Estudos Camonianos

De censores e de censura

 

De todos os documentos que expediu D Sebastião em sua vida bastante curta, muitos terão sido fundamentais na área das decisões políticas; na área das decisões culturais, nenhum terá tido maior importância do que um alvará escrito a 24 de setembro de 1571, no qual se dizia:

Eu, el-Rei, faço saber aos que este Alvará virem que eu hei por bem e me praz dar licença a Luís de Camões pera que possa fazer imprimir, nesta cidade de Lisboa, ua obra em Octava rima chamada Os Lusíadas que contém dez cantos perfeitos, na qual por ordem poética em versos se declaram os principaes feitos dos Portugueses nas partes da Índia depois que se descobrio a navegação pera elas por mandado del-Rei Dom Manuel meu visavô que sancta glória haja [...]. (Lus., fl. ante 1, r) [1]

Antes de tudo mais, porém, uma exigência deveria ser cumprida:

[...] antes de se imprimir será vista e examinada na mesa do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição pera com sua licença se haver de imprimir, e se o dito Luís de Camões tiver acrecentados mais alguns Cantos, também se imprimirão havendo pera isso licença do Santo Oficio, como acima é dito. (Lus., ib.)

Acima da permissão real, pois, estava a do censor do Santo Ofício, e uma vez ao menos na vida, naquela vida tão duramente marcada pela dor, o Poeta não teve contra si "o ceo severo, / As estrelas e o fado sempre fero" (canção IX).

Frei Bertolameu Ferreira, incumbido de ler o poema e dar-lhe um parecer, escreveu:

Vi por mandado da Santa e Geral Inquisição estes dez Cantos d'Os Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa, e não achei neles cousa algua escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes, somente me pareceo que era necessário advertir os Lectores que o Autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua ficção dos Deoses dos Gentios. [...] Todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deoses na obra, conhecendo-a por tal, e ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé, que todos os Deoses dos Gentios são Demónios. E por isso me pareceo o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. (Lus., fl. ante 1, v) [2]

Com todas as licenças, pois, pôde o livro sair a caminho de seu glorioso destino.

Graças sejam dadas ao rei e ao censor! A eles devemos o estar ainda falando de uma obra que o tempo não envelhece. À distância de mais de quatro séculos, apraz-me interpelar um e outro, à espera de que me respondam - ou não.

Ao rei perguntaria se leu de fato o poema, todo o poema. E até acho que a resposta seria negativa. Primeiro, porque não me consta que o rei adolescente fosse dado a leituras, depois, porque ele diz em seu alvará que n'Os Lusíadas

se declaram os principaes feitos dos Portugueses nas partes da Índia depois que se descobrio a navegação pera elas por mandado del-Rei Dom Manuel meu visavô.

Só isso, Senhor Rei? E todo o passado glorioso, desde Viriato a Dom Manuel? Se viu n'Os Lusíadas apenas o que têm de epopéia, não vamos censurá-lo: era o que lá buscava o seu espírito belicoso, até porque o Poeta se propunha cantar a Fé e o Império - não somente os feitos de armas, mas a religião que lhes servia de suporte (ou de pretexto). E o Senhor D. Sebastião é feito de duas metades: a da Pátria e a de Deus. O que lhe podemos censurar é o não ter lido - ou ouvido - o relato de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Pela boca do ilustre Capitão, teria sabido que a bravura de Afonso Henriques, seu mais remoto avô na linha dos reis de Portugal, é celebrada no poema com mais fervor e admiração do que a de quase todos os outros heróis, incluindo os navegantes. Não quero dizer que Vossa Alteza ignore a história de seu país; o que ressalto é que pareceu ignorar que a epopéia camoniana a contivesse toda. Por isso seu título é Os Lusíadas, e Camões enumera os que ali se englobam sob essa designação: privilegia, é verdade, os navegantes e colonizadores na proposição do poema, mas acrescenta, numa espécie de resumo final, "aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando" (I,2). A sua extrema juventude, Senhor Rei, impediu-o de atentar na própria dedicatória com que o poema lhe foi oferecido: lá estão implícitos todos os valentes e, citados, nominalmente, Nuno Álvares, Egas Moniz, Fuas Roupinho, o Magriço, o Gama e os que ganharam fama nos "Reinos lá da Aurora" (I, 14) - Pacheco, Albuquerque, os Almeidas, Castro; dos reis seus antepassados, quatro Afonsos, dois Joanes. Parece que atentou mais no apelo final que o Poeta lhe faz, ao prometer-lhe que, se Vossa Alteza tomar empresa "dina [...] de ser cantada" (X, 155), a sua "já estimada e leda musa" (X, 156) tornará a fazer-se ouvida em todo o mundo, "De sorte que Alexandro em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter enveja." (X, 156). Estou certa, Senhor?

Não me responde el-Rei D. Sebastião.

Interpelado o rei, passemos ao censor. Não para censurá-lo, mas para louvar-lhe a compreensão, o gosto apurado e até mesmo a fina astúcia de que lançou mão para liberar o texto.

Lendo-o bem, este, sim, lá encontrou os "valerosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa"; não somente os feitos dos navegantes, depois de D. Manuel, mas os dos portugueses, desde que o foram, em três continentes. Lendo-o com simpatia, não achou em seus dez cantos "cousa algua escandalosa, nem contrária à fé e bons costumes". Havia, no entanto, um elemento que poderia ser julgado espúrio e que era preciso justificar: aqueles deuses dos gentios que ocupavam tanto espaço dentro do poema, que faziam e desfaziam, disputavam-se e pareciam decidir o destino dos cristãos que se aventuravam pelo oceano até então "impossível", a levar a fé aos infiéis, tão ousados e bem sucedidos, que inspiravam temor aos próprios deuses, no dizer de Baco: "temo / Que do mar e do Ceo, em poucos anos, / Venham Deoses a ser, e nós, humanos." (VI, 29)

Como coonestar, perante o tribunal de que era um dos juízes, e que primava pela incompreensão e pela injustiça, a presença dos intrusos? Argumentando com dois tipos de razões: primeira - "O Autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua ficção dos Deoses dos Gentios" -,  segunda - "como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo poético" - e concluindo: "não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deoses na obra, conhecendo-a por tal".

Falei em dois tipos de razões, que dizem respeito, ambas, ao fazer poético: a primeira remete ao emprego de um tipo de comparantes que encarecem o valor dos personagens épicos, só equiparáveis a deuses; a segunda incorpora a primeira, acrescentando-lhe o caráter ornamental. Motivos retóricos, pois, para justificar a aceitação de um texto como tal; estes é que são válidos e justos, e não os éticos - principalmente os religiosos - que seriam de esperar do censor de uma instituição como o Santo Ofício. Como um crítico imparcial, acrescenta ainda: pareceu-me "o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas."

Feito o elogio do censor, sobretudo pela adequação do seu método, permito-me, como advogado do diabo, fazer-lhe uma pergunta cheia de simpatia, mas também de malícia - e em voz baixa, para que não me ouça, através dos séculos, algum frade mais severo ou rabugento que não protestou à altura contra o parecer por nunca ter lido o poema, mas que se regalaria em denunciar o irmão de ordem, exageradamente compreensivo.

- Com que então, Frei Bertolameu, não achou n'Os Lusíadas, "cousa algua escandalosa, nem contraria à fé e bons costumes"?

Nada achou o bom frade, com sua mente arejada pelos ventos renascentistas que sopravam da Itália, mas, treze anos mais tarde, reapareceu à entrada do poema com um novo parecer, em tom menor:

Vi por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo senhor Arcebispo de Lisboa, Inquisidor Geral destes Reinos, Os Lusíadas de Luís de Camões, com alguas glosas, o qual livro assi emendado como agora vai, não tem cousa contra a fé e bons costumes, e pode-se imprimir. E o autor mostrou nele muito engenho e erudição. [3]

O parecer encolheu e, com as tais "alguas glosas", o poema também, pois que a licença é dada para a edição de 1584, que uma nota desastrada marcou pelo ridículo com o nome de edição dos Piscos [4] . Não só foi cortado, mas alterado e desvirtuado em muitas passagens, e por motivos ideológicos, porque alguns passos atentavam contra a fé e os bons costumes - ponto de vista ético-religioso - e porque outros eram agressivos aos castelhanos - ponto de vista político.

Teria o frade reconsiderado o seu parecer por estar treze anos mais velho, ou, como supõe Sousa Viterbo, por não ter "a coragem de se opor ao vandalismo" ou "ter a fraqueza de condescender com ele"? Sempre supus que o benemérito censor teria sucumbido a uma força maior: a do domínio espanhol que se manifestaria sobretudo na repressão política e religiosa. Desta encontram-se inúmeros exemplos de censura, que vão da simples substituição de uma palavra por outra, para excluir a indesejada - deusa por ninfa, mesmo quando não o é, quando é, por exemplo, Vênus ou Diana: deuses por eles, aqueles, todos, grandes, fados -, ou de um breve sintagma por outro que ora tem o mesmo número de sílabas - a deusa Cípria por a bela Cípria; a clara dea (referido a Vênus) por a nunca fea - o que é espantosamente feio -, ora tem número de sílabas diferente, quebrando os pés ao verso camoniano; é o caso da troca de Deuses por Senhores, no discurso de Júpiter, ou de a formosa deusa por a bela ninfa. Por vezes a substituição é mais extensa, alonga-se por um verso, como na fala do Adamastor a Vasco da Gama; dizia o gigante, em 1572: "Todas as Deosas desprezei do ceo / Só por amar das ágoas a Princesa" (V, 52); em 1584, passa a dizer: "Nem Vénus a mais bela me venceo / Só por amar das águas a princesa." É mau, mas há pior: apenas iniciada a narração da viagem, reúne-se o consílio dos deuses: "Quando os Deoses no Olimpo luminoso, / Onde o governo está da humana gente, / Se ajuntam em consílio glorioso [...]" (I, 20). Para os censores, estar o governo da humana gente no Olimpo (o que é, no mínimo, a transferência do poder de Deus para o de Júpiter) não importa: o que importa é exorcizar a palavra deuses; acham a solução - e com uma sílaba a mais! -:

Quando Júpiter no Olimpo luminoso,

Onde o governo está da humana gente,

Se ajunta em consílio glorioso.

Júpiter se ajunta com quem?

Ainda no consílio descobre-se outro "primor": usando o símile dos ventos desencadeados, Camões fala do alarido provocado no Olimpo pela disputa entre Vênus e Baco: "Tal andava o tumulto levantado / Entre os Deoses no Olimpo consagrado." (I, 35). Duas palavras fatídicas num só verso: deuses e consagrado. Mude-se o verso. Eis o resultado: "Tal andava o tumulto levantado / Entre Vénus e Baco apaixonado".

Mais difícil de perceber é a troca feita na fala de Baco às divindades marinhas: "Venham Deoses a ser, e nós, humanos." (VI, 29), um verso conciso e forte, com rara coincidência de sílabas gramaticais e métricas, que se transforma (e deforma) em: "Venham a divinos ser, e nós, humanos." Além do péssimo verso produzido, em que é preciso fazer uma violenta sinalefa para ler "Venham a" em duas sílabas, não se exerceu a censura, pois o adjetivo divinos mantém a categoria de deuses aos execrados seres da mitologia clássica. No mesmo consílio das águas está uma divindade a quem o Poeta chama "o Profeta Proteo" (VI, 20). Na edição dos Piscos ele será "o antigo Proteu", mas não se eliminam os versos referentes a seu dom divinatório e profético.

Semelhante é a exclusão do nome de Mercúrio na estrofe 61 do canto II, quando em sonho aparece a Vasco da Gama para induzi-lo a fugir da cilada armada em Mombaça. Em 1572, lemos: "Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece" (II, 61), na malfadada edição, este verso emperrado: "Quando ua visão em sonhos lhe aparece." (Afinal, é sonho ou visão?) Aparece e fala, aconselhando, como Júpiter lhe mandou. Transmitida a mensagem, arremata o Poeta: "Isto Mercúrio disse" (II, 64), e, sete estrofes adiante: "já lho dissera [...] / O Cileneo em sonhos" (II, 71). Assim ficou em 84. Apetece-me parodiar Camões para dizer da minha perplexidade: "Vejam agora os sábios da escritura / Que segredos são esses da [censura]!" (V, 22)

Passemos adiante, deixando os casos de alterações feitas na área propriamente religiosa, e vejamos as que sofreram os versos em que os atentados eram, não "à fé", mas "aos bons costumes". A pedra de escândalo - e Frei Bertolameu não vira "cousa algua escandalosa"! - era a nudez das ninfas e de Vênus, e a ardente sensualidade das cenas eróticas.

Logo no canto II, no encontro de Vênus com Júpiter para interceder por seus amados Lusitanos, o censor sentiu-se agredido pela nudez esplêndida da deusa, pelas artimanhas femininas de que lança mão, pela insinuação maliciosa do Poeta: "se só se achara, / Outro novo Cupido se gerara." (II, 42). Eram dez estrofes, oitenta versos cheios de escolhos e o pobre censor, entre Cila e Caríbdis, não teve outro remédio senão o de destruí-los.

Ainda mal refeito do choque e da violência da reação, eis que se lhe depara outra cena que é preciso policiar. É o Adamastor quem fala, naqueles versos que inda mantêm - e sempre manterão - intacta a frescura inaugural:

Um dia a vi coas filhas de Nereo

Sair nua na praia e logo presa

A vontade senti de tal maneira,

Que inda não sinto cousa que mais queira. (V, 52)

Num rasgo "inspirado", o censor risca o adjetivo obsceno "nua" e escreve: "Um dia a vi coas filhas de Nereo / Sair na fresca praia". O alívio, porém, não dura muito. O gigante continua a exalar sua queixa amorosa:

Já néscio, já da guerra desistindo,

Ua noite de Dóris prometida

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri, de longe abrindo

Os braços para aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos. (V, 55)

Novamente a nudez e a expressão de um grande amor "urgente", como diria, em outra parte, o próprio Poeta. A pena do censor, brandida como uma arma, corta mais uma estrofe. Não importa que depois não se entenda como o pobre amante tem nos braços um monte em vez da mulher amada, já que a visão do encontro desapareceu.

Quem vai ter novo encontro indesejável é o nosso censor; no canto VI (mais uma vez o consílio de Netuno), entre os deuses do mar está Tethys, não a do Adamastor (Thetis), mas a esposa do Oceano, tão formosa

Que se amansava o mar de maravilha.

Vestida ua camisa preciosa

Trazia de delgada beatilha,

Que o corpo cristalino dexa ver-se

Que tanto bem não é pera esconder-se. (VI, 21)

Seria fácil cortar mais uma vez. Talvez não conviesse: afinal, Tethys tem "todo o cerúleo senhorio" (I, 16) aparelhado para dote de D. Sebastião que ela cobiça para genro. É preciso consertar; "habilmente", trocam-se as posições dos verbos finais, ver-se e esconder-se e produz-se, em vez de "o corpo cristalino deixa ver-se, / Que tanto bem não é pera esconder-se", este "primor": "Trabalha quanto pode de esconder-se / Por mais honestamente deixar ver-se." Assim Tethys, como uma discreta e pudica senhora, pôde permanecer.

Não se recupera o censor dos sustos que lhe inflige o texto e tresvaria. Até nas pombas que acompanham Vênus encontra a maldade que é preciso extirpar; não gosta de ver que "No ar lascivos beijos se vão dando" (IX, 24); prefere "Alegres passatempos vão tomando". Atribui a lascivo uma significação que Camões só uma vez utilizou e transforma uma visão encantadora de asas a mover-se e biquinhos que se tocam numa cena ridícula em que às aves é atribuída uma atividade humana, o passatempo, o que pode levar-nos a uma interpretação - esta, sim! - maldosa.

Nessa Ilha dos Amores, a todo momento tropeça o censor com obstáculos que lá vai vencendo (ou pensando vencer), em que pese à reputação do Poeta. Vênus industriou as ninfas para a sedução dos nautas, e lá estão elas, esperando-os "pera lhe entregarem / Quanto delas os olhos cobiçarem." (IX, 41). Com que espanto lemos na edição de 1584: "pera lhe entregarem / Quanto de suas terras cobiçarem." E o espanto cresce logo adiante, quando se vê o que acontece à estrofe 49 do mesmo canto:

Dai lugar, altas e cerúleas ondas,

Que, vedes, Vénus traz a medicina,

Mostrando as brancas velas, e redondas,

Que vêm por cima da ágoa Neptunina.

Pera que tu recíproco respondas,

Ardente Amor, à flama feminina,

É forçado que a pudicícia honesta

Faça quanto lhe Vénus amoesta. (IX, 49)

Isto era em 1572; em 1584, os quatro últimos versos trocam de sinal e aparece um guar-te que Camões nunca usou:

Tu recíproco, guar-te, não respondas,

Ardente amor, à flama feminina,

Que não é bem que a pudicícia honesta

Faça o que lhe Vénus amoesta.

Bem preferível o corte puro e simples a esses remendos mal pregados. E é cortando várias estrofes que o censor pretende reinstalar a decência na Ilha dos Amores. Empunhando a espada justiceira, penetra no texto e, como diria Camões, "Cabeças pelo campo vão saltando, / Braços, pernas, sem dono e sem sentido." (III, 52). Mas alguns permanecem, causando pasmo ao leitor que se pergunta: "Como se manteve isto?" Veja-se, por exemplo:

Assi lho aconselhara a mestra experta,

Que andassem pelos campos espalhadas,

Que vista dos barões a presa incerta

Se fizessem primeiro desejadas.

Alguas, que na forma descuberta

Do belo corpo estavam confiadas,

Posta a artificiosa formosura

Nuas lavar-se deixam na ágoa pura. (IX, 65)

Do que se poderia chamar de repressão política, só temos notícia através das alterações feitas nos versos que contêm qualquer coisa de depreciativo em relação aos castelhanos; são muito menos numerosos os exemplos: onde, em 1572, se dizia "o soberbo Castelhano" (III, 34), diz-se, em 1584, "o valente Castelhano"; "as soberbas Castelhanas" (III, 99) passam a "as hostes Castelhanas" (com prejuízo para o verso). Manteve-se "A sublime bandeira Castelhana / Foi derribada òs pés da lusitana" (IV, 41), mas alterou-se, de modo primário, "Dom Nuno Álvares, digo, verdadeiro / Açoute de soberbos Castelhanos" (IV, 24) para "Dom Nuno Álvares, digo, verdadeiro / Exemplo de valentes Castelhanos" e ainda pior: os fortes decassílabos "Os Pereiras, também, arrenegados, / Morrem arrenegando o Ceo e os fados" (IV, 40), tornaram-se murchos hendecassílabos na edição dos Piscos: "Os Pereiras, que também são rebelados / Finalmente são aqui desbaratados."

De cunho político seria também a supressão da estrofe 25 do canto X, em que Tethys fala da injustiça cometida por D. Manuel em relação a Duarte Pacheco:

Mas tu, de quem ficou tão mal pagado

Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,

Se não és pera dar-lhe honroso estado,

É ele pera dar-te um reino rico.

O ataque frontal ao antepassado, não só de D. Sebastião, mas de Filipe II, tinha de desaparecer.

Em 1591 sai nova edição, cópia quase perfeita da dos Piscos e com o mesmo parecer. As notas que traz, porém, não coincidem com as da edição anterior; a relativa aos piscos desapareceu. É esta das edições mais raras do século XVI, não encontrada na nossa Biblioteca, mas que pude consultar e mandar reproduzir em microfilme na Biblioteca Nacional de Lisboa.

Seis anos depois sai nova edição, cuja licença data de 1594 e foi dada à vista da aprovação de outro frade benemérito, Frei Manuel Coelho. Mais longamente que Frei Bertolameu Ferreira, este usa argumentos semelhantes aos do seu antecessor, terminando por dizer:

Visto isto, e visto não terem, como disse, cousa algua contra a nossa Sancta Fé, e bons costumes, antes estarem cheas de muita poesia, são dignos de se imprimirem e lerem. (15/11/1597).

Esta edição recupera a de 1572, declarando que Os Lusíadas foram "polo original antigo agora novamente impressos." Depois de uma longa conferência dos textos, corroboro a asserção, menos no que diz respeito aos versos em que Camões lança a pecha de traidores aos irmãos de Nun'Álvares (já atrás citados), os quais, sem explicação plausível, transformam-se em: "E os ingratos Pereiras que puderam / Armar-se contra a terra onde nasceram."

Nunca entendi bem como foi possível liberar o texto integral do poema em 1597, quando a Inquisição ainda mantinha seu imenso poder, e Portugal ainda estava sob o domínio da Espanha. Entendo ainda menos como, em 1580 e 1591, saíram três traduções espanholas de Os Lusíadas, nas quais o texto está sem cortes e com pequeníssimas alterações. Das três, tive acesso, na nossa Biblioteca Nacional, à primeira, de 1580, feita por Benito Caldera, aprovada sem restrições como livro "de mucho provecho a la republica", e dedicada ao Presidente da Santa e Geral Inquisição, e à terceira, de 1591, feita por Enrique Garcés, "vezino [habitante] de Lima en el Peru" e dirigidos a Filipe II, com aprovação de Frei Pedro de Padilha, que insiste em que "no hay en el cosa que sea contra la Fe ni las buenas costumbres, sino mucha erudición y variedad de cosas utilisimas." Não pude ver a tradução de Luís Gomes de Tapia, também de 1580.

Nada se alterou ou cortou nos versos, por serem "contra os bons costumes"; as traduções, bastante boas - melhor a primeira que a segunda, como veremos -, mantêm o erotismo das cenas já aqui mencionadas. E vale lembrar que a lascívia do verso referente às pombas foi superlativada pelo tradutor: "Lacivisimos besos se van dando".

Até mesmo nos versos em que se falava do Castelhano foi discreta a modificação, ou inexistiu. Em vez de "o soberbo Castelhano" (III, 34), "luego el Castellano"; em vez de "açoute de soberbos Castelhanos" (IV, 24), põe a edição de 1591 "Freno de los motivos poco sanos" (o que é péssimo), mas a de 1580 mantém a idéia, escrevendo "Terror de los valientes castellanos"; na estrofe 41 do canto IV, "A sublime bandeira castelhana / Foi derribada aos pés da lusitana" permanece na edição de Caldera (1580): "A los piés de la nuestra Lusitana / Se vio insigne seña Castellana", enquanto Garcés (1591) diz, outra vez desastrado: "La sublime vandera Castellana / Cortés se muestra con la Lusitana".

Enquanto em Espanha se traduz o texto integral, como se vê, em Portugal reedita-se o poema desfeado e amputado. Como explicar que à sombra do senhor "Hernando de Vega de Fonseca, Presidente del consejo de hacienda de su Majestad y de la Santa y general Inquisición", no ano da morte do Cardeal Inquisidor D. Henrique, ou dirigida ao já rei D. Filipe I, das Espanhas e das Índias, viessem à luz duas traduções do texto integral? Sempre me parecera que tinha havido um arrochar progressivo da censura, de 1572 a 1584; a existência da tradução de 1580 fez cair por terra tal suposição. Parecera-me também que um afrouxamento se fazia notar de 1584 a 1597, data da edição feita "pelo original"; a tradução de 1591 o justificaria, mas a edição portuguesa do mesmo ano apresenta-se como um contra-senso. Se nos lembrarmos de que o ano de 1586 é o da segunda edição da Copilação de todalas obras de Gil Vicente, chegaremos a uma conclusão, provisória e precária, de que os anos 80 marcaram em Portugal, depois do Índice de 1581, um agravamento da censura inquisitorial exercida sobre as obras literárias, a qual só se teria afrouxado pelos anos 90, permitindo a volta ao texto original.

É uma hipótese plausível que talvez possam os especialistas em Inquisição transformar em certeza. Por enquanto, uma certeza me fica: a de que devemos a Frei Bertolameu Ferreira a existência de um texto integral, ou quase, intocado, ou quase.

Camões salvou seu livro a nado, bracejando entre as ondas do mar que celebrou. Outras ondas, mais insidiosas, ondas de incompreensão e obscurantismo novamente ameaçaram tragá-lo. Frei Bertolameu Ferreira salvou-o e, desta vez, para sempre.

Quatro séculos se escoaram, arrastando coisas e gente. Algumas permanecem. Assim o Poeta e seu poema.

Bem haja, Frei Bertolameu!



[1] As citações são da edição princeps d'Os Lusíadas, em fac-símile publicado em 1982 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, com reprodução paralela das duas edições de 1572. O alvará e a licença estão no fólio anterior ao no. 1, o primeiro, no rosto, o segundo no verso.

[2] Cf. "A estrutura d'Os Lusíadas", n. 1.

[3] Esta licença foi dada pelo mesmo frei Bertolameu Ferreira, treze anos mais tarde, para a edição de 1584, da qual se falará detidamente.

[4] Esta edição foi a primeira que trouxe notas elucidativas, algumas bastante úteis e pertinentes. Uma delas, no entanto, aposta ao v. 2 da estrofe 65 do canto III, lançou o ridículo sobre ela, como se não lhe bastasse a pecha de profanar o texto fundamental dos portugueses. O Poeta vai narrando as vitórias progressivas de D. Afonso Henriques contra os mouros, rumo ao Sul: "Com estas sojugada foi Palmela, / E a piscosa Cisimbra , e juntamente, / Sendo ajudado mais de sua estrela, / Desbarata um exército potente." Diz a nota: "Chama piscosa, porque em certo tempo  se ajunta ali grande cantidade de piscos pera se passarem a África." A edição de 1591 repete-a, mas já elimina a nota.