamastor, o gigante que está no fim do mar, avaro defensor de seu "nunca visto promontório". Profético e terrível em Camões:

<ME=24,EL=1,MP=0>Sabe que quantas naos esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem

Com ventos e tormentas desmedidas (Lus., V, 43)

inquiridor e ousado em Pessoa:

<ME=24,EL=1,MP=0>Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo? (M, p. 56-7),

que ainda voltará, na Mensagem, no terceiro poema a que atrás me referi - "Antemanhã" -, aquele em que D. João não é trazido por seu nome, mas pela sua ação - "desvendou o Segundo Mundo" -, pelo cognome que lhe é conferido - "Senhor do Mar" -, pela pergunta feita pelo mesmo Mostrengo que busca o seu Senhor, e até pela terminação de um verso com forte rima interna e sem a rima final, que parece estar procurando: "Quem é que dorme a lembrar / Que desvendou o Segundo Mundo", encontrando-a nós no refrão de "O Mostrengo": "El-Rei D. João Segundo."

Como se pôde ver, os dois poetas percorrem a história de seu país seguindo a rota de seus reis. De grandes senhores também se fala; de nenhum tão extensa e/ou apaixonadamente como de Nun'Álvares Pereira, o condestável de D. João I. Em ambos os poetas, é o grande herói nacional. Dele Camões dá um rico retrato em movimento, focalizando-o sobretudo como militar e patriota: vemo-lo em Aljubarrota dirigindo-se às "duvidosas gentes", entre as quais seus próprios irmãos,

<ME=24,EL=1,MP=0>Com palavras mais duras que elegantes,

A mão na espada, irado e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo. (Lus., IV, 14)

Em Mensagem, Pessoa define-o e concita-o:

<ME=24,EL=1,MP=0>Sperança consumada

S. Portugal em ser,

Ergue a luz da tua espada

Para a estrada se ver! (M, p. 39);

faz dele a coroa do brasão, aquela que, encimando castelos e quinas, deve ter a substância de uns e outras, como a teve D. Nuno. Soldado destemido, chefe justo, inimigo terrível no campo de batalha, vencedor magnânimo, por um lado; por outro, o cristão sincero que, cumprida a missão que o rei e a pátria lhe exigiam, fez-se frade, sendo beatificado pela Igreja. Pessoa o pinta com a espada na mão, mas a espada "É Excalibur, a ungida, que o Rei Arthur te deu." E, ao herói, chama-lhe "S. Portugal em ser", pedindo-lhe: "Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!" (M, p. 39).

Apontados estes diálogos entre os textos aqui estudados, passo a falar sobre o que já chamei algures "linha sinuosa descrita pelos dois poemas - ascendente, ingrememente descendente e, por fim, em ligeira ascensão." Para tal, volto à Dedicatória a D. Sebastião, altamente laudatória e cheia de orgulho nacional, situada logo à entrada d'Os Lusíadas, após a Proposição e a Invocação, onde o rei é chamado

<ME=24,EL=1,MP=0>Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deos, que todo o mande,

Pera do mundo a Deos dar parte grande. (Lus., I, 6)

Pessoa lhe consagra o seu livro, pois que o jovem rei, cujo sonho desmedido arrastou a Pátria à dominação espanhola, é o seu herói incontestável, presente nas três partes que o compõem:

<ME=24,EL=1,MP=0>Louco, sim, louco, porque quiz grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza.

Por isso, onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

 

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria? (M, p. 42)

 

Assim o define o Poeta, nele consubstanciando o idealismo, a arrancada para alguma coisa de grande, o desejo de fugir ao conformismo comodista:

<ME=24,EL=1,MP=0>Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, um erguer de asa,

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar! (M, p. 82)

Pessoa irmana-se a Bandarra e Vieira nas profecias sobre o Encoberto e sobre o Quinto Império que tardava, mas haveria de chegar. O seu gosto do mistério, as suas afinidades e o seu desejo de identificar-se com o herói celebrado fazem-no ansiar por sua volta:

<ME=24,EL=1,MP=0>Ah, quando quererás, voltando,

Fazer minha esperança amor?

Da nevoa e da saudade quando? (M, p. 13)

Que responsabilidade terá tido Camões nessa loucura de D. Sebastião? José Régio, no drama que tem por título o nome do rei, fá-lo ouvir os versos de Os Lusíadas que o arrebatam e embriagam. E, de fato, o sopro heróico que deles se exala, o louvor excitante, a lembrar as glórias dos antepassados e a sugerir glórias futuras, tudo isso perturbaria, sem dúvida, aquele adolescente fanático de Deus e da Pátria, e o levaria à aventura da África. Ouçamos como a ele se dirige Camões, no princípio do poema, com a dupla autoridade de poeta e de soldado:

<ME=24,EL=1,MP=0>Vós, ó novo temor da Maura lança,

[...]

 

Vós tenro e novo ramo florecente

De ua árvore de Cristo mais amada

Que nenhua nascida no Occidente

[...]

 

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O sol logo em nascendo vê primeiro,

Vê-o tambem no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do sancto Rio (Lus., I, 6-8)

e, ao terminá-lo, ainda o incita à guerra santa em Marrocos, considerando que para isso o céu o talhou e propondo-se a cantá-lo "De sorte que Alexandro em vós se veja / Sem à dita de Aquiles ter enveja." (Lus., X, 156).

Sem o mencionar explicitamente, o Poeta o impelia à conquista do Quinto Império, fazendo dizer a Júpiter, no seu discurso aos deuses do Olimpo, ao referir-se à gente de Luso: "por ela se esqueçam os [feitos] humanos / De Assírios, Persas, Gregos e Romanos". Para fazer esquecer os quatro impérios do sonho de Nabucodonosor, seria preciso que tal gente implantasse o Quinto Império, o império de Cristo na Terra.

Da dedicatória passo ao fim do último canto, quando o Poeta voltará a dirigir-se ao rei, desta vez, a exortá-lo. Entre esses dois pontos quase extremos do poema, há um sensível declive, ao contrário do que se esperaria numa epopéia. Os marcos mais evidentes do caminho são as sucessivas invocações à(s) musa(s), nas quais o Poeta não apenas obedece a uma regra da arte poética em vigor, pedindo-lhes "um som alto e sublimado", mas também revela sua afetividade às ninfas pátrias, que eleva à função de inspiradoras do canto, afetividade reforçada pelo uso do possessivo, às vezes posposto: "E vós, Tágides minhas" (Lus., I, 4, v. 1), "E ainda, Ninfas minhas" (Lus., VII, 81) e a Calíope, musa da poesia épica e, por conseguinte, rainha das musas: "Aqui, minha Calíope te invoco". (Lus., X, 8).

O tom em que a elas se dirigirá é que irá mudando: nos primeiros cantos, onde a glorificação da pátria e do canto é a tônica, há o imperativo da ordem:

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham inveja às de Hipocrene. (Lus., I, 4)

 

Agora tu, Calíope, me ensina

O que contou ao rei o ilustre Gama (Lus., III, 1);

nos últimos cantos, quando já lhe pesam as decepções, é a súplica repassada de temor que dirige às Ninfas dos seus rios:

<ME=24,EL=1,MP=0>Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar com vento tão contrário,

Que, se não me ajudais, hei grande medo,

Que o meu fraco batel se alague cedo. (Lus., VII, 78) (grifos meus),

súplica de auxílio, em que o barco de que até aqui falara como elemento concreto e fundamental da conquista do mar e de novas terras passa a ser metáfora do canto - fraco batel a embater-se contra o vento das vicissitudes da sua própria vida de soldado e poeta, a lutar e cantar, "Nua mão sempre a espada e noutra a pena" (Lus.,VII, 79). E Camões interrompe a narração dos feitos da pátria para, longamente (Lus., VII, 78-82) e em tom elegíaco, queixar-se da própria vida, dos "perigos Mavórcios" (Lus.,VII), da "pobreza avorrecida" (Lus.,VII, 80), da perda da esperança, da vida presa por um fio. E nem lhe falta ao sofrimento a ingratidão dos que canta:

<ME=24,EL=1,MP=0>E ainda, Ninfas minhas, não bastava

Que tamanhas misérias me cercassem,

Senão que aqueles que eu cantando andava

Tal prémio de meus versos me tornassem.

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram

Com que em tão duro estado me deixaram. (Lus., VII, 81)

É de si que fala ao longo de quatro estrofes e meia; de si ainda falará por mais cinco - apresentando o seu critério de seleção dos que deve cantar, o que é uma maneira de definir-se moralmente - :

Aqueles sós direi, que aventuraram

Por seu Deos, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida. (Lus., VII, 87)

Ao fim do desabafo, da confissão do desânimo que lhe vem com sobejas causas, o Poeta parece retomar o canto da pátria com nova coragem, infundida pelo deus das artes e pai das musas, a estas unido:

Apolo e as Musas que me acompanharam

Me dobrarão a fúria concedida (Lus., VII, 87)

Readquirida a confiança no poder do canto, o Poeta novamente celebra, nas bandeiras cujo significado Paulo da Gama explica ao catual, os varões ilustres do passado. Chegada a frota à Índia, deparamo-nos não já com uma luta de armas bélicas, mas com uma luta de interesses econômicos, o que faz que o Poeta termine o canto com uma séria diatribe contra o poder ilimitado do ouro. Em enumeração reforçada pela anáfora do dêitico Este, a aproximar o acusado do que o acusa com a força do seu verso, toda a sociedade é abarcada, homens e mulheres, juristas, reis e, por fim, os homens da igreja:

Este rende munidas fortalezas,

Faz tredoros e falsos os amigos;

Este a mais nobres faz fazer vilezas

E entrega Capitães aos inimigos;

Este corrompe virginais purezas

Sem temer de honra ou fama alguns perigos

Este deprava às vezes as ciências

Os juízos cegando e as consciências;

 

Este interpreta mais que sutilmente

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente,

E mil vezes tiranos torna os Reis;

Até os que só a Deos onipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador e ilude,

Mas não sem cor, contudo, de virtude. (Lus., VIII, 98-99)

Não estamos diante de um observador imparcial e frio, que apenas aponte os vícios, senão de alguém que crítica mas sofre porque tem de criticar, alguém que não fica "à beira-margem, / à beira-rio", ideal de Ricardo Reis, que nos rios não quer mais que molhar leves as mãos, mas que neles mergulha e deles se embebe, vivendo com os homens a vida dos homens que é a sua, participante nunca alienado de um mundo em mutação rápida e fascinante, que é o seu. Maravilha-se com o novo e rememora com respeito o velho - mas que sejam marcados pelo sinal mais. Repele o negativo - qualquer que seja - e com ele se magoa fundamente.

Assim se encerra o canto VIII. As vicissitudes dos navegantes em Calecute terminaram com a interferência do mouro Monçaide, que, na volta das naus, acompanhou-os ao reino, onde se fez cristão. É o momento do prêmio merecido - a Ilha dos Amores. Alegram-se e saciam-se os nautas, compraz-se o Poeta com a descrição do espaço edênico e a narração do que nele se passa. Afrouxa-se a tensão. Mas ainda há algo histórico a narrar, para completar o tempo total da narrativa que se iniciou no passado mais remoto da pátria e se deve estender até ao tempo da enunciação, à história futura, posterior a Vasco da Gama, mas anterior ao Poeta. A função de narrar é transferida a alguém que tem o dom da profecia - a bela Ninfa da Ilha dos Amores, cuja voz angélica fará "subir ao céu / Altos varões que estão por vir ao mundo." (Lus.., X,7) O Poeta se dá conta de que "Matéria é de coturno e não de soco / A que a Ninfa aprendeu no imenso lago" (Lus., X, 8) Para transcrevê-la, sente-se fraco. Novamente apela para Calíope. A voz é de desalento, quase de desistência. Os anos se passaram, o inverno se aproxima:

Aqui, minha Calíope, te invoco,

Neste trabalho extremo, porque em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.

 

Vão os anos decendo e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono,

A fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono,

Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha

Das Musas, co que quero à nação minha. (Lus., X, 8-9)

O que transparece mais que nunca no grande poema, já quase ao fim, é essa queixa dolorida que fica soando em nossos ouvidos, apesar da tentativa do Poeta de recuperar o tonus épico nos últimos versos, dirigidos a D. Sebastião. O que permanece é a sensação de "desalento, de desencanto", se me é permitido apropriar-me da voz de Manuel Bandeira, que tanto amou o Poeta maior:

 

No'mais, Musa, no'mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cubiça e na rudeza

D'ua austera, apagada e vil tristeza. (Lus., X,145)

Estamos a um passo de terminar o poema: os nautas já cumpriram a sua missão e já receberam o prêmio merecido. A missão do narrador chegou ao fim. Mas o poema ainda não terminou. Seria o momento de também regozijar-se o Poeta por ter cumprido a missão de cantar e por ter o direito de calar-se, cansado do caminho e jubiloso da chegada. Mas não: pela terceira vez, ei-lo a invocar a Musa maior, não mais a pedir-lhe que lhe devolva "o gosto de escrever", mas que o abandone a seu destino de poeta que canta sem ser ouvido, porque a gente está "surda e endurecida"; que não recebe o estímulo da pátria porque esta está "metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Dua austera, apagada e vil tristeza". Todos já ouvimos imensas vezes estes últimos versos, mas eles continuam a atingir-nos com a mesma força, produzindo a mesma profunda sensação de decepção e tristeza.

Nesse momento, o Poeta, como se se desse conta de que baixara a voz, do "som alto e sublimado" da epopéia para a sombria tonalidade do epicédio, não cantando a glória de Portugal, mas chorando a sua morte, volta a dirigir-se ao rei, já não mais o "tenro e novo ramo florescente / Dua árvore de Cristo mais amada / Que nenhua nascida no Ocidente"; não mais o príncipe a aguardar o tempo de reger os povos, mas o rei "que por divino / Conselho [está] no régio sólio posto", o rei a quem o Poeta dá conselhos de bem reinar e termina por concitar à luta no norte da África. É a investida desesperada para mudar a direção dos fatos e recuperar a grandeza da pátria que vê agonizar, de novamente embocar a "tuba canora e belicosa". Desde sempre me impressionou esta descida em que se despencam Poeta, poema e pátria, como se uma nênia se cantasse e não um poema heróico. Disso falei nas comemorações do quarto centenário d'Os Lusíadas. E gostei de encontrar, nas páginas luminosas de O labirinto da saudade, de Eduardo Lourenço, esta leitura, ao mesmo tempo, de Portugal e d'Os Lusíadas:

Da nossa intrínseca e gloriosa ficção Os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema "épico" assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e "requiem"? [3]

Esta subversão dos modelos clássicos da epopéia - a mistura de louvor e crítica dos heróis e, sobretudo, a presença do autor na obra, tão condenada por Aristóteles - terá apoucado o valor do grande poema épico do Renascimento? Serão Os Lusíadas menos epopéia e deixará Camões de ser o Poeta épico por excelência da língua portuguesa por essa sua intromissão pessoal, subjetiva, no texto que criou? Pelo que de crítico tem o seu discurso? Há mais de vinte anos, quando se comemorava o quarto centenário do livro máximo de nossa língua, respondi a estas perguntas que então me fazia [4] , concluindo:

Os Lusíadas não são nem mais nem menos epopéia que a Odisséia ou a Eneida. São a epopéia de novos tempos, tempos contraditórios. Alimentado de tais contradições, o poema adquire modernidade e se afirma como a única epopéia representativa do Renascimento europeu.

É exatamente por isso que considero que o Poeta lírico está presente nesta epopéia que, comparada às anteriores, e também às contemporâneas, poderia ser definida como uma epopéia subversiva, inovadora.

Esta mesma atitude do Poeta, encontro-a na Mensagem, de Fernando Pessoa. Depois de uma série de poemas afirmativos de um Portugal continental - "Brasão", composto de matéria e espírito -, transposto o "Mar", chega-se aos "Símbolos" e aos "Tempos". Nestes, passa-se da "Noite", agravada pela "Tormenta", seguida da "Calma", aberta para a "Antemanhã" que se fecha em "Nevoeiro". É este o último poema do pequenino e precioso livro.

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,

Define com perfil e ser

Este fulgor baço da terra

Que é Portugal a entristecer -

Brilho sem luz e sem arder,

Como o que o fogo-fatuo encerra.

 

Ninguem sabe que coisa quer.

Ninguem conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.

(Que ancia distante perto chora?)

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro.

Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

 

É a Hora!

                                           Valete, Fratres. (M, p. 98)

Comecemos pelo título, "Nevoeiro": é ele a metáfora, transparente desde o início, e retomada, ao fim, desse Portugal, "fulgor baço da terra", "fogo-fatuo", "brilho sem luz e sem arder". Num processo muito pessoano de auto-destruição pelo texto, em que a positividade do substantivo é a seguir negada pelos adjuntos adnominais, vê-se que, num jogo de contrários, o fulgor deixa de sê-lo porque é baço, o fogo é fatuo, só aparentemente fogo, apenas brilho que não ilumina nem aquece - características essenciais do fogo vivo, real. Vêm a seguir as negativas ninguém e nem, ambas repetidas, destruindo o saber, o conhecer e o discernir. Sucede-se-lhes o indefinido totalizador e afirmativo, tudo, duas vezes repetido, e variamente qualificado, a afirmar a incerteza, o fim, a dispersão. Então, reiterando a desqualificação de tudo, a sua reafirmação pelo nada, desta vez com predicativo positivo - inteiro -, oposto aos outros, mas sobretudo a disperso, o que mais se avizinha de nevoeiro, que surgirá no verso seguinte: "Ó Portugal, hoje és nevoeiro!" O poema parece terminar aí, neste verso que tem oito sílabas como os outros, mas há ainda mais um, de duas sílabas, a erguer o véu da névoa, a permitir a espreita de algo que há de vir, pois é a Hora! Abrindo o Dictionnaire des symboles de Chevalier e Gheerbrant [5] , lê-se, no verbete "Brouillard": "O nevoeiro pode preceder as revelações importantes: é o prelúdio da manifestação". A revelação ou manifestação será possível, portanto, no espaço do mito; a propósito, relembro uma frase de A nova poesia portuguesa, de que já falei: "E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos." (NPP, 106).

Gostaria, porém, de voltar ao verso entre parênteses "(Que ancia distante perto chora?)", que, sem rimar com os outros, vai ter consonância no pequenino verso quebrado que fecha o poema. É este o único momento em que se pode sentir um impulso positivo, embora esbatido pela distância e pelo pranto. Ainda assim, mesmo à distância, e em pranto, há ancia, e perto. A ancia é mola propulsora de ação; em Mensagem, é com ela que "a chama do esforço se remoça". Neste verso, abre-se a possibilidade para a palavra final. Sem ele, o poema terminaria em queda no pessimismo total. Tê-lo-ia acrescentado o poeta depois de pronto o poema, composto de duas estrofes de mesmo número de versos, como quase todos os outros? Como afirmá-lo? Mas como não ser tentada a supor que a ancia fosse introduzida pelo poeta ao dar-se ele conta de que sua mensagem final não correspondia ao prometido ou entremostrado em poemas anteriores? Em "Última Nau", ele dissera: "Não sei a hora, mas sei que há a hora, / Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora / Mysterio." Era, pois, o momento de chegar a Hora, e com maiúscula.

Voltemos a Os Lusíadas. Quase ao fim, ouvimos a voz de Camões - e é de Camões que estou falando, não apenas de um sujeito poético que em versos de Camões se exprima, pois estamos num dos momentos mais autobiográficos do poema - ouvimos-lhe, pois, a voz, a concitar a musa ao silêncio: "No' mais, Musa, no' mais". Mas a epopéia de Portugal não podia terminar em descida irreparável. O Poeta reverte a direção do canto e inicia a ascensão, apelando para o rei e o exortando à luta. À luta que será matéria de novo canto. Também Camões poderia ter dito - com bem menos convicção -: "É a Hora."

Da leitura d'Os Lusíadas ressalta, como vimos, a busca de uma solução real para reverter a situação da pátria; dos poemas de Mensagem ressai, intensificada no poema final, "Nevoeiro", a proposta de uma solução não mais de dimensão humana, mas transcendente. Em ambos, porém, há, ao chegar ao fim, mais de epicédio que de sinfonia, apesar dos acordes vibrantes que Camões consegue desferir nas cordas da cítara que abandonara e das dissonâncias auspiciosas a que Pessoa recorre, inserindo-as na desalentadora harmonia final. Enfim, dois poemas épicos - ou épico-líricos? - "de espécie complicada", diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal.



[1] PESSOA, Fernando. A nova poesia portuguesa, (NPP), 2a. ed. Lisboa: Inquérito, s.d.

[2] Na transcrição dos poemas de Mensagem, utilizo a 4a. edição da Ática, de 1950, que mantém a ortografia usada por Fernando Pessoa, já ultrapassada ao tempo do poeta, mas que considero expressiva especialmente nesta obra. As citações são feitas pela sigla M.

[3] LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978, p. 22.

[4] Cf. "Os excursos do Poeta n'Os Lusíadas, p. 21.

[5] CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles, 6e. édition. Paris: Seghers, 1973.