Estudos Camonianos

Microleituras camonianas

É de Camões que falarei, navegando por seus versos. A metáfora é de  Os Lusíadas, como bem sabem, e neles ficarei,  tentando deles fazer microleituras, algumas já transmitidas em salas de aula e nunca escritas, outras que permanecem em rascunhos, e ainda outras que já andam em parte impressas.

Comecemos pelo que precede o poema: as licenças dadas pelo Rei e pelo Censor do Santo Ofício para que o livro pudesse ser impresso, considerando-as uma espécie de paratexto, e  isso porque em ambas há elementos que explicam e/ou condicionam o poema [1] .  Vejamos.  O alvará de D. Sebastião explicita que a sua aprovação não basta, que é necessária a licença da Inquisição, não somente para a versão que lhe está sendo submetida, mas também para o caso de "o dito Luís de Camões [acrescentar] mais alguns Cantos".  Esta previsão de estender-se o canto ou criar-se um canto novo reponta na encomiástica dedicatória ao rei, onde o Poeta o qualifica  de início como "novo temor da maura lança", "Dada ao mundo por Deos [...] / Para do mundo a Deos dar parte grande" (I, 6), dele esperando que seja

[...] jugo e vitupério

Do torpe ismaelita cavaleiro,

Do Turco oriental e do gentio

Que inda bebe o licor do santo rio." (I, 8),

 

concitando-o a  novos feitos bélicos e de dilatação da fé, com os quais, diz-lhe: "Dareis matéria a nunca ouvido canto"  (I, 15).  Ao fechar o poema, põe-se o Poeta  à disposição do rei - "Pera servir-vos, braço às armas feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada"-,  e lhe promete

               Se me isto o ceo concede e o vosso peito

               Dina empresa tomar de ser cantada,

               [...]

        

               A minha já estimada e leda Musa

               Fico que em todo o mundo de vós cante,

               De sorte que Alexandro em vós se veja

               Sem à dita de Aquiles ter enveja. (X, 155-6)

 

Se houver novos feitos, novo canto haverá, tão altos, uns e outro, que o rei seja a imagem refletida do grande general, livre este agora do lamento que a história ou a lenda lhe atribuem, de não ter tido, como Aquiles, um Homero a cantar as suas bélicas ações, como lembra Cícero em seu discurso Pro Archia.  O jovem rei português tem o seu aedo, que fará cessar "tudo o que a Musa antiga canta."

Voltemos ao que chamei paratexto. Na licença do Santo Ofício, o nunca assaz louvado Frei Bertolameu Ferreira se vê em aperto: como justificar aqueles "Deoses dos Gentios" que ocupavam tanto espaço dentro do poema, que faziam e desfaziam, disputavam-se e pareciam decidir o destino dos cristãos que se aventuravam pelo oceano, a levar a fé aos infiéis?  Argumentando com dois tipos de razões:  primeira - "o Autor, pera encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua fi[c]ção dos Deoses dos Gentios" -, e segunda -"como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético" -, conclui: "não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deoses na obra, conhecendo-a por tal".  Os ecos de tais justificativas se ouvem nos cantos IX e X: naquele, na voz do próprio narrador, ao encerrar a descrição das cenas eróticas ocorridas na Ilha dos Amores, no momento em que vai caindo o dia, quando Tethys [2] e  Vasco da Gama, mão na mão, sobem ao paço da rainha, para nele lograrem seus amores (IX, 87). Na estrofe 89 do canto IX,  o leitor - que, ao longo de trinta e seis estrofes, foi levado pelo narrador a extasiar-se com a beleza paradisíaca da ilha, seguiu de perto os nautas no encalço das ninfas, acompanhou-lhes os impulsos masculinos, sorriu-se dos jogos de astúcia femininos, todos tão vivamente descritos (elas, sobretudo), que os viu/ sentiu reais dentro do seu revestimento altamente poético - subitamente os vê escapar, tornarem-se evanescentes, menos ainda,  meras abstrações.  Sente-se traído, ao ouvir

             Que as Ninfas do Oceano tão fermosas,

             Tethys e a ilha angélica pintada

             Outra cousa não é que as deleitosas

             Honras que a vida fazem sublimada.  (IX, 89) [3]

 

Tudo que lá está, portanto, são

 

[...]  prêmios que reparte

Por feitos imortais e soberanos

O mundo cos barões que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos. (IX, 91)

 

O canto vai chegando ao fim e o narrador dá a palavra ao sujeito lírico que teima em estar presente, tecendo considerações, refletindo, lamentando, filosofando, aconselhando. [4]   Aqui, sobretudo, aconselha aqueles que querem fazer claro o rei que tanto amam, conseguindo ser enumerados  "entre os Heroes esclarecidos, / E nesta ilha de Vénus recebidos." (IX, 95)

Como esquecido de que destruíra a realidade palpável das ninfas, o narrador inicia o X canto no suave momento do entardecer,

              Quando as fermosas Ninfas cos amantes

              Pela mão, já conformes e contentes,

              Subiam pera os paços radiantes, (X, 2)

 

onde vão restaurar a "fraqueza [...]da cansada natureza", com finos vinhos e iguarias, em louças e baixela preciosas, acompanhando o repasto de conversas e risos, ao som de "Músicos instrumentos" (X,5).  Uma ninfa cantará longamente a história do futuro de Portugal no ultramar.  Na sua voz Camões porá sobretudo o louvor dos feitos heróicos, mas também a bruta violência dos combates e até mesmo a crítica ao Rei D. Manuel, chamado inico (X,25). Os futuros heróis também "Virão lograr os gostos desta Ilha / [...] / E acharão estas ninfas e estas mesas, / Que glórias e honras são de árduas empresas." (X,73).  Retorna, pois, a ninfa à condição de prêmio, incorporada às outras. Estão satisfeitos a fome, a sede e o desejo erótico; satisfeito o orgulho, com a visão do que há de vir.  Falta satisfazer-lhes a inteligência:

    

     Faz-te mercê, barão, a Sapiência

Suprema, de cos olhos corporais

Veres o que não pode a vã ciência

Dos errados e míseros mortais. (X, 76)

 

É Tethys [5] que fala, a grande deusa do mar, esposa do Oceano, a mesma de quem o Poeta dissera, à entrada do poema, que desejava comprar D. Sebastião para genro.  É ela que mostra e explica a Vasco da Gama "a grande máquina do mundo", começando pela primeira esfera, o Empíreo, onde

                            [...] só verdadeiros, gloriosos

                       Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

                       Júpiter, Juno fomos fabulosos,

                       Fingidos de mortal e cego engano;

                       Só para fazer versos deleitosos                                

                       Servimos [...]  [X, 82]

 

Não era isso que dizia o frade censor?  Avivemos a memória: "como isto é Poesia e fingimento, e o Autor, como poeta, não pretenda mais que ornar o estilo Poético",  aceite-se a "fábula dos Deoses na obra, conhecendo-a por tal e ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé, que todos os Deoses dos Gentios são Demónios". Estará o atilado crítico literário (permitam que assim o chame) lendo um texto onde o Poeta, sponte sua, no canto IX e pela boca do narrador, confessa que as ninfas e a ilha não são mais que metáforas das "deleitosas / Honras que a vida fazem sublimada" (IX,89) e, no canto X, na voz da própria  Tethys, que os deuses só servem como elementos da ficção poética, ou estará apenas transcrevendo no seu Parecer o conselho de amigo que dera ao Poeta (e que este acolhera) para que o poema pudesse ser editado?  Pergunta sem resposta, que se fazem desde muito os leitores de Camões; mais um dos segredos que guarda o Poeta, e para sempre guardará. 

         Feitas estas relações entre paratexto e texto, que me levaram aos versos quase finais d'Os Lusíadas, volto à sua Proposição, começada pelo seu verso mais conhecido, "As armas e os barões assinalados",  objeto direto parcial de um verbo longínquo que virá, catorze versos adiante, modalizado por um gerúndio que é, semanticamente, mais importante que o verbo da oração principal: "Cantando espalharei por toda parte".  É importante que espalhe, mas é fundamental que cante. E era só de cantar que falava Vergílio, onde Camões foi buscar o seu modelo épico:  "Arma  uirumque  cano".

         À Proposição segue-se a Invocação - à Musa na Eneida; às Tágides, n' Os Lusíadas.  Aquele pede à Musa que lhe aponte a divindade que persegue, com raiva implacável, o piedoso herói; este pede às ninfas pátrias a inspiração épica. Cobra-lhes a ajuda, pois que celebrou o seu rio "em verso humilde", ao som da "agreste avena ou frauta ruda", relembrando o seu passado de poeta lírico. Nenhuma remissão ao passado se encontra na maioria das edições da Eneida, como a da Librairie Hachette, anotada por Plessis-Lejay, na qual estudei o poeta mantuano, há longínquos sessenta anos, e que começa pelo verso atrás citado, que completo: "Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris". No entanto, na Eneida Brazileira, tradução em versos de Odorico Mendes, são estes os primeiros versos do poema:

Eu, que entoava na delgada avena

Rudes canções, e egresso das florestas,

Fiz que as vizinhas lavras contentassem

A avidez do colono, empresa grata

Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis

Armas canto, e o varão [...]

e numa tradução francesa de Ernest Flammarion diz o editor numa nota: "com a garantia de todos os manuscritos e a autoridade da antiga Vie de Virgile, concorda-se em que estes primeiros versos sejam do autor da Eneida.". Também em nota diz Odorico Mendes:  "Alguns excluem o que precede a proposição. Se nas Geórgicas menciona Virgílio as Bucólicas, não é muito que fale aqui não só destas como das Geórgicas."  Parece claro que a escolha de avena e do adjetivo rudes se inspirou no texto correspondente d' Os Lusíadas.  Terá tido Camões acesso a estes versos iniciais?  É provável, mas apenas provável.

Iniciando a narração da história de Portugal, Vasco da Gama alonga-se por cinqüenta e cinco estrofes na biografia do primeiro rei, Afonso Henriques, desde quando ainda não o era, mas "o príncipe Afonso" (III, 30), jovem e aguerrido, vencedor de batalhas, conquistador de cidades no decorrer de muitos anos, até à velhice, que o Poeta acentua, para mais louvá-lo, chamando-lhe "o lasso velho" (III, 75), que mesmo assim ainda dá ordens de batalha ao filho; "o velho a quem tinham já obrigado / Os trabalhosos anos ao sossego" (III, 80), sossego do qual ainda não se aproveita, já que,

Sabendo como o filho está cercado

Em Santarém do Mauro povo cego,

Se parte diligente da cidade,

Que não perde a presteza coa idade. (III, 80)

 

até que, pela última vez, e ainda acentuando o seu valor guerreiro, encerra a vida do grande rei:

                             De tamanhas vitórias triunfava

             O velho Afonso, Príncipe subido,

             Quando, quem tudo enfim vencendo andava,

             Da larga e muita idade foi vencido.

             A pálida doença lhe tocava

                Com fria mão o corpo enfraquecido,

             E pagaram seus anos deste jeito

             À triste Libitina seu direito. (III, 83)

 

A última estrofe a ele dedicada exprime o sentimento do narrador (aqui, Vasco da Gama), que extravasa para o da própria  natureza, a chorar a perda do seu rei:

 

                        Os altos promontórios o choraram,

                        E dos rios as ágoas saüdosas

                        Os semeados campos alagaram

                        Com lágrimas correndo piadosas.

                        Mas tanto pelo mundo se alargaram

                        Com fama suas obras valerosas,

                        Que sempre no seu Reino chamarão

                        "Afonso, Afonso", os ecos, mas em vão. (III, 84)

 

          Neste mesmo canto III, uma outra morte é chorada pela natureza. Agora não é de um rei guerreiro, homem forte que se fala: é de "ua fraca dama delicada", jovem,  bela e apaixonada.   A morte, não lha deu "a pálida doença", mas "as espadas" dos  "brutos matadores".  Pálida está ela,

                       Assi como a bonina que, cortada

                       Antes do tempo foi, cândida e bela

                       [...]

                       O cheiro traz perdido e a cor murchada:

                       Tal está morta a pálida donzela,

                       Secas do rosto as rosas e perdida

                       A branca e viva cor coa doce vida. (III, 134)

 

Também aqui o narrador (o mesmo Vasco da Gama) se sente em comunhão com os "côncavos vales", lembrando a sua participação na trágica perda :

 

                       Vós, ó côncavos vales, que pudestes

                       A voz extrema ouvir da boca fria,

                       O nome de seu Pedro, que lhe ouvistes,

                       Por muito grande espaço repetistes. (III,133)

 

         Morto Afonso, os ecos chamam por ele; morta Inês, os ecos [6] repetem o nome de Pedro.  Lá, é do rei que sofrem a ausência, tentando, em vão, trazê-lo de volta; aqui, sofrem com Inês, mas o que repetem é o nome do amado, como se tentassem recuperar o amor pela palavra.  Aos montes e vales unem-se as águas do Mondego, pelas lágrimas de suas ninfas, lágrimas que se transformarão em fonte, e Fonte dos Amores.  Ainda está lá.  E a água  corre sobre pedras que  têm uma cor avermelhada, tingida pelas algas que as cobrem.  Esta, a explicação científica.  Mas para um homem - meio guarda, meio guia - que estava no local, quando lá fui pela primeira vez, não havia dúvida: "É do sangue de Inês".  Talvez tivesse razão.

         Estou falando de águas que nasceram de lágrimas e que perpetuam  a memória de um grande amor e um grande sofrimento.  Outras águas se mencionam no poema que vai chegando ao fim, águas piedosas do rio Mecom, que receberam em seu seio o Poeta náufrago;  é Tethys quem profetiza:

Este receberá plácido e brando

No seu regaço o Canto que, molhado,

Vem do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baxos escapado,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa. (X,128)

 

         Chorou a natureza por um rei e por uma mártir do amor; por quem mais terá chorado?  Por um mártir de Cristo.  O poema toca ao fim, a narração é feita por Tethys, que se detém a falar de São Tomé, da sua pregação, dos milagres que fez, do medo e inveja que despertou, da morte a lança em meio a pedradas.  Conclui a narradora:

Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo,

Chorou-te toda a terra que pisaste;

Mais te choram as almas que vestindo

Se iam da santa fé que lhe ensinaste. (X, 118)

        

         Os montes também se compadecem das gentes - mulheres, crianças e velhos, sobretudo - no momento climático da partida das naus da praia do Restelo, ecoando-lhes as palavras de dor, as perguntas sem resposta.  Perguntam as mães:  "Ó filho [...] / Por que me deixas, mísera e mesquinha?" "Por que de mi te vás?"; perguntam as esposas: "Ó doce e amado esposo, / [...] / Por que is aventurar ao mar iroso / Essa vida que é minha e não é vossa?" (IV, 90-1).

                        Os montes de mais perto respondiam,

                       Quase movidos de alta piedade;

                        A branca areia as lágrimas banhavam,

                        Que em multidão co elas se igualavam. (IV, 92)

        

As mães, que vêem afastar-se os filhos bem amados numa aventura de que não se pode prever o fim,  sentem-se, cada uma, "mísera e mesquinha".  Com este mesmo par de adjetivos o narrador introduz Inês de Castro, também mãe, também no momento de separar-se de seus meninos.  Nos dois momentos há lágrimas:  nas margens do Mondego, choram as ninfas e suas lágrimas se tornam fonte; na praia do Restelo, choram mães, esposas e irmãs, e suas lágrimas banham as areias, tão numerosas quanto elas.     

         Com a utilização dos mesmos elementos, Camões estabelece um laço entre  personagens que são visivelmente privilegiados pelos narradores, como aqueles que, com características bem diversas, merecem o pranto das coisas.  Por Tomé choram também as almas às quais ia ensinando a santa fé.

         Patenteando uma mesma emoção diante de situações semelhantes, equiparam-se os narradores Vasco da Gama e Tethys, o que surpreende, acrescendo-se o fato de tocar a esta deusa a exaltação da virtude e da fé de um santo da Igreja Católica, confirmando o que tenho afirmado (e não só eu): há n'Os Lusíadas vários narradores, mas apenas um ponto de vista, que é o daquele que os criou.

         Na verdade, por mais que o saibamos, esquecemos  que é Vasco da Gama que se enternece com a desdita de Inês, que a ele é confiado este episódio, o de mais intenso lirismo do poema, onde o Poeta lhe dá a palavra para dirigir-se ao amor com minúscula, amor-sentimento, marcado pela ambigüidade:

Tu, só tu, puro amor, com força crua

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga. (III, 119)

 

Deste amor puro, mas que pode levar à morte, passa o narrador ao Amor com maiúscula, o deus tirânico que exige sacrifício cruento:

                        Se dizem, fero Amor, que a sede tua

                        Nem com lágrimas tristes se mitiga,

                        É porque queres, áspero e tirano,

                       Tuas aras banhar em sangue humano. (ib.)

 

         O mesmo tu é então transferido a Inês:  "Estavas, linda Inês, posta em sossego" (III, 120) e, logo adiante, novamente ao puro amor (III, 122).   Entre  Amor e amor, vitimada por um e consubstanciada com outro, Inês é o próprio amor.    

         De um outro amor se fala logo em seguida, o amor de D. Fernando por Leonor Teles.  É ainda Vasco da Gama que o apresenta:

Do justo e duro Pedro nasce o brando

- Vede da natureza o desconcerto -

Remisso e sem cuidado algum, Fernando (III, 138).

 

         Permitam-me contestar, em parte, o narrador (ou o Poeta?).  Será verdadeiramente desconcerto nascer Fernando de Pedro?  Sim, se os opusermos como o duro e o brando; não, se os virmos como dois seres marcados com um ferrete:  são ambos dominados pelo amor.  A grande diferença está no objeto do seu amor: o pai amou a que merecia ser amada, que por ele se perdeu; o filho amou a aleivosa e foi ele que se perdeu.  Aplico a Leonor Teles um dos o epítetos com que Fernão Lopes a estigmatizou. 

         Pela boca do "facundo capitão", o Poeta julga severamente o rei:  "Um fraco rei faz fraca a forte gente" (ib.).  Põe a hipótese de ter sido D. Fernando castigado por "tirar Lianor a seu marido", por deixar enlevar-se o coração "num falso parecer mal entendido", tornando-se "mole" e "fraco" (III, 139). A seguir, enumera aqueles que cometeram igual delito, alternando personagens mitológicos e bíblicos, ao longo de duas estrofes, ao fim das quais passa a justificar o rei, começando, como bom advogado, por interpelar os que o ouvem:

                       Mas quem pode livrar-se por ventura

                       Dos laços que Amor arma brandamente

                       Entre as rosas e a neve humana pura,

                       O ouro e o alabastro transparente? (III, 142)

terminando:

                                Desculpado por certo está Fernando

                       Pera quem tem de amor experiência;

                       Mas antes, tendo livre a fantasia,

                       Por muito mais culpado o julgaria. (III, 143)

         Nestes dezesseis versos, dois mais que os de um soneto - com ligeiros retoques, poderia sê-lo -, temos um dos mais altos momentos líricos do poema, uma espécie de palinódia do narrador, que, arrependido das acusações feitas, passa à defesa do réu, que pecou por amor.

         Não se exime Camões de apontar defeitos em seus heróis ou nos próprios reis.  É uma das maneiras de afirmar que em sua epopéia  só se encontrará a verdade. Para garanti-la, o Poeta recorreu aos cronistas medievais, sobretudo a Fernão Lopes, e aos historiadores quinhentistas - a Castanheda e João de Barros, mais que todos. Nem sempre, porém, é a verdade histórica que se encontra n'Os Lusíadas, nem isso seria de esperar.  O poeta épico não tem compromisso com ela; utiliza-a como base de onde alça vôo para o espaço da ficção.  Exemplo disso será a tempestade no Índico, no VI canto, magistralmente descrita pelo narrador que não a encontrou nos seus historiadores, já que não foi enfrentada  por Vasco da Gama, mas estava latente na apreensão dos nautas e na dos que ficavam em terra a esperar-lhes o regresso.  Faz parte das ficções poéticas com que se enriquece o riquíssimo discurso d'Os Lusíadas,  quase sempre motivadas pelo desejo de corporificar estados de espírito coletivos: tais foram, no final do canto IV, o Velho do Restelo, a sintetizar a desaprovação das viagens, da parte de muitos; no meio (quase exato) do canto V, o Adamastor, a condensar o terror do desconhecido, o que, como dirá exemplarmente Fernando Pessoa,  "escorr[e] os medos do mar sem fundo" (Mensagem, "O mostrengo", p. 57), surgindo de uma nuvem "temerosa e carregada", do ribombo do trovão, do brado do "negro mar" (V, 38) e desaparecendo ao desfazer-se a "nuvem negra" (V,60). 

De motivação diferente é, no canto IV, o episódio do sonho de D. Manuel com a Índia e seus rios Indo e Ganges, a justificar a dominação portuguesa como resposta a um apelo da terra buscada, feito por aquele que se identifica e ao companheiro como

[...] o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Est'outro é o Indo, Rei, que nesta serra

Que vês, seu nacimento tem primeiro. (IV, 74),

 

dando-lhe um aviso que faz pasmar o leitor, e talvez também o rei, cujo inconsciente estaria gerando a desculpa para algum escrúpulo de consciência que permanecesse sob a sede de glória e de poder.  Ou seria a ficção criada pela consciência sempre alerta do Poeta, que tece a magnífica tapeçaria  dos descobrimentos pelo direito, mas deixando ver, aqui e ali, o seu avesso?  Vale a pena ouvir a fala do velho rio:

Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes. (IV, 73)

 

Diz ao rei que a conquista não será fácil, mas que, ao fim, conseguirá o que quer:

 

Custar-t'-emos contudo dura guerra

Mas, insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio,

A quantas gentes vês, porás o freio." (IV, 74)

 

         A metáfora final, originada na utilização da peça de metal que se põe na boca das cavalgaduras, tem emprego largo na língua, fazendo esquecer-lhe a proveniência, mas pouco antes o rio se referira a si e a seus patrícios como aqueles "cuja cerviz bem nunca foi domada", em uma imagem trazida da aposição do jugo aos animais para fazê-los obedecer, submetidos à vontade do senhor.  Profeta, o rio anuncia, concitando:  "Te avisamos que é tempo que já mandes / A receber de nós tributos grandes." (IV, 73), mais uma frase ambígua, pois que aponta para o interesse maior dos descobrimentos, "receber tributos grandes", invertendo a ordem da Proposição - dilatar "a Fé, o Império".  Assim lemos nós hoje, nesse afã de uma leitura que completa a escrita do texto inicial.  A quase subserviência de personagem revestido de tal dignidade, se, por um lado, pode ser o louvor máximo pelo reconhecimento do poderio incontestado e incontestável do conquistador,  pode, por outro,  significar a amarga ironia do conquistado que, sabendo-se superior, por uma tradição milenar de cultura e civilização, tem de dobrar a cerviz, receber o jugo e aceitar o freio imposto pela força.

         A preocupação com a verdade dos fatos relatados já surgira na dedicatória ao Rei, quando lhe afirma que não louvará os portugueses "com vãs façanhas / Fantásticas, fingidas, mentirosas", pois "As verdadeiras vossas são tamanhas, / Que excedem as sonhadas, fabulosas" (I, 11).  O narrador extradiegético começará por falar da viagem de Vasco da Gama; este, em seu relato ao rei de Melinde, em longa analepse, voltará ao nascimento do reino, seguindo cronologicamente a história de Portugal até ao momento  em que enunciado e enunciação coincidem; daí em diante é a viagem que o capitão descreverá, pontuando sua fala com palavras e frases que insistem em não deixar margem a dúvidas no alocutário.  A necessidade que tem de garantir a verdade se encarece com o desejo de transmitir a  novidade do nunca antes visto e ver é o verbo privilegiado:  o Zaire é "Rio pelos antigos nunca visto" (V, 13); a constelação do Cruzeiro do Sul é "nova estrela / Não vista de outra gente" (V, 14); do fogo de Santelmo, diz: "Vi, claramente visto, o lume vivo" (V, 18); do fenômeno mais extraordinário, a tromba marinha, assegura: "Eu o vi certamente" (V, 21). Consciente de que o interlocutor terá dificuldade em acreditar em tais prodígios, ele exprime o seu pasmo, que seria o dos "antigos filósofos, que andaram / Tantas terras por ver segredos delas" (V, 23), se tivessem passado "As maravilhas que eu   passei":

                      Que grandes escrituras que deixaram!

                         Que influição de sinos e de estrelas!

                       Que estranhezas, que grandes qualidades!

                       E tudo sem mentir, puras verdades. (V, 23)

 

Verdade também, e, neste caso, autobiográfica do Autor, é a que este põe na boca de Tethys, como já se viu, ao referir-se ao naufrágio de que se salvou, salvando o canto. Os que me vêm acompanhando terão talvez estranhado que eu tenha transcrito, na contramão da quase totalidade dos editores d'Os Lusíadas, a estrofe na forma em que a leram atrás (cf. p. 7) ???. Estes editores seguem a edição princeps, de 1572, que traz, no v. 2, "os Cantos que, molhados", concordando e rimando com, "Dos procelosos baxos escapados", no v. 4; no v. 6, porém, está "Será do injusto mando executado", onde não é possível pôr o particípio no plural. Estranhando esta rima imperfeita em Camões - sobretudo no Camões da medida nova -, consultei o pouco conhecido mas precioso Rimário de "Os Lusíadas", de Judith Brito de Paiva e Souza [7] , nele encontrando, em nota a enganado (II, 13) e executado (X, 128), observações sobre o fato de ambos os versos terminados em -ado apresentarem uma rima imperfeita, pois os dois outros com que deveriam rimar terminam em -ados. Cita a autora "o mestre camonista José Maria Rodrigues" que, em nota ao v. 3 da estrofe 13 do canto II,

Aqui foram de noite agasalhados,

Com todo o bom e honesto tratamento,

Os dous Cristãos, não vendo que enganado[s]

Os tinha o falso e santo fingimento;

Mas assi como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo e num momento

Apareceo no rúbido Horizonte,

Na moça de Titão a roxa fronte.

 

aventa uma possibilidade que não me convence: "'enganado' completa-se com o pronome inicial do v. 4: 'enganados' por 'enganados os'." [8] Acho fácil reconhecer aqui um erro de impressão, já que a concordância do particípio predicativo com o objeto direto que o precede é a mais comum no século XVI: "Os dous Cristãos, não vendo que enganados / Os tinha o falso e santo fingimento"; cito em abono desta afirmação um passo de uma dos mais belos e conhecidos sonetos camonianos: "Sete anos de pastor Jacó servia", mais exatamente, o v. 11: "Como se a não tivera merecida". No outro caso da suposta rima imperfeita, que deu origem a estas minhas observações, prefiro, como Hernâni Cidade, a forma "canto", usada pelo Poeta quatro vezes no poema para a este referir-se: "Daí-me igual canto aos feitos da famosa / Gente vossa [...]" (I,5); "Dareis matéria a nunca ouvido canto." (I,15); "Inspira imortal canto e voz divina" (III,1); "E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida" (X, 145). Somente uma vez (seria a do exemplo acima, X, 128), "cantos". (A segurança com que o afirmo deve-se à consulta a A.G.Cunha (org.). Índice analítico do vocabulário de "Os Lusíadas". Rio: INL, MEC, 1966). Voltando à estrofe 13 do canto X, que deu origem a estas observações, estou bem convencida de que o que Tethys diz ter sido branda e placidamente recebido pelas águas do Mecom foi o canto - Os Lusíadas, o canto épico  - que o Poeta espalhará por toda parte. O canto se espalhará, se puder igualar os feitos:

Daí-me igoal canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso. (I, 5)

 

Navegarão os Portugueses por mares "nunca de antes", "nunca doutrem navegados", "nunca arados d'estranho ou próprio lenho", cometerão "O duvidoso mar num lenho leve / Por vias nunca usadas". Navegará o Poeta em seus versos, "fraco batel" que ele tem "grande medo" "que se alague cedo." Os Portugueses deixarão "sabido" o mar (X, 142), torná-lo-ão "possível", como dirá séculos mais tarde Fernando Pessoa (Mensagem, "Padrão", p. 54). O Poeta manterá o lenho à flor da água, e, resistindo às intempéries, transporá os limites do espaço e do tempo.    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

"A utilização poética do eco nos Lusíadas" fez Adrien Roig uma comunicação de muito interesse na V Reunião Internacional de Camonistas, realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1987, publicada nas ACTAS.  

Rimário de "Os Lusíadas", de Judith Brito de Paiva e Souza. Rio: Editora Souza Marques, 1983, 2.ed.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição Nacional. Lisboa: Imprensa Nacional, 1931



[1] Cf. "A estrutura d'Os Lusíadas", n. 1.

[2] Escrevo Tethys ao nomear esta deusa, para distingui-la de Thetis, sua neta e mulher de Peleu, amada por Adamastor.

[3] Nas transcrições do poema, todos os grifos são meus.

[4] Chamei-lhe alhures Poeta, para distingui-lo do Narrador.

[5] Como ficou dito antes, escrevo Tethys ao nomear esta deusa, para distingui-la de Thetis, sua neta e mulher de Peleu, amada por Adamastor.

[6] Sobre "A utilização poética do eco nos Lusíadas" fez Adrien Roig uma comunicação de muito interesse na V Reunião Internacional de Camonistas, realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1987, publicada nas ACTAS.  

[7] Rio: Editora Souza Marques, 1983, 2.ed.

[8] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição Nacional. Lisboa: Imprensa Nacional, 1931, p. LXXVII.